Escrever de ouvido: Clarice Lispector e os romances da escuta, de Marília Librandi
Por Sérgio Bairon*
Está aí... o mergulhar no labirinto de Clarice Lispector por
meio do outro-mesmo labirinto, o do ouvido, que cria múltiplas e sinestésicas
escutas. Inspirado pela própria Clarice, o livro de Marília Librandi poderia
ter inúmeros títulos: de labirinto em labirinto: a escuta; topofilosofia da
escuta; a escuta no entre a oralidade e a escrita; ruínas da
linguagem como escuta; o caleidoscópio aural da escrita; a escuta dos objetos
gritantes... e tantos outros, que revelam uma teoria criada pelo perpassar a
literatura, jamais, estacionada nela!
A teoria da escuta desenvolvida por Marília Librandi,
inaugura uma profunda interlocução entre crítica literária e filosofia,
provocando uma dobra em qualquer sentido que se apresente como significado
literal. Quando o que se busca compreender é o que a escuta desvela, o que
podemos escrever a respeito desta movediça reticularidade polifônica, nunca poderá
ser expresso como sentido estático.
O sentido que se desvela é a ressonância
como resultado do encontro sinestésico entre compreensão e jogos palinódicos da
linguagem. A escuta, aqui, é proporcional a um caleidoscópio de espelhos, que
tem no labirinto do ouvido um índice de sua frágil e imprescindível estrutura.
O labirinto (do ouvido) age como uma metonímia do modo de ser nonsense que
acontece na escuta. Se é ele que nos garante o equilíbrio topológico, é também
o que pode nos desatinar à labirintite, da mesma forma, a escuta como o ato de
tatear sentidos possíveis, tem que dialogar com o nonsense, para que algo de
compreensão aconteça.
Marília nos desvela a obra de Clarice como ruídos na música,
como estilhaços de sentido, não peças de quebra-cabeças, mas como fragmentos
que se unem em “aparente aleatoriedade”, no interior de uma espécie de
ecoescrita de estilo Gaudi, ou seja, justamente pelo fato das peças não se
encaixarem é que podemos encontrar uma “harmonia”. Esta comparação não é
gratuita, pois a teoria da escuta de Marília Librandi expressa um conjunto de
sonoridades tridimensionais, que não sendo lineares ou sequenciais, são
composições nunca estáticas, porque atuam em redes de sentido, revelando
transveredas aurais na obra de Clarice. Frente a qualquer proposição de sentido
linear, no interior das narrativas com começo, meio e fim construídas desde a
antiga tragédia, a escuta é sombra que assombra a iluminação. No interior da
metáfora platônica da caverna, a escuta estaria na relação entre as sombras e a
escuridão, não entre as sombras e a luz da fogueira.
Comentando Nancy sobre o “escutar”, Marília afirma: “denota
concentração intensa e específica naquilo que é recebido em termos de
ressonância corporal, e que se preste atenção, sobretudo à entoação, aos
timbres, aos ruídos e aos silêncios”. É justamente nestes estados de suspensão
de sentido que Clarice estaria imersa: um silêncio que, indelevelmente, não
cessa de se inscrever!
Depois da leitura deste livro, não somente Clarice, mas um
considerável naco da literatura brasileira estará repleto de labirintos
acústicos para serem experimentados. Onde qualquer signo que atue como
figurativo inaudível flerta com o figurativo inominável, pois os ruídos e o
silêncio estão para o sentido de um texto de Clarice, como as ruínas estão para
a compreensão dos espaços, considerando que as ruínas não estão vivas,
simplesmente, como resquícios do passado, mas como a base mais insólita e
poderosa à construção de sentidos futuros.
Não adiem esta escuta!
* Livre-Docente Escola de Comunicação e Artes / Universidade de São Paulo. Diretor do núcleo Diversitas (USP).
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