Dom Casmurro, de Machado de Assis
Por Pedro Fernandes
“Os instantes do Diabo intercalam-se nos minutos de Deus.”
A vasta, rica e instigante bibliografia
sobre Dom Casmurro, bem como a naturalização popular de um romance que,
inusitadamente, quase se imiscuiu no imaginário do leitor brasileiro ― é
possível que muitos o tenham lido só de ouvir falar sobre o enigma amoroso
proposto pelo narrador ― coloca qualquer novo texto sobre este romance em pelo
menos um impasse: a fatalidade de nada acrescentar ao que já foi dito. Não é
que a obra esteja esgotada passado mais de um século de existência, mas, nesse
caso específico, as fronteiras de interpretação estão todas descobertas e algumas
determinadas e, assim como a verdade segundo a qual a terra é redonda, inquestionáveis.
Machado de Assis foi um exímio
criador. Explorou como ninguém as várias possibilidades de estabelecimento de
um enigma, a força motriz de grande parte de seus textos mais conhecidos. Lidou
naturalmente com o limiar e a dissimulação da palavra, ao ponto de séculos depois
continuar arrastando inocências para a confiança dos seus narradores sempre
suspeitos. O narrador é, dentre as categorias narrativas, a mais bem trabalhada
pelo Bruxo do Cosme Velho e, apesar de muitas das suas reinvenções serem
copiadas, jamais foram superadas pelos escritores que vieram depois dele. E há
nessa relação entre o enunciador e o discurso ficcional não uma sobreposição
entre aquele e este; o escritor conhece a medida exata do equilíbrio entre as partes.
Quer dizer, o narrador é apenas um dos princípios criativos cujo protagonismo
se oferece pela maneira como conduz a narração ou pelo lugar excepcional
ocupado na narrativa, como é o caso célebre de Memórias póstumas de Brás
Cubas, romance singularizado pelo autor-defunto.
Em Dom Casmurro, o
princípio da sedução, traço que envolve todas as situações narrativas das
personagens que formam a dorsal da narração, se produz pela rápida intimidade
forjada pelo narrador de conversa despretensiosa, muitas vezes galhofeira e
alheia a determinados virtuosismos de linguagem. Entre o início e o final da
narrativa, se mantivermos o distanciamento e a suspeita com os quais somos educados
na escola da crítica literária, percebemos claramente a escalada do grau de
intimidade do narrador para com a quem ele conta; se num primeiro momento esse
outro sequer aparece enunciado, à medida que avançamos, percebemos que ele é
logo o motivo do narrador que deixa de ser o fulano que contará abertamente sua
história para contar a história que seu ouvinte gostaria de ouvir. Entre uma e
outra se forja uma terceira: a história possível.
Dos vários capítulos que funcionam
como introduções do capítulo posterior, conforme nota o narrador de Dom
Casmurro, o 119, “Não faça isso, querida!”, é o que melhor justifica os
apontamentos do parágrafo anterior: “A leitora, que é minha amiga e abriu este
livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje”, diz,
“quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso,
querida; eu mudo de rumo.” Aqui apresenta-se não apenas a determinação do
narratário, o leitor implícito na conversa desenvolvida no âmbito da ficção, como
o progressivo afastamento da verdade possível para verdade narrada. No capítulo anterior, “A mão de Sancha”, Dom
Casmurro se dedica a longamente divagar sobre as evidências de uma sedução
amorosa entre a mulher do seu melhor amigo e ele; o empenho é tanto que, o
ouvinte ingênuo poderá acreditar que no passo seguinte o narrador contará do
envolvimento e destilará as cores de uma tragédia, o que não acontece. O
sugerido, entretanto, está posto, mas o ouvinte ingênuo envolvido pela atmosfera
forjada pelo contador apenas reafirmará a ilusão da sinceridade de um homem
que, taciturno e fechado consigo mesmo, encontra-se continuamente indisposto a dizer
tudo sobre si.
