António Ramos Rosa. Quatro poemas de Delta (seguido de Pela Primeira Vez) (1996)
Por
Estar na montanha na imóvel
ondeação
com uma lua delgada como uma navalha
De narinas dilatadas com as veias e os ossos
numa profunda paz Que as palavras venham
através do basalto e das lâminas aceradas
do xisto na sonolenta aspereza
dos muros Somos parte da trama silenciosa
nesta ascensão da vagarosa força fibra a fibra
até à alta profundidade vegetal
Estamos no cerne do presente respirando
a densa vibração de um tranquilo silêncio
e somos a expansão imóvel da montanha
***
Quando o corpo é um sorriso aberto
ao sol
o alento dança
e o coração estremece como um peixe livre
Pertencemos a um corpo de claridade nua
com a viva delicadeza vegetal
com a transparência do desejo na languidez de um leito
de lentidão aérea e voluptuosa inocência
Toda a terra se torna um país
amoroso
e a boca fascinada é concha e água no instante amado
As fontes da palavra jorram de um ventre branco
ou dos cabelos que navegam entre nuvens e veias
Não precisamos procurar a raiz o anel o limite
porque toda a aparência respira nascendo do seu ser
e o fio subtil do silêncio conduz-nos ao jardim
das carícias e dos segredos nupciais
entre as flores do sono num tranquilo ardor
O que queria libertar-se para além
dos espelhos
e dos véus das sombras pousou na límpida clareira
onde a corola da terra oferece o seu azul
e o mundo leve renasce navegando nas suas barcas imóveis
***
Todo aquele que abre um livro
entra numa nuvem
ou para beber a água de um espelho
ou para se embriagar como um pássaro ingénuo
A sôfrega retina
vai-se tornando felina e inflada
e os seus liames tremem entre o júbilo e a agonia
Um livro é redondo como uma serpente enrolada
e formado de fragmentos onde lateja o sangue de um pulso
que já não é de um autor que nunca o foi
e que será sempre o ritmo do que está a nascer
irrigando o nada e os terraços sobre os abismos
Nunca o livro se completa embora o redondo o circunde
e o mova para o seu interior sem nunca envolver
Jamais a nuvem se dissipa mesmo quando a claridade ofusca
Como se fosse preciso adormecer nela como sobre os ombros do mundo
para acompanhar o seu fluxo ingenuamente novo
com os delicados diademas de fogo e espuma
O livro ora é de veludo ora de bronze
e os seus traços abrem janelas ou terraços
sobre o corpo latente como um arbusto entre pedras
Se a palavra vibra como um meteoro ou desliza como uma anémona
ou não é mais do que uma estrela de areia
a sua prosa sulca o incessante intervalo
entre o ardor de incompletos liames
e a estátua aérea que se eleva à sua frente
e continuamente se forma e se deforma
por não ser nada e ser o alvo puro
de movimento ingénuo sonâmbulo e incerto
***
Cada homem é um ser de argila
solar e vegetal
mas agita-se entre a inquieta violência e a fragilidade nua
Raramente se eleva à consciência tranquila
da sua identidade original e da sua inocência delicada
Não sente no cerne o ingénuo frémito
como um seixo verde que aspira elevar-se
à latitude azul luminosa e sonâmbula
das constelações que brilham como diademas da imensidade
Às vezes toca uma lenta guitarra
de uma pura tristeza e de um surdo lamento
embriagando-se numa nostálgica doçura
Mas nunca toca o centro branco de si mesmo
nem pressente o fruto do silêncio ou a nascente nupcial
não sabe despir-se na luz melodiosa
perdeu a antiga frescura de ser um peixe entre pedras e nuvens
e já não se comove no coração do ser
com uma lua delgada como uma navalha
De narinas dilatadas com as veias e os ossos
numa profunda paz Que as palavras venham
através do basalto e das lâminas aceradas
do xisto na sonolenta aspereza
dos muros Somos parte da trama silenciosa
nesta ascensão da vagarosa força fibra a fibra
até à alta profundidade vegetal
Estamos no cerne do presente respirando
a densa vibração de um tranquilo silêncio
e somos a expansão imóvel da montanha
o alento dança
e o coração estremece como um peixe livre
Pertencemos a um corpo de claridade nua
com a viva delicadeza vegetal
com a transparência do desejo na languidez de um leito
de lentidão aérea e voluptuosa inocência
e a boca fascinada é concha e água no instante amado
As fontes da palavra jorram de um ventre branco
ou dos cabelos que navegam entre nuvens e veias
Não precisamos procurar a raiz o anel o limite
porque toda a aparência respira nascendo do seu ser
e o fio subtil do silêncio conduz-nos ao jardim
das carícias e dos segredos nupciais
entre as flores do sono num tranquilo ardor
e dos véus das sombras pousou na límpida clareira
onde a corola da terra oferece o seu azul
e o mundo leve renasce navegando nas suas barcas imóveis
ou para beber a água de um espelho
ou para se embriagar como um pássaro ingénuo
A sôfrega retina
vai-se tornando felina e inflada
e os seus liames tremem entre o júbilo e a agonia
Um livro é redondo como uma serpente enrolada
e formado de fragmentos onde lateja o sangue de um pulso
