Lendo o escuro é que encontramos a luz

Por Tiago D. Oliveira

Ana Luísa Amaral. Foto: Eduardo Martins.


 
Lendo Escuro, de Ana Luísa Amaral, encontramos a inegável influência de Fernando Pessoa, como se a poesia desse acesso a uma nova forma de convivência com o poeta. Assim como a presença do um tempo e espaço históricos de Portugal e da Europa. Há também releituras e reinvenções imaginativas que passam por outros nomes da literatura e da história. Ela consegue esse alcance; é o que vibra quando a leitura de cada poema chega ao fim. A presença de diversas vozes coloca-se também como parte definidora da razão deste livro, que apresenta um cotidiano como tema para diversos poemas, mas reflete sobre a própria literatura, o mundo e sobre o indivíduo, pontos que são desenhados diante de um contínuo desconforto, uma certa inquietude, ou a palavra mais oportuna a definir o percurso, desassossego. Diante desta constatação, percebemos a grandeza da poeta e de seus versos regados pela presença viva de uma herança que se coloca como forma de ver e agir sobre o contemporâneo que nos assola e oculta uma redução diária de nossas infinitudes em forças de um tempo cadente. Lendo Ana Luísa Amaral a luz de uma escuridão reapresenta-se para nortear a própria reinvenção.

Escuro foi editado pela Iluminuras e traz em suas 75 páginas uma divisão que já aponta para a direção proposta por sua autora. Os capítulos ou partes são: “Claro-escuro”, “Por que outra noite trocaram o meu escuro” e “Outra fala”; há também o posfácio, “Obscura luz”, escrito pelo Eduardo Lourenço. A capa é assinada por Eder Cardoso, a partir de O guardião, um desenho de William Blake para o frontispício de Jerusalém (1804). O projeto todo ganha um ar de sensibilidade e profundidade, o que se assemelha muito ao caminho do tato na escuridão.

Pensando no formato da divisão do livro fiquei a me perguntar sobre a significação do escuro. E dentro de algumas bifurcações fui levado a identificar lugares sem nome. A escuridão reserva também progressos vitais para o conhecimento. O escuro guarda respostas que se iluminam e transpassam o véu de sua própria imagem. E assim segui pela primeira parte do livro entendendo que o Claro-escuro é de todo o que se propõe e o eco de seu reverso, um possível Escuro-claro. O que me levou a um diapasão do tempo sentindo os mitos que ainda hoje reforçam um comportamento que se veste de fé na atualidade, porque viviam no centro do seu tempo, / e o centro do tempo não sabe nunca  que lhe irá ser percurso (p.15); dessa forma a escuridão de meu tempo se desenhou ainda na leitura como um regresso contínuo aos laços hereditários de um espaço sombrio que ainda perdura violentamente hoje, como um rio que corre não conhece a sua voz (p.15), e continuou levando-me como água para o quedar das constatações que revelam ainda no calor silencioso da noite, só as margens por que passa e o iluminam, ou ensombram (p.15), como poderá ser ou não a luz do dia seguinte.




Vestindo os poemas de um contar, Ana Luísa Amaral apresenta-nos uma poesia que caminha entre traços épicos, míticos e historicistas. Em “Entre mitos: ou parábola” e “Das mais puras memórias: ou de lumes” ela nos conta, registrando e relançando ao olhar atual um passado de Portugal e da Europa; um contar que vai aderindo uma estética poética e faz de Escuro uma leitura tanto didática quanto reinventiva. Pensar nesta primeira parte do livro como o momento histórico da Europa, em uma primeira investida colonizadora, é caminho claro para entendermos o seu alcance, Não sabiam / os que viviam felizes nas margens do Nilo, / da chegada daqueles que os haviam de reduzir / a quase escombros, e assim a literatura cumpre um papel também importante de registro crítico sobre um tempo ao passo que também polarizamos o nosso olhar sobre o que ainda somos e precisamos deixar de ser.

A segunda parte do livro, “Por que outra noite trocaram o meu escuro”, concentra parte da história da expansão realizada por Portugal. Mais aqui é possível percebermos também o olhar inventivo de Ana Luísa Amaral, que traz a escuridão como ponto central de um pilar reinaugural, a própria luz sobre este período histórico, que é pesado por natureza, mas que seria o lugar de um renascer dessa luz. Os títulos dos poemas são bem sugestivos, “O sonho”, “O tempo dos dragões e algumas rosas”, “O promontório”, “A cerimônia”, “O nevoeiro”, “A carta”, como também as insinuações que passam por importantes figuras e locais da história e também da literatura portuguesa, Fernão Lopes, D. Pedro I, D. Sebastião, D. Henrique, Fernando Pessoa e a ligação a um importante estudo para a literatura lusa, Novas cartas portuguesas, editado pela D. Quixote e organizado pela própria Ana Luísa Amaral com texto de introdução ao livro.

Se nas anteriores a temática foi o passado, na terceira parte, “Outra fala”, Ana Luísa Amaral se coloca para o futuro. Assim como a primeira parte do livro, essa reserva apenas dois poemas, desenhando um projeto marcado e pensado. Do primeiro poema, “Amar em futuro” (p.61), entendemos uma paz como projeção futura, ainda que amarrada pela condição do se, fica a imaginação a aflorar desejos também no leitor no meio dos versos, se daqui a mil anos, desejos de acompanharmos também de perto essa paz futura. No segundo poema senti muito forte a presença de um Desassossego pessoano, a começar pelo título, “O drama em gente: a outra fala” (p.63), como também a abertura para dentro de uma mesma fala várias as vozes diferentes, O lume que as rodeia, / a estas vozes, as vozes são partes de um conjunto que funciona por causa da pluralidade, O lume que as sustenta, / a estas vozes, / é mais de dentro, e eu não sei o que dizer, diante da releitura e de uma crítica sobre a história, sobre a literatura, um olhar sobre a vida e o tempo:
 
Mas sempre deste tempo
é o lume que as prende, a estas vozes,
e ao prendê-las as solta
sobre o tempo.
 
A poesia de Ana Luísa Amaral se faz em Escuro como instrumento de revisitação e imaginação criativa para contar parte da história de Portugal, da Europa, mas acima de tudo para criar um objeto literário de imensa contribuição para a beleza e para o fazer, o construir da poesia. Leitura prazerosa e necessária.   

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