Índice médio de felicidade, de David Machado
Por Pedro Fernandes
“As pessoas pedem ajuda sem
perderem um minuto a pensar nas implicações desse gesto, uma certeza incrível
de que estamos sempre prontos para largarmos aquilo que temos nas mãos e irmos.”
A curiosa sentença não seria isso se não fosse seu autor alguém que com um
grupo de amigos tentou investir numa plataforma virtual que pudesse servir às
pessoas na troca de favores, realizando umas com as outras o que não estavam ao
alcance de realizar sem a ajuda de alguém. Um ano depois do insucesso do
projeto, Daniel se questiona sobre quais razões podem levar as pessoas a não
procurarem no outro um apoio que seja.
Conformado ou não com o fracasso
da ideia, uma série de acontecimentos penosos invadem a vida da personagem, a
começar pelo desemprego depois de se dedicar quase duas décadas como importante
funcionário de uma agência de turismo. São os difíceis anos de uma das vagas da
crescente crise instaurada no seio do capitalismo. E Daniel se encontra bem ao
centro da correnteza; sem emprego, toda a sonhada e inatingível estabilidade se
desfaz: primeiro, a família, quando a companheira e os filhos vão para Viana do
Castelo e ele, por algum fiapo de esperança (o que mais tarde se transforma num
certo orgulho mesquinho) prefere ficar em Lisboa; depois, uma variedade de
conflitos desenvolvidos no núcleo de seus amigos que o empurram para se assumir
com o papel de ajudante, mesmo se resta quase ou nenhum horizonte para si próprio.
Quer dizer, por essas qualidades, essa personagem funciona como um anti-herói
do nosso tempo, afinal, suas fragilidades e algumas das interrogações são as de
qualquer um numa sociedade governada por frágeis certezas, mesmo que admita que
“Talvez o mundo tenha sido sempre um lugar complicado”.
O que constitui o fio condutor da
narrativa, estreitado com a profissão de toda uma vida do protagonista, é a
proposta do amigo Xavier: o desenvolvimento de uma escala capaz de oferecer um
índice médio de felicidade do povo de cada país. Fascinado pela tarefa de
quantificar as coisas, mesmo as inapreensíveis, este misantropo que há anos governa
toda a vida a partir de casa entende que é possível estabelecer, a partir de um
complexo de variáveis uma nota capaz de nos orientar qual seria nosso lugar no
mundo. Desacreditado dessa possibilidade, Daniel segue o curso da tabela para
se colocar em contradição com os números; apesar de tudo o que enfrenta, percebe-se
sempre fora da média. A atitude de Xavier se oferece como uma crítica vivaz ao
nosso tempo sempre afeito à quantificação de tudo e nada tem de descabida,
afinal, anualmente a Organização das Nações Unidos oferece uma escala sobre os
países mais felizes.
Enquanto guarda alguma esperança
pela plataforma de ajudas por ele criada, Xavier é o único que entra em contato
com uma variante do mundo não alcançada por aqueles que deslizam pela superfície:
a descoberta se oferece quando o ex-professor de matemática é vitimado pela
barbárie de um grupo de adolescentes afeito a praticar toda sorte de
humilhações com as gentes marginalizadas. A situação leva-o a entrar em contato
com as atividades criminosas circulantes nas zonas mais obscuras da web;
é nesta sociedade anônima que disponibiliza online todas as suas investidas que
se encontra Vasco, filho de Almadôvar, preso e amigo em comum entre Daniel e
Xavier. Enquanto todos acreditam que essas atitudes de gangue formam parte na vida
desenfreada dos adolescentes ― afinal os adultos sempre reconhecem que
nesta idade foram capazes de praticar seus absurdos ―, Daniel se coloca, em parte
por isso, responsável pela conduta desses jovens. Para ele, não é apenas o
desarranjo econômico que desfaz todas as pequenas mordomias de homem de classe
média, é uma desestruturação moral e uma perda de controle sobre as coisas.
Ao tocar no subsolo da internet,
podemos sublinhar, dentre as várias crises instauradas no romance, uma que parece
significar qualquer coisa de trânsito entre um círculo e outro da história
recente do século XXI. Trata-se de uma situação que também acentua a perda de
controle (se ele existe) entre essas gerações de convívio sobre a qual falamos
acima. O distanciamento do organismo familiar favorece o aparecimento de
difícil certeza sobre o papel dos pais na educação dos filhos; descobre-se que
não mais responde sozinho pela formação deles, visto que, estão expostos à
grande máquina de informações que é a internet e através dela passa a encontrar
outros meios de aprendizagem facilitadores do alargamento de distâncias entre
pais e filhos. O exemplo mais radical é o de Vasco, mas vale chamar atenção
para certa decepção de Daniel com a submissão do filho Mateus para o computador
e mais tarde a descoberta de que ele acompanha fielmente os princípios de um youtuber
que se diz interessado em levar seus seguidores ao elevado grau da felicidade
pelos princípios do zen budismo. É assim que, contra o discurso da normalização
das atitudes adolescentes, o protagonista de Índice médio de felicidade
percebe que algo de muito terrível se forma nas regiões mais desconhecidas da
realidade que foge integralmente os limites aceitáveis de uma desproporção
juvenil e as vias que favorecem esse aparecimento são impossíveis de contenção.
