Maldição e dessacralização: elogio da realidade em Angiolieri e Pasolini
Por André Cupone Gatti
I.
O termo “poète maudit” surgiu
séculos após a morte daquele que o inspirou. Aceita-se que foi Alfred de Vigny,
em pleno romantismo, o primeiro a empregar a expressão, ao se referir ao poeta
francês do fim da Idade Média, François Villon, na sua obra Stello. Ao discutir
os problemas da relação entre os poetas e a sociedade, o romantismo conferiu um
significado inflamado ao “poeta maldito”, personagem trágico, desventurado e
errante, à beira da loucura. Paul Verlaine, ainda no século XIX, revitalizou o
termo, ao inseri-lo no contexto dos poetas finisseculares de inclinação
simbolista e decadentista. Ainda personagens desventurados, mas não tão
trágicos como inicialmente, os “poètes maudits”, no entendimento de Verlaine,
eram aqueles obscurecidos e incompreendidos no meio literário, provocativos no
comportamento e muitas vezes herméticos no estilo. Corbière, Rimbaud e Mallarmé
foram os principais paradigmas do poeta maldito para Verlaine, embora nomes de
gerações anteriores, como Baudelaire e Lautréamont, também se enquadrem nessa medida.
Nas primeiras décadas do século
XX, mais uma vez a noção de “maldição” na poesia seria revista. Agora
apropriada e adaptada pelas vanguardas, a “poesia maldita” interessava na
medida em que representava uma ruptura, desobediente e iconoclasta, a ponto de
Villon, o mais paradigmático dos malditos, ter sua obra atentamente estudada
por Tristan Tzara, criador do dadaísmo. A partir de então, século XX afora, a
noção de “poeta maldito” ganharia novas vias, adequando-se às necessidades
estilísticas e temáticas de cada momento. A poesia marginal, no Brasil dos anos 1970, e a “antipoesia” pensada pelo poeta argentino Nicanor Parra em meados dos
anos 50, por exemplo, não deixam de ser continuidades amoldadas da “maldição”
poética.
Não obstante as mudanças que sofreu
ao longo do tempo, a ideia de “maldição” parece ter sempre conservado alguns
aspectos: a afronta às regras e às normas, tanto por parte do poeta quanto por
parte de sua obra, a valorização de signos tradicionalmente prosaicos e a
dessacralização de arquétipos, modelos, inclusive, em muitos casos, da própria
ideia de poesia como arte elevada.
Interessa-me verificar como essa
maldição pode ser a janela para o olhar crítico e irônico da realidade, e
perceber se é a maldição que cria essa visão, ou, pelo contrário, é essa visão
incisiva aquilo que torna maldito um poeta. A partir da produção poética de
Cecco Angiolieri (c. 1260 - c. 1312) e de Pier Paolo Pasolini (1922 - 1975),
separados por cinco séculos de História, mas unidos pela força do espírito provocador,
se investigará como cada um, pelo uso da linguagem direta e popular, revela a
realidade do seu tempo a partir da experiência pessoal e atrai para si a aura
de maldito.
II.
Os dois poetas aqui abordados – Angiolieri vivendo as rusgas políticas entre Guelfos e Gibelinos na península
itálica do fim da Idade Média, e Pasolini desesperançoso com a Itália da
segunda metade do século XX que submerge nas ambições neocapitalistas -
conjugam a experiência pessoal ao retrato de seu tempo e destrincham o cotidiano
em estilo sóbrio e direto. Essa aproximação de subjetividade e História, mais
explícita em Pasolini, mais latente em Angiolieri, é maldita à medida que não
teme apontar a deficiência das instituições e a hipocrisia da sociedade, e,
principalmente, à medida que não teme o riso irônico que profana, com mais ou
menos voracidade, a tradição e mesmo o fazer poético.
Cecco Angiolieri (c. 1260 - c.
1312), descendente de uma família rica de Siena, viveu de perto a agitação
política da sua época, lutando entre os Guelfos sieneses e confrontando,
inclusive, ao lado dos florentinos na campanha contra Arezzo em 1289, mas sua
vida foi marcada e é principalmente lembrada por suas atitudes incontinentes,
tanto em relação à sociedade, como em relação à sua família e a si próprio,
atitudes essas cantadas nas suas rimas, ostentadas pela persona de um poeta
desventurado, azarado no amor e no jogo.
