Do imponderável em Haruki Murakami: algumas considerações sobre Crônica do pássaro de corda
Por Paula Luersen
Começo por citar uma palavra que intermeia
repetidas vezes o livro Crônica do pássaro de corda, demarcada sempre em
itálico: algo. De início, algo que escapa ao leitor. Mas que, desconfio, seja o
que o faça, ao mesmo tempo, altamente envolvido com a trama. Algo perturba.
Embora as rotinas da vida sejam apresentadas na narrativa de maneira costumeira
e até mesmo trivial, algo está em ação noutra ordem das coisas. Uma ordem bem
menos aparente, por certo, mas que também habita o mundo e está em franco
desenrolar. Trago aqui um exemplo de como essas perturbações são dadas a ver,
em meio a um diálogo: “Sozinha na escuridão, senti que algo que havia dentro de
mim passou a crescer. Tive a impressão de que esse algo cresceria cada vez mais
dentro do meu corpo, até me partir, como a raiz de uma árvore que cresce demais
até quebrar o vaso. O que não se manifestava dentro de mim durante a luz do dia
começou a crescer em uma velocidade assustadoramente rápida na escuridão, como
se sugasse nutrientes especiais”.
Murakami sugere e manipula a
presença do indefinido com maestria. Se em algumas de suas obras há um evento que
vem mobilizar decisivamente o mundo ficcional e é a partir dele que surge esse
universo que perturba com uma força pulsante, em Crônica do pássaro de corda
é a partir de um fato fortuito – o sumiço de um gato – que a história começa a
revelar o entrecruzar da realidade comum com o imponderável. É como se fôssemos
levados pela mão a imergir, aos poucos, na rotina dos personagens, em suas
biografias e emoções, para depois começar a acompanhar o lento transformar desse
invisível que assombra.
Quando trato da palavra algo em
específico, não me refiro a uma questão de código ou de esquema metafórico no
qual buscar os significados da literatura do autor. Falo de uma escolha que
reconhece a força que há em não definir, deixando em aberto para o leitor a
construção do que se passa nesse plano intersticial. A busca está em não nominar
e mostrar como tal força passeia pela trama e afeta as relações entre eventos e
personagens. Isso atrai a atenção mais do que os fatos em si, porque só se
mostra por indícios.
Essa via de abordagem quem sabe
seja a mais abstrata das chaves de leitura do romance de Haruki Murakami, mas
seguirei na tentativa de pensá-la. Considerando livremente alguns dos sentidos
que o livro me sugeriu, parece que esse algo é às vezes feito da mesma
substância que nos atrai ou repele intensamente na relação com um
recém-conhecido, sem que saibamos ao certo o porquê. Outras vezes, porém,
parece ser a sensação que emana de gestos e decisões de outrem, atitudes que
nos parecem destituídas de sentido, mas que ganham significado pleno se
estivermos dispostos a habitar o modo de ser do outro, entrando em sua rotação.
Há, ainda, os momentos em que esse algo é posto como atemporal, um tipo de tensão
que perpassa diferentes épocas e corpos, ligando acontecimentos e personagens
por rastros. Só temos acesso aos seus vestígios. Algo perturba e estabelece
entre os eventos e os personagens uma profunda ligação.
Uma das perguntas colocadas no
início da trama em Crônica do pássaro de corda começa a descortinar o que
virá: “será que é possível uma pessoa entender completamente a outra? Quando
tentamos compreender alguém e dedicamos muito tempo e esforço sincero, até que
ponto podemos nos aproximar da essência do outro? Será que sabemos mesmo a
parte que realmente importa de quem acreditamos conhecer bem?”. Aqui se coloca
de maneira muito clara o impasse entre o que podemos perceber, identificar,
definir, tipificar e enquadrar para entender o outro; e aquilo que nele nos é
invisível, impreciso, podendo parecer inexplicável. Há algo que só se mostra
por rastros, lapsos.
A pergunta sobre o que sabemos
sobre quem acreditamos conhecer reverbera e vai se recolocando em vários níveis
para o casal protagonista: primeiramente, chegamos a uma resposta simplista com
a descoberta de uma traição, como a confirmar que mesmo convivendo de perto,
podemos estar alheios à rotina e às escolhas daquele que julgamos próximo;
depois, a pergunta se aprofunda e há o reconhecimento de que, mesmo com anos de
vida conjunta, sempre existirão lacunas na história de vida das pessoas, mesmo
aquelas mais íntimas de nosso convívio. O nível mais interessante, porém, em
que a pergunta volta a ecoar é também o mais abstrato: ele trata da capacidade
de conhecermos o que o outro sente, deseja, teme, sonha. De sabermos do que é
capaz. E é aí que Murakami surpreende, porque além de contrariar a máxima de
que o outro nos é insondável, ele aponta para uma instância de comunicação,
onírica, que sugere uma outra ordem. Fora da lógica das explicações. Fora da
relação causa e efeito. Indefinida, porém real.
