Para entender Virginia Woolf
Por Anthony Burgess
Os dois romancistas de língua
inglesa mais inovadores do século XX nasceram no mesmo ano, 1882, e morreram no
mesmo ano, 1941. Mortes, ambas prematuras, de James Joyce e Virginia Woolf. Ele
escapou da guerra europeia refugiando-se na Suíça, onde morreu de peritonite. Ela
se livrou de si mesma atirando-se nas águas do rio Ouse. Essa guerra ia mal
para sua Inglaterra natal, mas o desespero que a levou ao suicídio não tinha
nada a ver com o futuro do Império Britânico. Seu desânimo não é fácil de
explicar, nem mesmo em termos de sua carreira literária. Seu último romance, Entre
os atos, é tão admirável quanto o primeiro que escreveu, O quarto de
Jacob; sua reputação estava assegurada e seu casamento feliz. Na verdade,
Leonard Woolf, seu marido, era a rocha a se segurar no redemoinho de sua
instabilidade mental. Ela nunca foi louca, mas era hipersensível. Herdou dos
seus antepassados, a família Stephens, um refinamento excessivo da
sensibilidade. Seu talento era um talento muito sensível. Para Virginia, grande
parte da literatura contemporânea parecia rude e grosseira; suas próprias
contribuições foram escritas a partir do desejo de purificar, sensibilizar,
arejar.
Seu refinamento não era um reflexo
do puritanismo vitoriano. Ela nunca foi uma puritana. Nadava nua na companhia
do jovem e belo poeta Rupert Brooke; sua sexualidade era ambivalente; pertencia
ao grupo social mais progressista da Europa, se não do mundo. Bloomsbury.
Bloomsbury é, topograficamente falando, o bairro de Londres onde o Museu
Britânico está localizado. Foi uma coincidência que se tornou o centro de uma
vida intelectual que deve seu ethos aos ensinamentos do filósofo G. E.
Moore, cuja obra Principia ethica parecia postular um hedonismo
atenuado. Qualquer modo de ação seria justificável se desse ao ator um prazer
refinado e não causasse dor aos outros.
Na vida de alguns dos principais
membros do grupo de Bloomsbury, havia um padrão refinado de comportamento
homossexual, especialmente na vida do biógrafo Lytton Strachey, do romancista
E. M. Forster e do grande economista Maynard Keynes. Havia um certo esnobismo,
uma consciência de superioridade. A Universidade de Cambridge foi a mãe
intelectual do grupo. Quando Virginia Woolf leu o Ulysses de James Joyce
pela primeira vez, ela o condenou como a obra de um “trabalhador autodidata, de
um adolescente estourando espinhas”. A adoração de T. S. Eliot pelo livro não a
fez vacilar em seu julgamento. Eliot, diretor-gerente da Faber and Faber em
Russell Square, no interior do território de Bloomsbury, embora fosse um estadunidense,
era aceitável para o grupo. Tinha o refinamento e a fraca heterossexualidade
necessários. Mas Joyce não podia pertencer à confraria.
No entanto, as inovações de Joyce
no romance eram próximas em espírito, e às vezes em técnica, às de Virginia
Woolf. Ela reprovava o romance tal como praticado por H. G. Wells, Arnold
Bennett e John Galsworthy. Deve ter percebido que Joseph Conrad era de um tipo
diferente disso, mais inovador do que ela, mas Conrad era um polonês, um
estrangeiro e, portanto, fora dos limites de seu puro gosto inglês. Além disso,
Conrad, como os outros eduardianos, inventava os enredos de seus romances, e Virginia
Woolf se opunha resolutamente às limitações da narrativa tradicional. A mesma
coisa acontecia com Joyce, mas ela não foi capaz de ver. Joyce considerava o
enredo narrativo vulgarmente jornalístico, interessado no sensacionalismo da
ação e no clímax, e a vida real não era assim. Virginia Woolf concordava, mas
acreditava ter chegado a essa conclusão por conta própria: Mrs. DalIoway,
tal como Ulysses, conta boa parte de sua história por meio de um
monólogo interior, mas, ao contrário de Ulysses, evita aquelas áreas
traiçoeiras da mente onde o Id freudiano emite suas mensagens cloacais ou
lúbricas. Ulysses tem toda a honestidade de uma criação masculina que
reconhece a importância dos aspectos mais grosseiros da vida do corpo. Em
Virginia Woolf, o espírito paira por sobre o esperma e a urina. Essa era uma
limitação, imposta menos por seu sexo do que por sua boa educação. Ela era senhora
demais velha para se permitir coletar em suas obras os odores dos fundos ou das
sujeiras triviais.
