Gyula Krúdy
Escritor de excepcional
fertilidade criativa, autor de mais de três mil folhetins e contos, sessenta
romances e novelas, mais de mil artigos de jornal, quatro peças de teatro e
aventuras para jovens publicadas em livros em periódicos e folhetos de
Budapeste e arredores. O polígrafo era capaz de trabalhar um dia e uma noite
inteiros, chegou a colaborar com até quinze revistas e jornais ao mesmo tempo.
Gourmet sábio, degustador de
vinhos valiosos, a figura noturna mais icônica da Budapeste na virada do
século, conhecedor de tabernas, amigo de atrizes e prostitutas, habitante de
bordéis e hotéis, jogador de cartas e entusiasta das corridas de cavalos,
temido adversário dos últimos hussardos e especialista em roupas femininas.
Escritor solitário, líder de uma
geração literária à qual não pertencia, fundador da nova prosa húngara. Duas
vezes casado, marido infiel com quatro filhos, doente do coração, pulmões e
estômago, alcoólatra pobre e esquecido, enterrado ao som do violino cigano.
Gyula Krúdy é um pouco mais
diferente dos glutões literários; é um dos escritores mais populares entre os
leitores húngaros. Sua prosa deixou marcas em toda a narrativa do século XX, de
Sándor Márai a Imre Kertész. É o grande mestre dos cavaleiros de neve,
um grupo de escritores finisseculares que começam sua carreira no final do
século XIX sob a influência do modernismo, do simbolismo e do impressionismo,
além das novas investidas da investigação psicanalítica.
A designação cavaleiros de neve
provém de uma recorrência comum aos escritores desta época; Károly, Lovik, os
irmãos Cholnoky, Sándor Bródy e Gyula Szini guardam a preferência pela
memória, o sonho e a fantasia ante a realidade imediata. Não é casual que o
último livro de Krúdy tenha como título A vida é sonho. Suas personagens
são figuras do passado que sofrem num presente por elas inconcebível e a
realidade parece ser um corpo estranho metido na sua vida, sem razão.
Gyula Krúdy nasceu em 1878 numa
cidade noroeste, na parte mais pobre da Hungria, Nyíregyháza. Era o filho
natural de sua mãe, que o teve aos dezessete anos, de uma relação ilegítima com
o Sr. Krúdy, o dono da casa onde ela trabalhava como empregada doméstica. O pai
decidiu se casar com a mãe de Gyula quase vinte anos depois, e depois de terem
dez filhos juntos. Os antecedentes paternos eram pessoas rebeldes, sobre os
avós sempre se contavam anedotas peculiares.
Desde pequeno, Krúdy tinha apenas
um objetivo na vida: “Ser escritor e nada mais.” Aos 16 anos começou a
trabalhar para jornais e revistas, deixou a família e foi morar na capital,
Budapeste. Escrevia contos desde os tempos do colégio e publicou o primeiro
volume com esses textos antes dos vinte anos. Até 1911 já havia alcançado quase
40 volumes, no entanto, sua carreira de sucesso começou em 1913 com o romance A
diligência postal vermelha (e sua continuação)*, que durante os primeiros
oito meses alcançou três edições, e de acordo com Endre Ady, um contemporâneo “lido
por todas as mulheres, até mesmo as estudantes nas escolas para meninas.”
Foi nestes mesmos anos que criou a
figura de Szindbád (A juventude de Szindbád ― 1911, As viagens de Szindbád
―
1912, O castelo francês ― 1912, A conversão de Szindbád
―
1925), um descendente literário do marinheiro famoso das Mil e uma noites,
um homem melancólico que vive aventuras de amor na decadente Budapeste focando
de uma forma incomum a cidade e a época. Szindbád e Kázmér Rezeda, o
protagonista de A diligência postal vermelha, reaparecem em várias das
obras de Krúdy como alterego do escritor, embora ele quisesse evitar a
autobiografia. Nessa mesma época publicou outro de seus romances mais
conhecidos, a história de uma menina: Girassol (1918).
Grande parte de sua vasta obra
começa a ser redescoberta no auge do levante nazista na Europa. Trágico momento,
mas fértil para o estabelecimento de seu universo literário, tal como afirma
Paulo Schiller no texto de apresentação para O companheiro de viagem no
Brasil: “Suas histórias restauravam o que a nação havia perdido, a
sensibilidade para a magia que vivia no gesto mais despretensioso, para o que
havia de milagroso num olhar recatado ou sedutor.”