Não é apenas o impasse geracional
o que se manifesta nessas relações entre Daniel e o universo dos jovens. O que todos
aceitam como a normalidade das coisas, mesmo a vítima das circunstâncias como o
ex-professor, e é estranhamento para o nosso protagonista, se situa no lugar do
inapreensível e que só mais tarde avança na superfície da ordem social perfazendo
o radical limite de negação do estabelecido. Há nesse não-lugar infinitos possíveis
ideológicos, das forças primitivas que governam a todos às reiterativas forças
dos discursos rasos e extremistas. O campo fértil, para tanto, é a crise do establishment
e a suspeita que ganha melhor contorno no tempo posterior ao de Daniel, quando
sociedades inteiras enfrentam a ascensão dessas formas em nada novas de pensar
e agir, arrasta-nos agora para outra urgência: é impossível, primeiro, reconduzir
tais forças para o obscuro porque o paramento legal que construímos é incapaz de
contê-lo e, segundo, será inevitável que elas prevaleçam, de agora em diante, como
decisivas e impactantes, uma vez que não funcionam conforme os modelos
discursivos aprendidos pelos da geração de Daniel já agora impotente porque
incapaz de tomar qualquer atitude redentora.
Há uma pergunta que acompanha a
todo tempo o protagonista do romance de David Machado: “quando é que mundo
mudou tanto que eu perdi a capacidade de me adaptar”. A verdade é que, pelos
mesmos limites de se estabelecer uma certeza acerca da felicidade do mundo, resulta
inapreensível a fronteira que determina suas mudanças. O calendário histórico
costuma estabelecer algumas divisas: o fim da Segunda Guerra Mundial, a Queda
do Muro de Berlim, o fim da Guerra Fria, o aparecimento da Internet, a Crise de
2008 etc. Mas isso não constitui o ponto de viragem da ordem mundial; é antes o
resultado de uma complexa e indefinível transformação que se processa desde o
agora enquanto envolvidos pelas nossas próprias necessidades sequer reparamos
no seu movimento. É natural quando a vida corre o ritmo que planejamos correr. Quando
isso se desfaz, somos arrastados para um vazio total, uma perdição movida pela
incapacidade de lidarmos com o inesperado.
A certa altura do seu périplo pela
decadência, Daniel constata que “O problema já não é sequer andar cada um a
lutar para seu lado. O problema é a quantidade de pessoas que já não lutam
sequer”. A observação parece importante porque nela se contém a leitura possível
para a sombria travessia do anti-herói. O protagonista é este homem que,
sozinho, busca não se perder do fio que acredita determiná-lo. Sua impotência
se verifica quando mesmo isso resulta impossível, uma vez que nada no seu entorno
se estabelece por fio em comum. Quer dizer, seu drama é o do indivíduo incapaz
de se manter por seus próprios meios, é do embate com suas próprias verdades; todo
seu racionalismo, toda sua dedicação e interesse por restabelecer o princípio
organizativo da vida são insuficientes porque não encontram respostas no deserto
do real. O que o romance demonstra é o doloroso crepúsculo de uma civilização,
mas o esvanecer do indivíduo centro de todas as coisas.
Constatado isso, é sempre possível
que nos perguntemos qual a solução para tanto; se devemos nos integrar ao
grosso da correnteza ou se devemos nadar contra ela. E, claro, como toda peça
literária, as duas possibilidades são experimentadas, mas não restam conclusões
sobre qual delas seria viável. E não é que as respostas inexistam. É que elas
são produtos de uma longa construção, feita das escolhas que fazemos. Daniel está
continuamente confrontado com a necessidade de fazer suas escolhas ou responder
por elas e se não perece pelas circunstâncias é porque terá aprendido que nada
está dado, que só é possível viver no embate com o mundo. Isto é, não existe um
tempo e um lugar de felicidade absoluta, como nos impõe o modelo capital que
habitamos, seja porque ninguém é totalmente feliz, como acredita o cético
Xavier, seja porque felicidade não é um produto catalogado e disponível ao
nosso alcance numa prateleira de coisas adquiríveis.
Ainda nesse sentido de habitação
do deserto do real, Índice médio de felicidade reafirma algo extremamente
simples, algo que o próprio Daniel alguma vez pode acreditar e depois, ao que
parece, passou a lutar contra: não existimos sozinhos, sequer protegidos pelas
bolhas que fabricamos; é impossível habitar o mundo por nossas próprias leis. Todos
respondemos até pela atitude que deixamos de tomar. E o outro é nossa condena,
mas pode ser também a nossa salvação. O mesmo com o que condenamos. Nele poderá
vigorar alguma saída. Aconteça o que acontecer, este parece ser um dos
princípios inalteráveis da natureza. Foi o que nos formou e nos trouxe até os
dias que correm. E apesar disso, é contra o qual mais lutamos desde o aparecimento
do indivíduo. Talvez o caminho para uma resposta comece a partir daqui.
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