que já não é de um autor que nunca o foi
e que será sempre o ritmo do que está a nascer
irrigando o nada e os terraços sobre os abismos
Nunca o livro se completa embora o redondo o circunde
e o mova para o seu interior sem nunca envolver
Jamais a nuvem se dissipa mesmo quando a claridade ofusca
Como se fosse preciso adormecer nela como sobre os ombros do mundo
para acompanhar o seu fluxo ingenuamente novo
com os delicados diademas de fogo e espuma
O livro ora é de veludo ora de bronze
e os seus traços abrem janelas ou terraços
sobre o corpo latente como um arbusto entre pedras
Se a palavra vibra como um meteoro ou desliza como uma anémona
ou não é mais do que uma estrela de areia
a sua prosa sulca o incessante intervalo
entre o ardor de incompletos liames
e a estátua aérea que se eleva à sua frente
e continuamente se forma e se deforma
por não ser nada e ser o alvo puro
de movimento ingénuo sonâmbulo e incerto
mas agita-se entre a inquieta violência e a fragilidade nua
Raramente se eleva à consciência tranquila
da sua identidade original e da sua inocência delicada
Não sente no cerne o ingénuo frémito
como um seixo verde que aspira elevar-se
à latitude azul luminosa e sonâmbula
das constelações que brilham como diademas da imensidade
Às vezes toca uma lenta guitarra
de uma pura tristeza e de um surdo lamento
embriagando-se numa nostálgica doçura
Mas nunca toca o centro branco de si mesmo
nem pressente o fruto do silêncio ou a nascente nupcial
não sabe despir-se na luz melodiosa
perdeu a antiga frescura de ser um peixe entre pedras e nuvens
e já não se comove no coração do ser
______
António Ramos Rosa nasceu a 17 de
outubro de 1924, na cidade de Faro.
Por motivos de saúde nunca
terminou o ensino secundário. Ainda jovem, porém, foi membro do Movimento da Unidade Democrática (MUD) juvenil, uma organização que veemente se opunha ao regime
fascista então vigente.
Foi empregado comercial, professor
e tradutor antes de se dedicar em pleno à prática poética, ofício no qual
entrou como um assumido autodidacta. Também se destacou na área do ensaio, da
crítica e do desenho, chegando a realizar diversas exposições.
Em 1951 ajuda a fundar a revista Árvore,
dando assim início a uma longa colaboração com jornais e revistas de índole
literário, dos quais se destacarão, entre muitos outros, a Colóquio-Letras e a Seara
Nova. No término da década lança O grito claro, o seu primeiro livro. Quase
simultaneamente inicia a Cadernos do Meio-Dia, revista que não somaria mais que
dois anos de existência, vindo a ser cancelada em 1960 por intervenção da PIDE.
Radica-se, então, definitivamente em Lisboa.
Inicialmente, a sua poesia parte
do quotidiano, duma realidade palpável e vivível, mas já embalando em si uma
revolta contra o fútil e o banal, deixando transparecer uma ânsia por algo mais
que o socialmente imposto, por algo deveras significativo – seja uma descoberta
íntima, uma conquista interior ou a mera afirmação pessoal numa matriz social
de imposições castradoras.
Posteriormente, vai-se maturando –
e à de alguns juízos ganhando complexidade – numa linha que intenta a afirmação
de um real apreendido claro e limpo, onde se denota o valor da nudez como
resultado dum desejo de despojo, de transcendência – sem manchar o rigor de
execução que a pauta. A parte final do seu trabalho facilmente sugere, colada a
versos tais, a ideia de um poeta místico à boa maneira oriental, algo que desde
anos anteriores já se poderia adivinhar, ao propôr um foco temático num
regresso à origem, ao silêncio primordial, a um sossego vegetal – acima de
tudo, a uma vivência plena e livre.
O cardeal-poeta José Tolentino
Mendonça, em certa ocasião, escreveu em forma de apreciação à obra roseana as
seguintes palavras que agora tomamos de empréstimo, com a licença do leitor,
para concluir a nossa exposição: “[um] corpus poético absolutamente invulgar,
em qualidade e em dimensão”.
António Ramos Rosa legou-nos perto
de oito dezenas de volumes espalhados por mais de trinta editoras. Foi Prémio
PEN de Poesia em 1980, Prémio Pessoa em 1988 e Prémio Sophia de Mello Breyner
Andresen em 2005, além de ter merecido duas honrosas distinções levadas a cabo
por ordem governamental: em 1992 e 1997, respectivamente, foi eleito
Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada e agraciado com a
Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. A biblioteca municipal de Faro foi
nomeada em sua honra e a universidade dessa mesma cidade concedeu-lhe, em 2003,
o grau de Doutor Honoris Causa.
Faleceu no dia 23 de setembro de
2013, aos oitenta e oito anos de idade, pouco depois de lançar aquele que seria
o último de uma extensa lista de volumes poéticos: Numa folha, leve e livre.
No Brasil, a obra de António Ramos Rosa começa a ser publicada a partir de 2018 pela editora Moinhos. Até o presente saíram os títulos: Ciclo do cavalo e Volante verde.
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