Joan Margarit
“Escrevo para consolar os solitários, que somos todos nós”
Joan Margarit. Foto: Adrian Costa |
Nascido em Sanaüja em 1938, Joan Margarit
não é apenas considerado um dos poetas catalães mais lidos, é também o mais
premiado: em 1985 recebeu o Prêmio Carles Riba, em 2008 o Prêmio Nacional de
Literatura da Generalitat de Catalunha; no mesmo ano, recebeu o Prêmio Nacional
de Poesia e o Prêmio Rosalía de Castro. Em 2013, foi premiado no México com o
Prêmio Poetas do Mundo Latino junto com o poeta José Emilio Pacheco. Depois,
vieram o Prêmio Pablo Neruda (2017), o Rainha Sofía de Poesia (2019) e o maior
galardão das letras espanholas, o Prêmio Cervantes (2019).
Entre os falantes hispânicos não são
poucos os que mesmo sem ter lido o poeta alguma vez terão repetido seus famosos
versos “A liberdade é uma livraria. / Ir sem documentos. / As canções
proibidas. / Uma forma de amor, a liberdade”. Pertencentes ao poema “Liberdade”,
esses versos não só ilustram como Margarit é lido, mas como sua poesia penetrou
até mesmo entre os leitores não contumazes tornando-se parte de um saber popular.
Juan-Carlos Mainer escreve no
prólogo à Poesia completa que o poeta pertence àquele grupo “cujo ponto
de partida reside nos ensinamentos da vida, mas só os explicam na medida em que
se convertam em um documento moral que busca inscrever-se na experiência de
seus leitores e que está muito atento à história comum, aquele vendaval que situa,
explica e ao mesmo tempo abala a experiência pessoal”. Como o próprio Margarit
reconheceu durante a recepção do Prêmio Cervantes, escreve para consolar os
solitários, escreve com a esperança de que o leitor encontre conforto e refúgio
em alguns poemas.
E tudo começou quando tinha apenas
dezesseis anos; foi quando Margarit escreveu seu primeiro poema, um poema de
amor escrito em Santa Cruz de Tenerife, para onde sua família se mudou: “Minha
relação com a poesia começou com a ilha maravilhosa, então escassamente povoada
e sem turismo”, lembra ele em sua obra completa publicada.
Anos depois, já estudante de Arquitetura
em Barcelona, voltou a escrever: “foi um primeiro período literário longo,
irregular e complicado. Agora sei que a causa principal foi o meu bilinguismo:
desde pequeno o catalão conviveu na minha família, mas com pouco conteúdo
literário, social e político, e com aprendizagem escolar em espanhol”.
E é o catalão, sua língua materna,
a língua a partir da qual começará a escrever, porque, como ele mesmo afirmava,
a poesia, como verdade, nasce sempre da língua materna. E embora o espanhol
também esteja muito presente na sua obra, é no catalão que Margarit mais se
destaca, cujo trabalho o júri do Cervantes definiu como uma ponte entre duas
línguas. Uma ponte que Margarit cruzou constantemente ao longo de todas essas
décadas, sem nunca se traduzir: seus poemas nascem na língua que o identifica;
a língua nunca é ― nunca deveria ter sido ― uma imposição.
“A aprendizagem”, escreveu
Margarit em Novas cartas a um jovem, “pertence ao poeta e a mais
ninguém. À sua solidão, sem outro guia que os clássicos para desenvolver a
capacidade de inspiração e a capacidade de autocrítica, que são os dois bens
mais preciosos para escrever poesia”. Os ecos rilkianos deste curto ensaio
ressoam ao longo do restante das páginas, em que o poeta não só se mostra em
dívida com seus professores ― Ausiás March, Catulo, Baudelaire,
Hölderlin, Cavafis, Bauçà, entre outros ― mas reflete sobre alguns dos grandes temas
presentes em sua obra: o amor, a religião, a filosofia e a solidão,
transformados no único lugar da criação: “Aconselharia ao jovem poeta a não
perder muito tempo em áreas onde a poesia tangencia a vida social. Ele
descobrirá precisamente os falsos poetas por causa de sua insistência em
dominar esses territórios. O poeta deve refletir sobre o motivo da solidão e de
onde ela vem. Refletir sobre como o individualismo moderno atua em bons poemas,
que já é a da personagem que fala em As flores do mal, por outro lado,
não muito diferente do individualismo de Aquiles na Ilíada”.
