Fuga do Campo 14 e a resistência contra o não dito

Por Rafael Kafka




O campo literário das narrativas de sobreviventes ou relatos de testemunho são ricos repositórios de experiências humanas, os quais demonstram as amplas dimensões daquilo que caracterizaria uma essência humana. Tais relatos são importantes gestos de resistência que revelam as profundezas de acontecimentos que mais que queiramos esquecer precisamos lembrar de suas existenciais como forma de combate às ideologias nefastas que os geraram.

A literatura de testemunho é provavelmente o gesto de resistência mais significativo em ti, pois estamos lidando com a dimensão do trauma em uma nova essência. Não é mais um fato que ocorreu e se torna recorrente pela memória e sim um conjunto de fatos que por si só formam um todo opressivo que reduz a humanidade a uma massa amorfa viva. Diante desse fato, falar sobre o que se viveu, escrever sobre isso, revisitar o trauma é um gesto de coragem e de desnudamento profundo, a maior demonstração do sujeito se defrontando com o absurdo de sua existência que podemos imaginar.

Isso porque esse absurdo assume a forma de um outro eu que oprime por meio da negação da subjetividade do outro até o ponto de aniquilação desta. Os campos de concentração são esferas de poder que não começam a surgir em si mesmos, mas ganham força por fatos sociais que gradativamente vão gerando as condições para os experimentos macabros que ali transcorrem. Como diz a professora protagonista de Os escritores da liberdade, as caricaturas são o primeiro gesto para se chegar ao campo e a sua dialética macabra.

Relatos de sobreviventes são, portanto, gestos de resistência de uma humanidade que insiste em não ser destruída e ao mesmo tempo uma memória incômoda a qual precisamos ter e cultivar para entendermos ainda existirem riscos à dignidade humana em toda sua amplitude.

Nesse sentido, a obra de Blaine Harden, Fuga do Campo 14, é uma leitura essencial para entendermos que em nosso mundo contemporâneo ainda existem as ameaças desse tipo à condição humana. Também é um livro que mexe com leitores como eu, abertamente de esquerda, pois falam de fatos que ferem profundamente a já mencionada dignidade humana usando ideais revolucionários os quais consideramos importantes e dignos.

A história é muito bem escrita e se assemelha a um bom romance cheio de suspense, sendo produto de uma longa série de entrevistas entre o autor e Shin, rompendo de certa forma a lógica dessa literatura que em geral se dá em primeira pessoa. Esse fato está diretamente ligado à gênese da história por ter um protagonista que cresceu dentro de uma prisão, o campo 14, ao contrário de outros que foram levados para os seus campos de prisioneiros.

Desse modo, Shin, assim como vários filhos de criminosos políticos, não concebe uma vida distinta da vivida no campo de concentração. O código do campo para ele com delações de outros colegas, com surras desferidas e sofridas, furtos de comida faz pleno sentido para ele e mais do que revolta o que temos é o surgimento de uma insistente apatia.

Esta também se liga ao próprio sistema de castas da Coréia do Norte, pois as classes já nascem com possibilidades maiores ou menores de acordo com a casta às qual pertencem e filhos de criminosos carregam os pecados de seus pais em seus sangues por mais de uma geração constantemente.

Assim, há uma única ordem dada a ser vivida e o espírito de revolta nos prisioneiros é algo que não podemos encontrar com facilidade. Não à toa, na sua tentativa de fuga, Shin compara os antigos companheiros a vacas adestradas, juízo que vale para si também, pois ele era um ser conformado à lógica do campo. É preciso um elemento externo a ele, um preso que não fazia parte do campo desde seu nascimento, para ele entender o que se passava lá fora e assim começar a alimentar o desejo de fuga.

Blaine Harden conta essa história usando uma série de dados que nos ajudam a entender o que é a Coréia de Norte e seu regime político sustentado por um culto à personalidade profundamente arraigado na mente dos cidadãos. O relato é entrecortado com outras experiências de fuga do país bem sucedidas, as quais pela quantidade baixa já mostram o quanto o norte da península coreana é bastante fechado. Os regimes totalitários insistem em existir no mundo contemporâneo e por isso relatos como esse são importantes, para entendermos melhor a dimensão do absurdo contra o qual se é preciso engajar para a construção de um mundo melhor.

Apesar de não falarmos aqui de uma obra literária no sentido stricto sensu, vale ressaltar o fato de muitas pessoas ainda questionarem qual a função da arte em lutas concretas como as que se referem à derrubada de totalitarismos ainda existentes ou dos elementos totalitários que podemos encontrar em países com líderes autoritários. A literatura, inclusive a de não-ficção, deve tão somente falar desses fatos, se engajar, provocar nos leitores reações, debates, incômodos.

Como creio ter mencionado mais acima, relatos como os de Shin e Primo Levi são importantes por tocarem no absurdo que vivemos de uma maneira mais palpável. Esse absurdo pode inclusive residir nas celas de nossas prisões a todo instante desrespeitando direitos humanos. Muitas das vezes, é uma ótica mais inerente ao fato vivido, que nos coloca ali dentro, que permite que sintamos a atrocidade a qual vemos, mas sem o devido incômodo.

Quando pensamos em obras feitas por sujeitos que passaram por diversos tipos de agressões e mais tratos e ainda assim consegue produzir obras, o gesto de resistência fica mais evidente como um limiar além do qual só resta o vazio, o inominado. Blaine Harden consegue resgatar bem o sentido do fazer uma obra ao resgatar essa história de um residente de um campo desde o começo de sua vida. Somente por histórias como essa podemos nos despertar para o absurdo do wu que tenta negar a condição humana do outro e cria espaços de opressão que são símbolos do que não deve ser tolerado.
 
 

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