Claro contraponto à “scuola
stilnovistica”, a “scuola realistica” – da qual Angiolieri foi o expoente mais
notável – defendeu uma poesia que fosse espelho da vida elementar e prosaica,
de apelo popular/burguês, imediata tal qual os acontecimentos cotidianos, e não
idealista e abstrata, culturalmente pensada com lastro estético-filosófico e
reservada a poucos leitores, como acontecia com o “stilnovismo”. Muitas vezes
autobiográfica, a “poesia realistica” se volta à violência e espontaneidade dos
sentimentos, aos prazeres carnais e aos desejos tempestuosos. Angiolieri honrou
os ditames dessa poesia: criticou, com ironia e paródia, o Dolce Stil Novo,
desdenhou e relativizou os valores tradicionais do seu tempo e as instituições,
expôs o caráter terreno e factual das relações humanas, sem nunca excluir delas
o riso jocoso e a burla, e urdiu, com malícia, a figura de um poeta desafortunado,
inseparável dos eventos banais da vida popular.
A agilidade e a objetividade da
linguagem, o caráter farsesco e o exagero marcam o soneto LXXXVII “[Tre cose
solamente mi so ’n grado]”, icônico retrato do homem errante, entregue à vida
boêmia, descontente por não poder bancar os seus vícios:
Tre cose solamente mi so ’n grado,
le quali posso non ben men fornire:
ciò è la donna, la taverna e 'l dado;
queste mi fanno ’l cuor lieto sentire.
Ma sì me le conven usar di rado,
ché la mie borsa mi mett’al mentire;
e quando mi sovvien, tutto mi sbrado,
ch’i’ perdo per moneta 'l mie disire.
E dico: - Dato li sia d’una
lancia!-
Ciò a mi’ padre, che mi tien sì magro,
che tornare’ senza logro di Francia.
Trarl’un denai’ di man serìa più
agro,
la man di pasqua che si dà la mancia,
che far pigliar la gru ad un bozzagro.
Aqui Angiolieri não apenas
confessa sua desventurada vida de vícios, mas também, como em grande parte da
sua obra, maldiz a figura de seu pai, caricatura de homem mesquinho, e torna o
dinheiro – esse bem tão corriqueiro e pragmático –, ou melhor, a falta dele, o
objeto central do poema. A realidade sólida do cotidiano, mesmo que mediada por
efeitos hiperbólicos, está tanto no dilema e na figura popular do desafortunado
quanto na linguagem sem rodeios, imediata, que expressa a sinceridade de uma
experiência material. A espontaneidade é a base da poesia angiolieresca, dela
nascem as infâmias e os lamentos, as caricaturas e as ironias. Angiolieri não é
maldito só porque maldiz sua situação pessoal e a sociedade em que vive, mas
também porque, ao fazê-lo de forma tão natural e despojada, maldiz o próprio
compromisso elevado do verso.
Colérico é o soneto LXXXVI “[S’i’
fosse foco]”, das suas rimas a mais famosa, exemplo da agressividade e
incontinência da persona poética de Angiolieri:
S’i’ fosse foco, arderéi 'l mondo;
s’i’ fosse vento, lo tempesterei;
s’i’ fosse acqua, i’ l’annegherei;
s’i’ fosse Dio, mandereil’en profondo;
s’i’ fosse papa, sare’ allor
giocondo,
ché tutti cristïani imbrigherei;
s’i’ fosse ’mperator, sa’ che farei?
A tutti mozzarei lo capo a tondo.
S’i fosse morte, andarei da mio
padre;
s’i’ fosse vita, fuggirei da lui:
similemente farìa da mi’ madre.
S’i’ fosse Cecco, com’i’ sono e
fui,
torrei le donne giovani e leggiadre:
e vecchie e laide lasserei altrui.
Elevando às medidas universais sua
fúria pessoal, o poeta formaliza seu desejo destrutivo na insistente hipótese
“s’i’ fosse…”. No primeiro quarteto, imbuído de grandiloquência, conclama as
forças naturais e Deus para o seu apocalipse. Em seguida, no segundo quarteto,
desce à civilização com ironia ao se imaginar com o poder do imperador e do
papa, cáustico e crítico. No terceto que se segue, a burla e a troça tomam o
lugar da ironia e sustentam a obsessão antipaterna de Angiolieri. Por fim, no
último terceto, não apenas terreno e realista, mas prosaico, o poeta lança mão
de uma sentença com tom de provérbio popular que incita o riso malicioso e
reles sobre a poesia e sobre ele mesmo, esse errante personagem. Desse
movimento descendente, que começa na grandiloquência (“s’i fosse Dio”) e
termina na desiludida trivialidade (“S’i’ fosse Cecco”) há não só um efeito
cômico, mas também algo melancólico, não apenas no desencanto latente do
personagem, como no despojamento da superfície formal do texto, que alterna
linguagem áulica e dialetal.
