Cada um em seu lugar
Por Tiago D. Oliveira
A leitura de um livro de contos começa
quase sempre para mim pelo tatear de sua forma. Certa vez alguém me disse que
se passasse as páginas tão rapidamente encontraria uma mensagem desenhada nos
rodapés a partir de letras e símbolos soltos. Desde então, mais do que um
vício, tal prática tornou-se o ritual antes de qualquer livro. Sentir o objeto
artístico em sua realização em minhas mãos, explorar as ranhuras, seus poros. O
que me concebe também passadas sobre o chão do entendimento de nosso tempo: Não
só os modos de questionamento da linguagem artística, mas também para nomear o
local das práticas artísticas contemporâneas, como afirma Florencia Garramuño
quando pensa a obra de Nuno Ramos.
Eis que faço esse trânsito até os contos de
Marcelo F. Lotufo em seu novo livro, Cada um a seu modo, lançado pela Edições
Jabuticaba, não somente para focar nas formas nem na linguagem, mas acima de
tudo, para sentir o curso das águas, como consegue esculpir Vilma Arêas no
posfácio, “a impossibilidade de controlar satisfatoriamente a vida”. Tatear as
páginas deste livro depois de sua leitura é como escorrer a mão sobre cada
personagem na tentativa de juntá-los em um só plano de vida, o que decai
rapidamente sobre a ordem natural de que cada um existe dentro de sua própria
forma, de seu mundo.
Acredito que uma unidade forte nas
narrativas é a ideia de como os desencontros acabam por unir todas as direções.
Seguimos, como na citação do primeiro conto “O tempo dos Beija-flores”, em que
Charles Darwin escreve – À medida que passávamos, divertíamo-nos observando os
beija-flores – colhendo aos poucos. A partida, o desencontro, reencaixes
naturais, assim como a literatura, a música, o teatro, cinema, o olhar sobre o comum
que esconde os liames necessários, encontramos a vitalidade passante entre as
páginas, a vida que não cabe em um manejar único. O primeiro livro de Marcelo
se apresenta pelo tato com que os contos são peças determinantes para
entendermos que estamos dentro de um constante desvencilhar que julga nosso
tempo e nos inscreve em outro constantemente modificado, reescrito.
Já no primeiro conto somos levados por uma estética que nos ajuda a entendermos a
desfragmentação do olhar, do indivíduo e da própria escrita que mergulha em uma
grafia ensaística para criar uma estória que ao passo que nos apresenta outras
leituras, desenha a alegoria do beija-flor em uma narrativa que trata da morte,
da saudade e da maneira natural, como se fazem na vida de qualquer um.
Em “Nora Helmer”, referência importante
da peça teatral de Henrik Ibsen, na qual denunciava-se a forma como eram
excluídas as mulheres na sociedade, Lotufo tece também um discurso crítico
sobre nosso tempo ao apresentar um casal que se instala entre a família que
construíram e as necessidades de se reencontrarem com o que já foram. Ao
polarizar as reações e pesá-las sobre o histórico papel de diminuição da mulher
na instituição contemporânea do casamento e da família, ele direciona o leitor
também por um caminho de reconstruções.
Em “Passacaglia literária” o leitor é
conduzido pelo questionamento mais escutado para quem escreve – o que é
literatura? – e o que versa sobre o preenchimento e esvaziamento de sua resposta
diante de um texto encomendado e feito com a destreza de quem se preocupou com
sua elaboração e também por quem o recebe para divulgação sem se importar com o
seu caminho até o final, e muitas vezes até com o seu próprio conteúdo. Seria a
literatura um preencher de linhas pintadas com as cores da moda ou a busca por
significações diante do mundo? Tudo isso e nada ao mesmo tempo?
No conto “Pássaro rebelde” encontramos o
afeto que se realiza a partir de um desvio, a amizade, e fica a espreitar o desencontro
diante de dois amigos que têm uma ligação atravessada pela violência da
juventude e suas dúvidas, dos fantasmas de outra relação que não foi superada,
tudo isso para doutrinar um amor oculto que não supera a rebeldia que ainda o
faz não ser encontrado.
Em “Dia nublado” o leitor é levado pela
mão através das constatações de um irmão que se encontra sozinho para resolver,
depois da morte do pai, todas as questões práticas da venda e divisão dos bens que
ficaram para ele e sua irmã que mora fora do país. O que paira lentamente, como
a esperança em um sol que não chega, são as constatações da natureza humana
diante da vida que não espera por ninguém. As memórias e qualquer possibilidade
de reencontro afetuoso entre irmãos, a família que restou, é trocada pela
necessidade de vender o que restou para que se faça dinheiro. O que vai sendo
empurrado paulatinamente pela incapacidade despercebida do irmão de lidar com
as questões práticas diante dos despedaçamentos apresentados nas páginas. O
desencontro é vário e localiza-nos em um tempo de espelhamentos.
No
livro de Marcelo também nos encontramos nas releituras e referências, Yo-Yo Ma,
Bach, Leonard Bernstein, Sérgio Buarque de Holanda, Herman Hesse, Rimbaud, Rodrigo
Lacerda, Henrik Ibisen, Ezra Pound, Walt Whitman, Sartre e outros. Estão em
cada porta aberta esperando-nos sob as engrenagens do gênero, mas que
disfarçadamente preenchem na leitura espaços vazios que acumulamos nas diversas
formas de desamparo, de desencontros que o viver proporciona durante a soma dos
anos, “cada um a seu modo” em sua grandeza e finitude.
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