Este excerto não revela apenas um
instante da narrativa; conjugado ao andamento da história, ele é ilustrativo
para uma compreensão desse romance não como revelação, o que pode parecer à
primeira vista, mas como dissimulação. A busca de Dom Casmurro é por uma biografia
capaz de o igualar aos grandes homens da história, mas ao se aproximar do
vivido verifica que não existe grande história; toda a vida é uma miséria, um
terrível blefe, uma tentativa de aproximação às projeções que fazemos mas sempre
distanciamentos e, por sua vez, um fracasso. As biografias são um consolo que
nos permite eternizar o engano da glória. Desde essa descoberta, realizada ante
as pinturas que ilustram as paredes de sua casa e a deslindar da narrativa, o
narrador se dedica a preencher sua solidão enquanto houver tinta e papel
emendando e remendando seu próprio retrato.
Isso implica dizer que tudo o que
aí se pinta é tão natural quanto os afrescos de César, Augusto, Nero e Massinissa,
reproduções de reproduções da antiga casa da Rua de Mata-Cavalos. O gênio de
Machado de Assis leva a dissimulação ao limite neste romance. E, uma vez
falarmos sobre retratos e sobre dissimulação, é notável como aqueles objetos
guardam uma onipresença em Dom Casmurro: a princípio, é o retrato de
casamento dos pais de Bento (o Casmurro) – a descrição dessa fotografia contém
pelo seu oposto o destino do casal Bento e a mulher pela qual guarda obsessão,
“O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser
comparada à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade”,
isto é, o retrato simula o amor como um negócio determinado pelas convenções
sociais; depois, é a reiteração de Capitu na imagem da jovem mãe de sua melhor
amiga – a referida Sancha; mais tarde, é o retrato de Escobar, o da amizade
nascida no ano de seminário, o gatilho e o fantasma que o acompanha nas
certezas da estreita parecença entre Bento e Ezequiel, seu único filho com
Capitu. Em todos os casos, se o retrato revela a personagem figurada, também a
dissimula, visto que estabelece relações com o de fora em todos os limites da
figuração, ao evidenciar não apenas o retratado, mas o seu semelhante.
A obsessão de Bento por Capitu é,
junto com o designativo de Casmurro, a maior dissimulação desse
romance. As duas condições são adotadas de terceiros: é depois de escutar a
preocupação do agregado José Dias sobre a relação dos dois adolescentes
enquanto a mãe remancha em internar o filho para fazê-lo cumprir a promessa
aquando o nascimento dele, que o próprio Bentinho passa a reparar na amiga
vizinha com olhos de homem e logo a converte numa ilusão amorosa; e é numa
viagem entre a cidade e o Engenho Novo que recebe o apelido de um ambulante
fazedor de versos e toma-o para isso evidenciando uma cisão que visa se
sobrepor ao Bento Santiago. Quer dizer, a conturbada relação entre verdade e
invenção é a força integral desse romance; singular nesse sentido é próprio
Ezequiel com seu modismo infantil de arremedar os outros. Dom Casmurro e o
romance são eles mesmos um arremedo: ele dos homens de nome, a obra das memórias
desses homens e das histórias românticas – nesse caso, muito à maneira de O
seminarista, de Bernardo Guimarães, em que a decisão familiar pelo
filho padre afeta diretamente a felicidade recém-descoberta dos amantes.
É indispensável notar que a
característica que mais perturba a Bentinho e também a que ele mais admira, porque
não sabe executá-la com a precisão necessária, é a capacidade prática com a
qual Capitu dissimula as situações. Essa descoberta se confunde com o
acontecimento da compreensão sobre a atração amorosa entre os dois: Capitu risca
qualquer coisa no muro de casa quando é, primeiramente flagrada pelo amigo, a quem
faz acreditar naquilo que os sentidos dele acabavam de saber, e depois, disfarça
para pai toda cena de qualquer romantismo entre os dois. Esses episódios são
variados e sobre todos, o que chama a atenção do criançola é autenticidade da
dissimulação, gesto, admitido pela própria Capitu para que os adultos não
reparem no imbróglio entre eles. A partir desse primeiro momento, as memórias
são integralmente voltadas para compreender esse elemento singular que se
repete mais tarde, por extensão, ao amigo Escobar, à mulher com a qual este se
casa, a amiga íntima de Capitu, Sancha, e ao próprio filho, Ezequiel.