No outro extremo temporal da
literatura italiana, está Pier Paolo Pasolini (1922 - 1975), poeta, cineasta,
romancista, ensaísta, em suma, uma das mais relevantes figuras culturais
italianas da segunda metade do século XX. Acumulador de processos e polêmicas,
fez da sua persona artística a sua resistência contra os odiosos olhares
daqueles, nos planos político e cultural, que o acusaram de contraditório e
escandaloso. Homossexual, comunista e artista, Pasolini não conseguiu fugir da
alcunha de maldito. Crítico incisivo dos progressos capitalistas, julgou
agressivo e abominável o consumo de massas e se autodenominou “una forza del
Passato”, um homem desiludido com o seu tempo, frustrado com os rumos que tomou
a sociedade italiana e descompassado com a contemporaneidade. Esse desalento,
no entanto, não excluiu a sua lucidez, ao contrário, aguçou-a.
Conhecido mais como cineasta que
poeta, Pasolini soube conjugar, seja no cinema ou na literatura, sua
experiência pessoal ao processo da História. Como observa Alfonso Berardinelli
no artigo “Pasolini, personagem poeta”, é na tensão entre a subjetivação
passional de dados sociais e o julgamento crítico e ideológico de dados
passionais, que se equilibra a poética pasoliniana. Desde seu primeiro livro de
poemas Poesie a Casarsa, de 1942, mostra interesse pela linguagem direta e
popular (o livro foi escrito no dialeto friulano) e pela captação de eventos
comuns. Embora nessa primeira fase os temas venham mais imbuídos de erotismo e
morbidez, e as imagens e expressões criadas sejam mais líricas, pode-se, a
partir de então, prever o caminho que faria Pasolini em busca do desnudamento
da forma e da apreensão documental e crítica da realidade. Em 1971, depois de
acumular mais de duas décadas de experimentação e busca poética, publica o
livro Trasumanar e organizzar, no qual – aqui, em específico, no poema
“Comunicato all’Ansa (Recife)” - podemos observar as inclinações
estilísticas e temáticas de um Pasolini poeticamente maduro:
Poiché è un fatto di cronaca
comincia
con un atterraggio di fortuna a Recife.
Qui piove; nell’aeroporto in costruzione, passando
davanti a un gruppo di operai che lavorano, degli occhi
si alzano sul passeggeri
È così che il Brasile mi saluta
E io ricambio il saluto col mio cuore borghese
che sa già cosa riceve da un suo dono.
Su queste panche desolate è l’attesa di un nuovo aereo, di
[fortuna,
Non c’è nulla di nuovo: io so di che novelle
Il corpo non lavato e la malinconia
La mia compagna con la sua ansia, nell’aria tiepida della
[pio
ggia,
e la sua sete di grazia: acciecata per sempre –
questo peso che noi borghesi abbiamo nel cuore
di tutte le cose che non sappiamo e il bisogno di lodi,
onde la vita ci copre come un vestito umido e sporco,
e i pochi momenti di felicità divengono subito ricordi,
e ce ne gloriamo; e il peso aumenta
le piaghe di un insuccesso ci obbligano a calme
a comiche alzate di spalle consolatrici,
a superiori ilarità,
là seduti su quelle parche desolate di Recife
Nesse poema quase em prosa, que
revela o anseio de Pasolini por uma desconstrução da forma poética, há a
presença de uma voz confessional e melancólica, a duplicar a voz do poeta no relato
de um pouso de emergência, experienciado e captado por pormenores corriqueiros
como o “gruppo di operai che lavorano”. Ao lado da melancolia logo percebemos a
ironia ácida para consigo próprio, o eu-lírico Pasolini, aqui signo da
burguesia; mas também, de maneira subjacente, podemos perceber a ironia em
relação ao estado da sociedade, expansão implícita dos conflitos morais do
poeta. Com a naturalidade e a proximidade de uma confissão, a realidade se
agiganta a partir das observações triviais de um passageiro desencaminhado que
discute, desalentado e irônico, a consciência de classe.
“Versi buttati giù in fretta”, de La
nuova gioventù (1975) – último livro de poemas publicado em vida por Pasolini,
que incluía a reescrita de poemas friulanos dos anos 40 e 50 – traz novamente
um olhar pontiagudo da realidade em versos bastante rápidos e diretos, como
sugere o título:
Non sanno vedere
La transformazione
Degli operai, perché
Non hanno alcun interesse per gli operai.
Non si accorgono
Delle facce dei ragazzi
Perché non hanno alcun interesse
Per i ragazzi (non hanno neanche
Occasione di vederli).
