Elizabeth Hardwick: lições de estilo
Por Antonio Muñoz Molina
Notei pela primeira vez o nome
Elizabeth Hardwick em um ensaio de David Shields que me impressionou muito, Reality
Hunger [Fome de realidade]. Em tom polêmico, e tecendo as páginas do que
chamou de “um manifesto”, com todo tipo de citações e fragmentos de livros,
reunidos como uma colagem, Shields propôs uma literatura que, para captar mais
plenamente o imediatismo da realidade, a variedade e desordem do presente,
escapava às formas tradicionais do romance ou das memórias, ou misturava-as sem
cerimônia, acrescentando também vestígios do ensaio, do jornal, da crônica do
jornal. A “fome de realidade” de um leitor contemporâneo, disse Shields, não
pode mais ser satisfeita por gêneros literários estabelecidos, estagnados,
fechados em si mesmos, inclinados a uma coerência interna que exclui o
aleatório, o fragmentário, o material barato e confuso de nossa experiência
mundial.
O livro de Shields me influenciou
mais porque naquela época eu estava relendo, com lápis e caderno, para um
seminário, O amante, de Marguerite Duras. Como tantas vezes acontece,
pensei que me lembrava bem do livro, por isso a minha surpresa foi grande ao descobrir
o quanto o tinha esquecido, permitindo também que a minha memória se
confundisse com a do filme. A descoberta foi a de uma liberdade narrativa
absoluta em que se desfez o fio condutor da história, num ir e vir entre o
passado e o presente, entre passados diversos, que mais se assemelhava à
divagação, às descontinuidades, aos caprichos da memória, às correntes incertas
de recordação. A minha formação estética e as minhas inclinações pessoais
levaram-me muitas vezes a construir os meus livros de uma forma muito
organizada, com um sentido muito poderoso de forma, daquilo que se expressa, a
meu ver não sem antipatia, na palavra “estrutura”: estrutura soa como uma armação,
engenharia, gravitação e espessura de materiais muito sólidos.
O que estava naquele romance de
Duras era leveza em vez de peso, fluidez e não gravidade, não um caminho
marcado desde o início ou uma composição em que se ouviam as peças que se
encaixavam, mas uma espécie de tatear, um ir e vir deixando-se levar pelos
processos da memória e do próprio ato de escrever, um cuidado ou um respeito
para que as imagens e sensações cheguem ao leitor com limpeza suficiente para
não sobrecarregá-lo com informações exaustivas, para torná-lo consciente dos
silêncios e dos espaços em branco.
Entre os exemplos citados por David Shields de prosa híbrida
e não sujeita às convenções dos gêneros estava Sleepless
Nights [Noites insones] de Elizabeth Hardwick. Um bom leitor é um
propagandista. Shields falou com tanto entusiasmo desse livro quase
desconhecido que imediatamente comecei a procurá-lo. Foi publicado em 1979 e
por muitos anos foi difícil de encontrar. Felizmente, ele foi reeditado em 2001
na coleção de literatura rara e resgatada da The New York Review of Books,
livros de bolso com um design que mãos e olhos buscam avidamente.
Hardwick pertenceu ao grupo de
fundadores da revista e, ao longo dos anos, escreveu ensaios memoráveis, resenhas
extensas e profundas sobre livros, crônicas de viagens e retratos da vida de
pessoas que conheceu. Em abril de 1968, foi a Memphis e participou da passeata
para protestar contra o assassinato de Martin Luther King, e depois a Atlanta
para assistir ao seu funeral. Sua prosa não tem a velocidade inconstante de
Joan Didion, nem sua agudeza para distinguir o revelador do trivial, mas em
troca é muito mais reflexiva, e mais cordial com a experiência humana, muito
mais comovida, sem aquela estranheza surpreendente que serve a Didion para
marcar sua distância de tudo. Elizabeth Hardwick escreve sobre uma figura do
passado, Melville ou Henry James ou George Eliot ou Virginia Woolf, e dá a
densidade e proximidade de uma pessoa real que ela teria conhecido. E ao
escrever sobre um de seus contemporâneos, Truman Capote, por exemplo, combina o
retrato acurado e ácido do natural com a avaliação cuidadosa da obra literária.
Situada no mundo intelectual de
Nova York, em uma posição privilegiada, embora também marginal ―
por muitos anos ela foi conhecida sobretudo como a esposa e depois a viúva de
Robert Lowell ― Elizabeth Hardwick igualmente aproveitou as vantagens dessa
proximidade mas de uma certa distância. Ela certamente não brilhou na vida
tanto quanto merecia, mas também teve sossego suficiente para ler e observar,
para absorver as coisas sem espanto, os livros, a vida política, o pulso de
Nova York, a memória indelével de sua origem no sul, as viagens pela Europa, as
paisagens selvagens, as solidões de inverno da costa do Maine.
Todo este seu mundo está em Noites
insones. Alguns dos capítulos do romance foram publicados por Hardwick
durante a década de 1970 na The New York Review. Sua brevidade, cerca de
140 páginas, faz parte do seu atrativo e de seu mistério. Fernando Pessoa
concebeu o seu Livro do desassossego como uma “autobiografia sem fatos”.
Em Noites insones há uma confissão modesta, uma autobiografia implícita
em que a vida solitária da mulher que conta é definida pelas ausências que ela
sugere, o “nós” que lhe era natural noutro tempo e que já não pode usar, as
cartas dos anos cinquenta lembradas ou inventadas, dirigidas a uma “querida M.”
que é, sem dúvida, Mary McCarthy, na qual ela percebe uma vida em comum nos
seus primórdios, ainda longe da amargura, da doença mental, do abandono.
Em sua solidão de mulher madura em
Nova York, Hardwick relembra o mundo igualmente opressor e adâmico de sua
infância no Sul e seus encontros com os músicos de jazz na década de 1940, nos
grandes e decadentes hotéis a oeste da Broadway, em um dos quais conviveu com
Billie Holiday, e testemunhou sua beleza, seu talento supremo, sua
vulnerabilidade e ferocidade, sua propensão para o desastre. Criada no sul,
Elizabeth Hardwick tinha uma sensibilidade especial para o sofrimento e a
injustiça. Agora que penso sobre isso, seu retrato de Billie Holiday é sua
obra-prima.
* Este texto é a tradução de “Elizabeth
Hardwick: lecciones de estilo”, publicado aqui, no jornal El País.
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