Tudo isso confirma que ao
inventariar suas memórias Dom Casmurro busca construir uma explicação para si sobre
um episódio com consumiu toda sua existência; é um testamento de defesa, o que
se evidencia desde a menção dos medalhões que ocupam as paredes da sala
principal de sua casa a passagens com a 50, “Entre luz e fusco”, que revela
toda perspicácia jurídica desse homem: “Oh! Minha doce companheira de meninice,
eu era puro e puro fiquei, e puro entrei na aula do São José, a busca de
aparência e investidura sacerdotal e, antes dela, a vocação. Mas a vocação eras
tu, a investidura eras tu.” Aqui, o narrador se defende de qualquer culpa em
relação à ruptura do juramento adolescente de que estariam dali a pouco, sem
passar pelo seminário, casados.
Ou seja, Bento / Casmurro escreve
essas memórias para recuperar uma honra ou uma consciência sobre si próprio em
relação ao seu passado; incapaz de alcançá-lo, ou melhor, ciente de que
alcançá-lo significa sua inteira revelação, e esta é inalcançável, todo o
trabalho que passa a desenvolver é o de ocultar, calar, abafar, camuflar,
cobrir, disfarçar alguma coisa, gestos que são em parte tentativas de
aproximação do vivido, em parte o vivido projetado para a memória. Nesse ínterim,
todas as suspeitas foram levantadas e confirmadas pela narrativa: incluindo o
mais trivial debate da traição ou não de Capitu. Se por um lado essa discussão
estabelece uma perenidade para a própria obra, por outro evidencia seguramente
que o leitor foi fisgado pelos truques da narração. Os ciúmes toldam qualquer
visão e a luta do enciumado é com sombras; nesse sentido é singular a contínua
transformação do amigo de estima em fantasma reencarnado nas feições do próprio
filho.
Mas, o caso é que sendo este um
romance devotado a observar os movimentos de sua própria atuação todo o jogo machadiano
se confunde com o próprio jogo do seu narrador. O embate homem-sombra,
homem-fantasma, de certo modo metaforiza o embate escritor-realidade; Dom
Casmurro se justifica como uma afirmação da ficção enquanto uma realidade
particular, com regras e variáveis de funcionamento próprias, modificáveis à
medida dos interesses dos que nela se envolvem. Em “Querido opúsculo”, o
narrador troça da arte de escrever; sua argumentação é justificativa sobre o
que dizemos: ele diz preferir os livros que deixam lacunas porque estas são
trabalho para o leitor. Vislumbra-se, então, o que tem sido o grande exame da
literatura desde sempre: dizer o possível, não o acontecido.
Dissimular é um dos princípios
básicos para a construção dos objetos de ficção, mas para que estes existam
presume-se uma consciência imaginativa. Dissimular é ainda uma condição básica
para existir; só os capazes desse verbo conseguem existir plenamente, os que
não, se angustiam, se amarguram, se matam. Bentinho é sempre o que muito
imagina, mas sua capacidade de inventar parece se refrear pelos limites a ele
impostos pela família, pela religião. Assim, dissimular, a atitude alentada de
uma vida é tentada pela última vez na execução da escrita de Dom Casmurro.
E, agora, ao que parece, um
exercício em parte logrado, afinal, significativa quantidade dos leitores permanece enredada
pela história de amor adolescente que este romance não é, deixando de reparar que
é uma presa enrodilhada numa ardilosa armadilha fabricada com o interesse de,
ao mostrar, velar, ao velar, mostrar. O curioso é que tal gesto é dos mais
usuais desde sempre na história humana ― tão antigo quanto o diálogo de Adão e
Eva, para outra vez citar Memórias póstumas ―, entretanto, misteriosamente,
quando somos colocados diante de suas diretrizes, algo nos escapa e deixamos de
perceber seu funcionamento.
Ou seja, está nisso, provavelmente, a melhor das
provas sobre a impossibilidade de alcançar a vida como autenticidade. Esta só
existe enquanto dissimulação. É apenas a ilusão e sobre a qual ignoramos suas regras; não porque queremos, mas simplesmente porque quando julgamos conhecê-las, passam já outra vez para o desconhecido, essa sombra que continuamente nos perturba e nos obriga a continuamente tentar outra alternativa de acesso a elas. Entre Deus e Diabo, a vida é instante deste com alguns minutos Daquele, com o agravante: esses minutos são a pura ilusão do autêntico, esta com a qual o Casmurro se/ nos entretém.
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