Sua obra é, dessa maneira uma ilha,
como a Ilha Margarida onde viveu entre 1918 e 1930, no meio do Danúbio, um
lugar então idílico, em um ambiente natural adequado para a criação. Krúdy gostava
da morada, mas só conseguia trabalhar em cafés, tabernas e restaurantes. Conseguia
escrever até três artigos por dia, desde que com uma taça de vinho à mão. A sua
figura pensativa e sempre solitária aparecia todos os dias nos locais mais
importantes de Budapeste. Era um homem bonito e atraente, um homem que se dava
bem com todos, mas não tinha amigos íntimos e, mesmo que tenha se casado duas
vezes ―
primeiro com a contista Bella Spiegler, seis anos mais velha que ele, depois
com a ex-mulher, vinte e um anos mais jovem, de um gerente de hotel que o
escritor frequentava ― tinha amantes por toda a cidade.
Tinha fama de boêmio, o que é
duvidoso se considerar que sua obra completa ocupa 140 volumes. Era, o que se
chama, uma lenda viva; conta-se que uma noite, sem muita dificuldade, desarmou
um hussardo bêbado e como ganas de guerreiro entregou a espada à dona do
bordel. Era capaz de escrever sem parar por 24 horas, entre comes e bebes. Era
um grande falastrão, mas sabia ouvir e não dizer nada por horas e horas. Algumas
de suas lendas tinham seus fundamentos: ganhava muito e gastava mais da conta,
era um generoso com todos, da família aos amigos que o acompanhavam nas
tabernas. Num dia normal, segundo a sua autobiografia (N. N ―
1922), trabalhava até às doze, ia ao hipódromo, depois ver uma amante, à tarde
costumava duelar, seguido de longos jogos de cartas nas cafeterias literárias,
e depois um jantar no Casino Nacional.
Em 1919, durante a Revolução, quando
se mostrou a favor dos progressistas e, após seu fracasso, Krúdy sofreu
represálias; mesmo assim não se arrependeu de suas ações e foi marginalizado.
Os editores deixaram de publicar suas obras, os jornais não aceitaram seus
artigos, e devido ao seu modo de vida ― charutos e cigarros, comida farta,
conhaque e bom vinho ― aos cinquenta anos adoeceu do coração, pulmões e
estômago.
Sua agonia durou cinco anos,
embora várias vezes tenha tentado parar de beber, e graças a um prestigioso
prêmio literário, o Baumgarten ― outros vencedores importantes foram
Margit Kaffka, Dezső Kosztolányi, Attila József, Mihály Babits ―
ele conseguiu pagar parte das dívidas acumuladas. Porém, no último ano,
desiludido com a realidade ao seu redor, incapaz de enfrentar as despesas com
moradia, voltou a frequentar as tavernas da velha Budapeste. A anedota a seguir
reflete muito bem a atitude de Krúdy em relação à morte. No hospital e
mortalmente doente, sua esposa o pegou ouvindo um violinista cigano, com uma
garrafa de vinho tinto na mesa de cabeceira, apesar das ordens expressas do
médico que proibiam o consumo de bebida.
Morreu em 1933 em sua casa sem luz
e sem água, depois de ter voltado de sua taberna favorita, em sua mesa havia
apenas uma vela. As autoridades oficiais não compareceram ao seu funeral, mas
foi acompanhado por amigos, atores e atrizes, prostitutas e cantores da noite.
A figura de Krúdy é como a de
muitos dos seus personagens.
O mestre dos cavaleiros de
neve
O jovem Gyula Krúdy começa a
escrever influenciado pelos grandes escritores românticos e logo descobre Turguêniev,
que ela “gosta ainda mais do que as mulheres”. Entre seus ideais estão Charles Dickens,
William Makepeace Thackeray, Guy de Maupassant, Aleksandr Púchkin e Émile Zola;
ele também aprende muito com os mestres realistas húngaros, porém, os supera
conhecendo as novas tendências do impressionismo.
Krúdy é o grande psicólogo da
memória e é o artista mais importante na associação de ideias. Sempre ligado ao
entorno húngaro, escreve de forma semelhante a Marcel Proust, embora não
conheça as obras do escritor francês. Seu mundo é o de memórias, porém os
detalhes da realidade passada aparecem com uma plasticidade maravilhosa. É
capaz de criar uma atmosfera erótica com meia frase, e com a outra metade
desperta fome e sede: nenhum outro autor húngaro escreveu tanto e com tantos
detalhes sobre a boa comida e o bom vinho como ele.
