Guerra em Surdina, de Boris Schnaiderman
Por Joaquim Serra
“Que diabos um civil está
procurando neste inferno?”
Isaac Bábel, “A família do
paizinho Marescot”
Boris Schnaiderman. |
O breve século XX também nos legou
diversas narrativas de guerra e de outras experiências negativas. São famosos
entre os leitores os escritos de Primo Levi, Ernst Jünger, Joseph Heller, e do
visceral Céline. Os modelos adotados pelos escritores variam muito para
representar épocas tão conturbadas. Se por um lado Primo Levi registra o
Holocausto pelo viés da perda de identidade, mimética em essência, Céline opta
por uma transgressão linguística e perceptiva para falar de um delírio diante
dos destroços da guerra de trincheiras. Mas nem sempre apenas pela realidade
construída pelo romance é possível identificar o autor por trás dela. Céline é
o mais emblemático exemplo disso. Viagem ao fim da noite foi muito bem recebido
pela crítica de esquerda, era um “livro que denunciava com tanta veemência a
guerra, o colonialismo, o capitalismo”, tornou-se livro de cabeceira de Joseph
Stálin, mas como apontou o escritor comunista Paul Nizan: “essa revolta pura
pode levar Céline a qualquer lugar: até nós, contra nós ou a lugar nenhum”
(CÉLINE, 2009, p. 8). Em 1937, cinco anos depois da publicação de Viagem,
aparece o primeiro panfleto antissemita escrito por Céline.
Do outro lado há o paródico, a
sátira corrosiva do homem em campo de batalha. As aventuras do bom soldado
Švejk, de Jaroslav Hašek, quando um quixote, um involuntário enganado e
enganador, vai parar na guerra sem a menor aptidão mental ou física. Também o
pícaro de A vida e as extraordinárias aventuras do soldado Ivan Tchônkin,
repleto de um grotesco humor gogoliano, Vladimir Voinovitch coloca em xeque,
com sua marionete abobalhada, a ideia do homo sovieticus através da
descrição de um tolo, de uma URSS profunda que parece ter sido esquecida pela
revolução, e onde ainda são cultivados os seus homens-fezes, segundo as
práticas escatológicas do vizinho de Tchônkin. Talvez concordassem com o poeta
latino Juvenal, que escreveu: difícil é não escrever uma sátira. Mas todos eles,
uns por meio de uma prosa da derrisão, outros pela força do relato documental,
destroem a ideia de heroicidade na guerra. E há também algo que pode ser visto
na maioria desses documentos históricos, dessas experiências extremas: uma
suposta nova formação – ou a recusa dela, como em O tambor, de Günter
Grass – para encarar o período de transição.
Em Guerra em surdina, Boris
Schnaiderman relata desde os primeiros dias dos praças brasileiros a caminho da
Segundo Guerra Mundial, experiência real vivida pelo autor. A princípio, o
texto recorre à herança realista, por vezes parece um documento. Através de
sentenças muito condensadas, o espaço caminha para o interior do narrador João
Afonso, para as percepções da guerra e das alianças necessárias para a
sobrevivência. Cheio de burburinhos na concentração dos praças, a polifonia
quase apaga o narrador João Afonso. Este que já havia cumprido um ano antes o
serviço militar, sem que precisasse interromper o curso de medicina.
Ao correr os olhos pelo lugar e
seus tipos, o narrador comenta: “Máquina, engrenagem, porca ou parafuso, eu,
João Afonso, também estava entre os convocados” (p. 14). João se reconhece como
parte da maquinaria da guerra, entre as porcas e parafusos, sob o desejo de
luta pela democracia ameaçada pelo Eixo. Mas nem todos estão de acordo com os
desejos de João: “Bobagem. Os gringos querem é carne pra canhão” (p. 11).
Ao ouvir a opinião dos outros
praças sobre a campanha que partiria para a África, João percebe a distância
entre ele e aqueles homens: “começou então o meu choque com a mentalidade dos
que me cercavam”, diz ele, “Alguns procuravam convencer-me de que eu estava
errado, outros tratavam-me com ironia complacente. ‘Vocês foram pedir guerra na
Avenida, agora aguentem’, diziam” (p. 15). Pelo relato de João Afonso percebemos
que muitos homens estavam perdidos e não sabiam o porquê da convocação. Anos
antes, em 1940, houve o discurso dúbio de Getúlio Vargas, além de o General
Gois Monteiro e Eurico Gaspar Dutra serem entusiastas do Brasil ao lado do que
viria a ser o Eixo ― talvez isto explicasse um pouco da confusão daqueles
homens. Em 1942, a Alemanha começa a afundar navios brasileiros. Pela pressão
popular, pelo empréstimo dos Estados Unidos para a construção da primeira
Siderúrgica ―
laços estreitados por Oswaldo Aranha ―, o Brasil decide, em 1944, enviar
seus praças em apoio aos Aliados.