Personagens
Sua opinião sobre o personagem
como um componente do romance estava muito à frente da de Joyce e na verdade se
aproximava da fenomenologia do antiroman francês. Os personagens do
romance tradicional não correspondiam, em sua opinião, à realidade observada. A
noção de identidade era muito artificial para ela. Nos romances de Joyce, os
personagens são desenhados com tanta firmeza que relevam a obstinação do
estilo. Estamos dispostos a lutar contra sua excessiva excentricidade verbal
para aceitar Leopold Bloom ou Humphrey Chimpden Earwicker de bom grado. Esses
personagens são totalmente memoráveis; na verdade, eles parecem ser separáveis
dos romances nos quais estão inseridos ― o mesmo que Hamlet e Dom
Quixote. Mas em As ondas, de Virginia Woolf, o simbolismo destrói o
personagem como o conhecemos antes. Ou melhor, mostra-se que o personagem não
existe. Tudo o que temos são fenômenos.
Estou afirmando uma masculinidade
totalmente inaceitável quando argumento que os maiores romances têm um impulso
para a frente, uma força como a dos pistões. Isso é interpretado como
falocêntrico. Nossa época está registrando uma cisão em que, ao invés da
qualidade felina de Jane Austen complementar a sensação masculina, é condenada
pelas feministas, e o romance feminino, lido em silêncio taciturno, sem
protesto, pelos homens. Virginia Woolf é a romancista por excellence.
Sua sensibilidade é requintada, mas um homem rude, como eu, gostaria de
arrastá-la para uma taverna para uma orgia noturna. Parece a alguns de nós que
seus romances constituem uma jornada difícil devido à enorme quantidade de
espaços da vida que deixam de lado. Para as mulheres letradas, Virginia Woolf
tornou-se uma matrona sagrada. Ela deixou como legado uma espécie de bíblia
literária intitulada Um teto todo seu.
Defendeu, muito antes da explosão
da bomba do feminismo militante, o direito das mulheres à autoexpressão. E
nunca cedeu à alegação tradicional de que a escrita profissional era um campo
reservado aos homens.
Uma mulher
Virginia Woolf entrou nas listas
literárias inteiramente como mulher. Ela era inclusive uma mulher casada; e o
uso do sobrenome do marido não era um disfarce, mas uma convenção aceitável.
Aquela que nunca se tornou mãe pode ser glosada como a substituição de livros
por filhos. Ela poderia ter se comportado como a dona de casa submissa, mas
escrever não lhe foi uma imposição: foi uma escolha pessoal.
Ela ainda é uma romancista difícil
para mim, mas também uma crítica literária muito acessível. Os volumes de O
leitor comum revelam o que podemos chamar de sensibilidade hermafrodita, na
qual não há eixo feminino estridente. Isso foi deixado para suas seguidoras,
que a preenchem envolvendo-a em uma tendência que ela, muito senhora, não
poderia ter aprovado.
Virginia Woolf adorava os livros,
desde que fossem suficientemente refinados ― no sentido de Bloomsbury. Suas
devotas, entretanto, são menos literárias. Chamá-la de uma grande escritora
mulher, como essas devotas fazem, é diminui-la. Não chamamos James Joyce de um
grande escritor homem. Ela é uma grande escritora, tout court. Se eu
acho seus romances difíceis de ler, isso expressa minhas próprias limitações,
não as suas. Virginia Woolf é uma das criadoras da alma moderna.
* Este texto é
a tradução de “Para entender a Virginia Woolf”, publicado aqui, no jornal El
País.
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