Spesso mi sento stringere
il cuore di fronte alla santità
della gente: in fondo
accontentarsi di mille lire di più
in saccoccia, è una forma
di santità. Ma mi sento
ache stringere il cuore
di fronte alla paura
degli intellettuali comunisti
a essere anche un poco,
o solo idealmente, disobbedienti.
Guardano con uno spavento
Misto di ammirazione o odio
Chi osi dire qualcosa di opposto
all’opposizione istituita.
Mi chiedo che cosa temono.
Si tratta dell’antica paura
di essere lasciati indietro dal branco?
Si tratta di umiltà?
A experiência pessoal de Pasolini
permite que, aqui, ele não critique somente a burguesia de forma geral, mas,
mais especificamente, os intelectuais comunistas, medrosos e obedientes,
destituídos de estímulo indagador na sua “opposizione istituita”. Em atitude
provocativa e irônica, Pasolini lança esses rápidos versos como leves flechas
no seio da sociedade, ao mesmo tempo tão descomplicados e tão escrupulosos. O
poeta se indaga sobre seus pares medrosos e conformistas, mas não deixa de
indagar sobre si próprio, e o seu dilema, mais uma vez, atinge a realidade
objetiva da sociedade. Corajoso (e também por isso maldito?), Pasolini acredita
que “a poesia só pode se salvar pela verdade”, como diz Beradinelli no já
citado artigo, e é a verdade, a realidade, a sua grande ambição poética.
III.
Após observar a relação que dois
poetas de tempos tão díspares mantiveram com o fazer poético e a realidade
(objetiva e subjetiva), resta acentuar que, embora ambos sejam tidos como
malditos, essa maldição é diversa, adaptada ao gênio criativo de cada um e às
vicissitudes de seus respectivos contextos históricos. O que une Angiolieri a
Pasolini, é a aposta na linguagem direta e popular para chegar a um cerne
sólido da realidade desmistificada, é o paradigma das experiências pessoais
para a matéria poética e a atitude provocadora daquele que ironiza e maldiz.
Ambos buscam a dessacralização do conteúdo e da forma poética, e elegem a
espontaneidade como o tom adequado de sua poesia.
Pasolini, com seu senso
sócio-político aguçadíssimo, é mais discreto na sua maledicência, mas não menos
incisivo. A crítica que faz à burguesia tem profundo lastro analítico e é
permeada pela melancólica descrença na mudança. Pasolini é maldito porque
desnuda a burguesia, tão temerosa da nudez, porque questiona as posições e
oposições políticas e porque se importa mais com a realidade dos fatos que suas
implicações morais ou estéticas. Angiolieri não exclui o riso de nenhum aspecto
da vida, e ao fazê-lo, desarma e torna prosaico mesmo os símbolos mais
excelsos. Observador da vida popular, Cecco forja um personagem desventurado
que é porta-voz da realidade cotidiana. Sua maldição está no desdém pelas
instituições, no elogio do amor carnal, nas provocações burlescas e
maledicentes em relação aos costumes, aos vícios, ao pai, na crítica ao
stilnovismo e nos hábitos de vida desse Angiolieri literário. Pasolini e
Angiolieri, tão malditos quanto simples cronistas da realidade, recebem a
infame alcunha de conjunturas sociais que desaprovam a desobediência e condenam
a provocação à tradição. “Maldito” é uma taxação para os artistas geniosos e
incontinentes que ousam contestar o “bendito” e “correto” e “moral” estado das
coisas. São jogos e nomenclaturas, que surgem dos mais aos menos poderosos, e
que, de bom, só têm a função de ressaltar, na antologia universal, aqueles
pensadores e artistas mais valorosos que iluminam a sua época (e outras) pelo
olhar contrastante e crítico da vida cultural e social de seu tempo.
Bibliografia
BERARDINELLI, Alfonso. “Pasolini,
personagem poeta”. In: PASOLINI, Pier Paolo. Poemas. São Paulo: Cosac Naify,
2015. p. 11-14. Organização: Alfonso Berardinelli, Mauricio Santana Dias;
Tradução e notas: Mauricio Santana Dias.
PASOLINI, Pier Paolo. Poemas. São
Paulo: Cosac Naify, 2015. Organização: Alfonso Berardinelli, Mauricio Santana
Dias; Tradução e notas: Mauricio Santana Dias.
QUAGLIO, Antonio E.. La poesia
realistica e la prosa del duecento. Bari: Editori Laterza, 1996. (Letteratura
Italiana Laterza 4).
REBECHI JUNIOR, A. “Pier Paolo
Pasolini, poeta”. Comunicação & Educação, v. 21, n. 2, p. 127-134, 16 dez.
2016.
Comentários