Gyula Krúdy é um burguês
antiburguês. À maneira do jovem Rainer Maria Rilke em Praga, descreve com uma
prosa cativante a decadência de Budapeste no século XX e a transformação da
cidade moderna que emergia do velho mundo e é por isso o escritor por
excelência da capital húngara; não há rua, avenida ou esquina perdida que não
faça parte da sua enorme obra. “Dou vida às memórias em mim adormecidas e
desenho sinais nas encruzilhadas, desfeitos pela chuva” ― afirma ele sobre sua arte.
“A única coisa que importa ―
dizia ―
é a literatura e o canto do grilo”. Suas obras aparentemente não dizem muito,
pois a essência de sua arte está escondida nos detalhes: na escolha dos
adjetivos, nos truques de estilo ou na forma da frase. “É um sonhador” ―
diziam os seus contemporâneos.
Sua obra também merece atenção do
ponto de vista da intersecção entre ficção e realidade. A figura de Krúdy está,
desde o início, como registrado na primeira parte destas notas, cercada de
lendas, enquanto as personagens de seus romances ou contos muitas vezes se
formam a partir de figuras históricas, facilmente reconhecíveis. Essas figuras
costumam se identificar com os heróis românticos. O jornalista Kázmér Rezeda, para
retornar ao exemplo, identifica-se com Eugênio Onêguin, e Eduárd Alvinczi com o
Conde de Monte Cristo.
O mundo ficcional desse escritor
se constitui de alguma maneira da compreensão sobre a realidade enquanto sonho
completando-se com um ditado húngaro segundo o qual “comer, beber e sonhar, são
o melhor da vida”. Seus romances e contos são feitos de um enredo não palpável;
isto é, as personagens estão flutuando entre o desfrute da vida e a constante
melancolia de perdê-la.
Krúdy é um escritor singular e
solitário, mas sua época foi marcada por um boom na cultura húngara, quando
revista literária Nyugat alçou a posição da mais importante publicação
de todos os tempos. Em torno dela se organiza toda vida artística húngara da
primeira parte do século XX, e algumas dessas figuras são os reconhecidos
Sándor Márai, Dezső Kosztolányi, Antal Szerb e outros que se fizeram
mundialmente conhecidos.
O autor de O companheiro de
viagem convive com todos os criadores seus contemporâneos, colabora assiduamente
com a Nyugat, mas sua vida não ocorre nos círculos literários, ele não
se identifica com movimentos, grupos e tendências. É um sujeito independente na
carreira e na vida privada a ponto de não poder ter relações sólidas de amor e de
amizade.
Pretende descrever a época em que
vive, planeja uma série de obras sobre Budapeste, e são esses “romances urbanos”
que o fazem reconhecido. Em algumas obras evoca a cidade rural de sua infância,
em outras, séculos passados da história húngara, e chega mesmo a construir
romances de um vivo realismo. Mas seu mundo mais autêntico é o de Szindbád, o
grande viajante que sai todas as noites para ver a lua sobre o Danúbio e
caminhar pelas ruas de Budapeste na virada do século, e o de Kázmér Rezeda, o
frustrado escritor que se perde nas noites melancólicas da capital.
Entre suas últimas obras (A
vida é um sonho, Herói de cinta azul, Purgatório) destaca a
verdadeira história de Eszter Solymosi, judia húngara acusada de matar
recém-nascidos para beber seu sangue. Krúdy torna-se, assim, o primeiro autor na
sua literatura a expor o antissemitismo prevalecente em 1931, claro, sempre temendo
as represálias porque o livro foi publicado por capítulos em um jornal. E elas,
sabemos, existiram.
A sua importância na história da
literatura húngara é indiscutível: libertou as formas tradicionais da narrativa
e rompeu com as regras da forma romanesca. O tempo lírico “melódico”, o domínio
das imagens e o estilo rítmico-musical são algumas das inovações de Krúdy no
tratamento de desestabilização da prosa. Para Paulo Schiller “o estilo
literário de Krúdy não se acomoda a recortes convencionais.” E, acrescenta que ele
é um “poeta que contava sonhos em prosa”.
Sándor Márai, inspirado na vida
incomum de Krúdy, escreveu um romance sobre seus últimos dias com o título Szindbád
volta para casa. Não há nenhum escritor húngaro contemporâneo desde Magda
Szabó, Ádám Bodor, Péter Esterházy, Péter Nádas até Imre Kertész que não tenha
gostado ou pelo menos se deixado influenciar pelo mestre dos cavaleiros de
neve.
* Exceto O companheiro de viagem
que tem tradução no Brasil, as traduções de títulos de obras citadas neste
texto são livres, e a partir de suas versões em língua inglesa.
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