Ler os outros poetas de sua
predileção ensinou-lhe que “a inspiração, por distante ou estranho que pareça
ao poema, não pode vir se não da própria vida”. Assim notava que toda poesia é
realista com infiltrações do eu-escritor. O termo realista deve se
referir tanto às situações perfeitamente reconhecíveis e àquelas experienciadas
pela força imaginativa. É sempre comum encontrar na poesia de Joan Margarit um eu
em diálogo com um tu, que ora se confunde com o próprio poeta noutro
tempo, ora com poeta no instante de enunciação ― neste segundo caso é quando
se abre para os tons mais reflexivos.
Num momento de tantos falsos
poetas, Margarit representa a poesia e a verdade, representa aquela poesia que
escapa à utilidade e cuja validade não reside em quem a defende: “todos a podem
apreender, não existe isso de acesso privilegiado. Às vezes, a capacidade de
uma pessoa entender um poema tende a ser confundida com sua incapacidade de
explicar o que encontra no poema, o que ele a faz sentir.”
Margarit escreveu sem complacência
e com autocrítica para quem quer ler, porque sempre há poesia quando há um
poeta e um leitor que a lê; os caminhos de ambos se cruzam inevitavelmente, a
poesia é uma jornada compartilhada: “o poeta e o leitor sabem que esse caminho
de crescimento interior passa por uma aproximação à lucidez, à verdade.
Trata-se de lidar com a desordem, a dor, o mal, de tal forma que se ilumine com
uma clareza que por si só já consola”.
A poesia de Margarit é essa
clareza, é uma verdade lúcida. Em Casa de misericórdia (2007), livro com
o qual obteve dois dos prêmios recebidos no início dos reconhecimentos
sucessivos, encontra-se no poema que dá título à obra, esses versos que dizem
sobre a concepção que autor tem da poesia; depois da memória sobre um acontecimento
particularmente doloroso, “O pai fuzilado”, passa-se à exposição de seu
pensamento poético: “A verdadeira caridade dá medo. / Tal como a poesia: um bom
poema, / por mais belo que seja, será cruel. / Nada mais. A poesia é hoje / a
última casa de misericórdia.”
Segundo Túa Blesa, em leitura
sobre este livro para o El Cultural, ao identificar a poesia com uma
casa de misericórdia está dizendo como escrever poesia e é preciso entender que
também ler poesia é um refúgio frente às adversidades da vida: “na poesia se
encontra a salvação do desastre”. A poesia de Margarit, diz, é o resultado da
memória, do resgatar do esquecimento aquelas experiências que ofereceram uma
emoção singular, dolorosa em alguns casos, mesmo cruel, uma emoção que não pode
ser sepultada no apagamento.
“Quase sem querer, como para
muitos, sua voz se tornou familiar. Talvez porque, além de conseguir construir
uma obra considerável, sem silêncios e quedas, seu tom era confessional, o de
alguém que se confessa ao pé do ouvido”, escreve o amigo e também poeta da
mesma geração, Álvaro Valverde.
Entre as obsessões temáticas estão:
a Guerra Civil; a infância; a arquitetura; a casa; o mar; o amor; e a velhice.
No livro que deixou concluído em edição bilíngue, como sempre fez ―
no catalão materno e no espanhol ―, Animal do campo, aproxima-se
de suas últimas vivências sob a certeza da morte.
Ele próprio dizia não se importar
com a posteridade. Numa entrevista quando depositou na Caixa das Letras do
Instituto Cervantes um pequeno legado pessoal para o futuro, textos que só
virão a público em 2038, quando se cumpre o centenário do poeta disse: “Como me
preocupar com o que não saberei? É uma questão de sentido comum.” Joan Margarit
escreveu para o presente, embora saibamos que sua poética foi feita para durar,
mesmo que, e o poeta tem razão, nada saibamos do futuro.
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