A manipulação dessa força
imprecisa que cerca os fatos – por falta de expressão melhor – é inebriante em
Murakami. A experiência de leitura nos
coloca em uma posição ativa: como se quiséssemos reler trechos de páginas antes
de tê-las terminado, e, ao mesmo tempo, nos sentíssemos impelidos a avançar o
mais rápido possível tamanha a curiosidade em desvendar fatos. Em Crônica do pássaro de corda o autor se vale de eventos históricos, pensando o incidente de
Nomonhan, confronto armado entre a URSS e o Império Japonês decorrido na região
da Manchúria. O incidente acabou levando, por uma combinação de acontecimentos,
ao início oficial da Segunda Guerra Mundial. Em paralelo, narra-se o
desenvolvimento de uma cena política que, mesmo diegeticamente passada na
década de 80, traz inegáveis relações com o que vivemos hoje – a expansão de
personalidades políticas que colocam seu interesse individual por poder acima
de quaisquer ideias. Há um parear engenhoso entre os personagens que habitam
cada um dos tempos, ligados por indícios se manifestam nos corpos, espaços,
objetos simbólicos e encontros. Com o avanço da história, é como se
percebêssemos, porém, que mais do que os lugares, objetos, animais e pessoas, o
que promove tais ligações é algo que repousa em cada uma dessas coisas ou delas
emana.
Como outros criadores desse início
de século – para dar um exemplo mais próximo esteticamente cito David Lynch –
Murakami parece interessado em aventar sobre o mal. Em perguntar sobre essa
força-motriz que nos levou a duas grandes guerras mundiais, ao lançamento de
bombas atômicas e outras atrocidades. Mas não é desse registro que se parte –
uma realidade macro, dominada por explicações históricas, sociais e políticas.
Parte-se do mal que circula e encarna corpos e épocas, interrompendo fluxos.
Esse movimento toma a figura de muros, paredes, casas abandonadas, terrenos
baldios, tampas. Em Crônica do pássaro de corda é poço escuro e fechado onde
a água deixou de fluir; um pássaro de pedra, incapaz do voo. Parte-se de
símbolos para chegar à vontade do mal, às forças que são mobilizadas para que essa
vontade de torne possível. O conflito passa pelo inconsciente, por pulsões e
atmosferas que conferem a esse tipo de força uma dimensão de imponderável.
Trato aqui, obviamente, de uma
interpretação muito particular do que julgo interessar Murakami e atuar como
base em suas narrativas. Há um sem fim de personagens que expressam outros
tipos de força. Os mais interessantes, para mim, contudo, são aqueles que
conseguem se comunicar com essa outra ordem, com uma força indefinida que só se
mostra a partir dos sonhos e de supostas coincidências. Personagens um tanto
disfuncionais em relação à ideia de normalidade estabelecida por um mundo
capitalista que tende ao padrão. Personagens dedicados a vivenciar
estranhamentos, em estabelecer ligações entre si que estão nos gestos, no
compartilhamento desse universo onírico, em algo mais fundo para onde a
narrativa aponta.
Daí vem a dificuldade de escrever
sobre o que se passa no livro: o que há de mais instigante não se explica pelos
fatos, mas numa teia de relações entre os acontecimentos do mundo retratado e o
plano onírico trazido à cena por alguns dos personagens. Ambos motores
igualmente capazes de movimentar a história, ainda que respondam a lógicas
completamente distintas. A fronteira entre esses dois planos é o lugar a ser
conquistado pelo personagem principal, numa atitude ativa que, entretanto, se
confunde com o sono:
“Enquanto tentava me concentrar no
som, adormeci sem perceber, sem ter aquela sensação gradual. Apaguei
instantaneamente, como se caminhasse por um corredor e, sem perceber, fosse
puxado por alguém para dentro de um quarto desconhecido. Não sei dizer por
quanto tempo durou esse estado de inconsciência que parecia uma camada profunda
de barro. Acho que não foi muito, apenas por um momento. No entanto, quando
recuperei a consciência, ao sentir a presença de algo, soube que estava em
outra escuridão. O ar estava diferente, assim como a temperatura e a densidade
das trevas. [...] Levantei o rosto, olhei em volta e prendi a respiração.
Consegui atravessar a parede.”
O mistério não está para ser
solucionado nos escritos de Murakami. Como na vida, muitas vezes ele é parte
das relações e interações com o mundo, ainda que com ele pouco saibamos lidar.
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