Antes de partirem, é feito o Exame
Neuropsíquico por meio de perguntas simples e conclusivas, e o leitor de Ardil-22,
de Joseph Heller, duvidaria das respostas certas como resultado de sanidade.
João adentra cada vez mais aquele mundo e agora partiria para a África. Antes
do embarque, o Corpo Expedicionário muda seu nome para Força Expedicionária
Brasileira, o que gera a pilhéria comum dos praças com o novo nome, mas o
sargento João Afonso está firme, a luta pela democracia é maior que aquilo.
Os primeiros capítulos são
escritos em uma prosa seca, que busca a realidade imediata dos dias. Não há
estranhamento estilístico, deslizamento de sentidos. O narrador usa termos do
mundo militar, como se estivesse há muito familiarizado com eles, mas os usa também
porque havia feito um curso em Bateria-Quadros, “durante o qual não aprendera quase
nada” (p.21). Ximenes e Pirulito ajudam o narrador a tornar mais leve a vida
militar, e o tímido João Afonso, neste momento, fala muito pouco de si,
costurando apenas um painel diante do leitor. O narrador parece apenas responder
uma pergunta feita pelo leitor: afinal quem são aqueles homens que foram para a
guerra?
Um daqueles homens é Vovô, que
aparece brevemente, mas é muito bem lançado ao leitor pelo olhar seletivo de
João Afonso. E não deixa de ser interessante notar que Vovô é descrito com uma
característica invejável em tempos sombrios: “Vovô possui a arte difícil de
afastar os assuntos desagradáveis”(p. 48). Em Isaac Bábel há um cavalo de
guerra, o capitão Gémier do conto “O desertor” que, nas primeiras linhas, é
descrito com alguma semelhança, mas é um homem nitidamente já formado pela
guerra: “No campo de batalha não conhecia vacilações, na vida cotidiana sabia
perdoar pequenas ofensas” (BÁBEL, 2014, p. 18). Acontece que, “numa manhã de
primavera, radiante e rosada”, cai nas mãos de Gémier um desertor do exército
francês, um animal notívago perturbado com os barulhos de bomba. A ironia do
conto de Bábel divide o capitão ao meio e mostra que não há pequenas ofensas na
guerra.
O narrador que, mesmo acima na
complicada hierarquia que rege princípios e comportamentos militares, não deixa
de pactuar com os demais. Em uma passagem seguinte, vê-se mais nitidamente a
posição desse narrador que começa a ver os outros como um espelho diante de si:
“Como posso [...] supor em mim qualquer espécie de superioridade em relação aos
companheiros? Abjeta criatura, sinto-me identificado com a miséria humana, com
a degradação, com o abatimento generalizado” (SCHNAIDERMAN, 2004, p. 52).
Na viagem esses homens sentem o
peso da falta de comunicação do mundo militar. O destino era a África, depois,
através de um rádio, ficaram sabendo que atracariam na Itália. Em território
italiano, situados na cratera de um vulcão extinto, há a concentração e mais
dias de Giovanni Drogo, à espera de sabe-se lá o quê. Então os homens recebem a
notícia de que Oswaldo Aranha demitira-se do cargo de ministro das Relações
Exteriores. “Agora sim, dizia-se, a coisa vai melhorar. O velho vai chamar a gente
de volta. Quem nos mandou para cá foi o homem dos americanos, que nos vendeu
por uma garrafa de uísque” (p.98). Para João Afonso, era apenas inocência
daqueles homens, e a identificação com eles sofre nova reflexão: “Assim como o
homem do povo não penetra no meu mundo, historicamente exato, creio eu, onde o
ditador aparece com suas características próprias e a ditadura com todo o seu
cortejo de infâmias, não posso ter qualquer acesso ao mundo mitológico dos meus
patrícios”. E continua: “A lenda de um ditador bonzinho, o pai do seu povo, que
só deixou enviar os homens para a guerra porque o ministro malvado, vendido aos
americanos, obrigara-o a isto, deixa-me profundamente irritado”. Aqueles homens
eram muito diferentes de João Afonso, e pareciam próximos apenas no sofrimento,
na distância de sua terra, e nos desejos não saciados. Para João Afonso, “os
homens do povo têm ideias próprias, o seu modo particular de ver os
acontecimentos” (p. 99). E talvez para alcançar os pensamentos desses homens do
povo que a narrativa de Guerra em Surdina alterne tanto o foco
narrativo. Este que está intimamente relacionado com o modo como João vê o
mundo dos destroços arquitetônicos e humanos.
Guerra em Surdina pode ter
sua narrativa dividida em três grandes partes que se alternam de acordo com o
modo daquilo que é narrado. A primeira parte, “Homens ao mar”, é a apresentação
dos companheiros de viagem. Vai do interior confinado, da inércia e monotonia
abrasileirada de um Deserto dos Tártaros ao interior melancólico de um
narrador que não se vê distante daqueles homens pequenos.
O capítulo “Guerra em surdina”
abre uma nova fase da narrativa, agora João é parte indissociável da engrenagem
da guerra, por isso tudo é narrado de outro ponto de vista. Tendo chegado à
Itália, numa cidadezinha àquela altura destruída, pervertida desde a infância na
luta por víveres, João Afonso é atacado, assim como os outros, pelas pulsões
humanas, o sexo fácil das moças em condições miseráveis. Para tratá-lo como
mais um diante dos escombros deitados nas vias e dos desejos à flor da pele, a
narrativa passa a ser em terceira pessoa: “Aos seus olhos inexperientes, a
cidade aparecia como uma Sodoma asquerosa, que um dia, diziam os mais
religiosos, ainda haveria de provocar a cólera divina” (p.79). Não há alteração
sintática, e o tom permanece muito parecido com aquele de antes. Não seria
difícil pensar também João Afonso como aquele que vê a si mesmo com certa
distância, aproximando-se quando preciso de um ou de outro através do estilo
indireto livre, para ouvir pensamentos, como os anseios do sargento Anésio que,
buscando uma promoção, fazia tudo dentro da linha, mas numa noite decidiu subir
o morro atrás de alguma moça que, como ele, tivesse perdido ali por um instante
o laço com o mundo. Anésio é uma personagem trágica, debilitada fisicamente e
que enfrenta, lá no Brasil, um cotidiano quase miserável, muito diferente
daquele que o uniforme sugere.
O terceiro estilo aparece no
capítulo “Sem quartel nem compaixão”, a narrativa abandona os modelos comuns da
prosa literária e se abre para o que há de mais moderno na forma de narrar,
esfacelando tempo e espaço. O estilo é outro, muito mais dinâmico, um fluxo. A
polifonia do momento no front, um conjunto de vozes desiguais, sem emissores
certos, e ali os erros valem a vida, e João Afonso é um homem sem nome, quase
uma função em si da qual depende toda a fração de um tempo; agora ele está em
sincronia com as máquinas e parafusos que viu lá no primeiro capítulo. É quando
também João pergunta retoricamente ao leitor: é isto a guerra? Indagação que
ele mesmo responde: “A guerra se trava é no íntimo de João Afonso” (p. 113).
Em ação, os americanos debocham da
falta de jeito dos brasileiros, da inabilidade dos cálculos destes homens treinados
ao modo francês. Mas as conversas alcançam os mesmos temas, numa mistura de
português, inglês (com a ajuda de João Afonso), italiano e gestos efusivos,
todos falam das moças, das paisagens da memória, do fascismo no Brasil, da contradição
que era lutar pela democracia fora do lar.
Mas aquelas cidades em ruínas, as
mulheres que se vendiam por trocados, o escuro das noites em abandono, a
batalha do Monte Castello, tudo vai se encaminhando para o fim, e aqueles
escombros tornam-se parte de João Afonso. Agora ele é o triste herói que vê os
alemães como homens comuns, sem o barulho da Lurdinha (apelido da MG42 dado
pelos pracinhas): “O caminhão passa pela caixa d’água, pelos montes de
pedregulho, pelos prisioneiros alemães mandando adeus, aqueles homens abatidos,
que perderam a arrogância, que vivem catando guimbas no meio das barracas,
curvados e humildes, que coisa estranha, agora não há mais ódio, são gente
também [...], é verdade tudo o que se diz sobre as atrocidades germânicas, mas,
apesar de tudo, são gente também” (p. 216). São só homens. João Afonso não
permitiu em si uma cisão tão brusca como a do capitão Gémier, do conto de Bábel.
Mas é verdade que no seu interior
havia a pior batalha; agora, na hora de voltar, João Afonso estava formado na
guerra, nos estrondos sem aviso, nos olhos acostumados com a morte. A guerra
acabou. Como voltar para a vida de antes? “Não é fácil incorporar-se ao mundo
dos civis. Às vezes, parece que estes sentem a vinda dos ex-soldados como a
intromissão de um corpo estranho” (p. 242). Agora João tem de reconhecer-se como
o homem de antes. E aquela busca pelo entendimento do outro de sua pátria
parece reforçar a ideia de um mesmo João Afonso no mundo civil e na guerra. Quando
retorna para o Brasil, João acompanha aqueles homens se dispersarem até não ter
mais notícias de muitos deles, indivíduos que pareciam distinguir muito bem a
vida na cidade da vida nas ruínas. Pela sua distância desses homens e pelo
ponto de vista sobre a guerra e a vida civil, João se pergunta: “Como é
possível vivermos tão próximos e tão separados?” (p. 246)
Bibliografia:
CÉLINE, F. Viagem ao fim da noite. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Comentários