Friedrich Dürrenmatt: a atualidade de um esquecido
Por José Ramón Martín Largo
Friedrich Dürrenmatt, 1980. Foto: Ullstein Bild |
“Não tem a nossa era de paz, que
milhões de pessoas se esforçam por preservar fazendo manifestações, carregando
faixas, cantando música pop e rezando, não há muito assumiu a forma do que, em
outros tempos, chamávamos de guerra, toda vez que, para nos apaziguar, incorporamos
as catástrofes à nossa paz?”
A pergunta é pertinente em nosso
tempo, pois levanta outras duas questões que nos preocupam muito: a primeira,
se o que chamamos de ordem mundial não é na verdade o caos; e a segunda, se os
habitantes do mundo, especialmente o mundo rico e desenvolvido, apesar de nossa
má consciência, não são cúmplices desta ordem, que em princípio gostaríamos de
mudar enquanto hipocritamente nos beneficiamos dela. De maneira explícita, a indagação
a que nos referimos refere-se à própria razão de ser do pensamento crítico,
pensamento incômodo que para muitos é preferível evitar, pois nos apresenta
como cúmplices, e cúmplices interessados, de um estado de coisas essencialmente
odioso e, portanto, incorrigível. Isso talvez explique o esquecimento parcial
em que se encontra a obra do autor da pergunta que reproduzimos, formulada num
distante 1985: Friedrich Dürrenmatt.
E digo esquecimento parcial
porque, curiosamente, a obra dramática de nosso autor continua a ser
representada com grande sucesso; várias peças teatrais de Dürrenmatt são frequentemente
apresentadas nos palcos francófonos e de língua alemã, tudo isso ao mesmo tempo
que sua obra narrativa caminha para o esquecimento absoluto. Mesmo a parte mais
substancial desta narrativa, resultando em romances fundamentais como O juiz
e seu carrasco, A promessa, Vale do caos, Justiça e A tarefa.
Dürrenmatt nasceu em 1921 em uma
pequena vila no cantão de Berna. Estudou filosofia, filologia e ciências
naturais na Universidade de Berna e Zurique, e no pós-guerra conseguiu
conciliar dois hobbies que se tornariam sua forma natural de expressão: a literatura
e o desenho. Dedicaria sua maturidade a ambas as atividades, alcançando grande
fama na década de 1950 e, sobretudo, na década de 1960, período em que criou
uma obra multifacetada que incluía narrativas para o rádio, romances policiais
que eram publicados em fascículos e peças teatrais. Foi casado com duas atrizes,
sendo a segunda companheira a alemã Charlotte Kerr, que também foi cineasta e
dirigiu inúmeros documentários. Dürrenmatt viveu por muitos anos em Neuchâtel,
uma cidade no oeste da Suíça na fronteira entre as línguas francesa e alemã, e,
após sua morte em 1990, Charlotte Kerr fundou o citado Centro Dürrenmatt.
Numa curta lista de
escritores-pintores ainda não registados, o nome de Dürrenmatt ocuparia um
lugar de destaque ao lado dos de Dino Buzzati e Ernesto Sábato. Parte dessa
produção pictórica pode ser vista no Centre Dürrenmatt, e outra parte em Bern,
em um sótão na Laubeggstrasse, número 49, onde nosso autor morou com seus pais
enquanto estudava. Neste loft, em um momento difícil para a economia suíça e
para os Dürrenmatt, Friedrich pintou murais que foram posteriormente cobertos
por um inquilino, tendo sido redescobertos apenas em 1990, e expostos ao
público alguns anos depois. Hoje, o chamado “Dürrenmatt-Mansarde” é propriedade
de uma fundação e é usado como alojamento temporário para professores e
pesquisadores visitantes em Berna.
A sua pintura participa inteiramente
das preocupações deste crítico social de ar libertário que não se abstém de
ilustrar algumas das suas obras literárias. E é que, entre o expressionismo e a
extravagância goyesca, o autor suíço foi um retratista cuidadoso, fiel e
zombeteiro do caos do nosso mundo. Um mundo que como nenhum outro conseguiu
tomar forma em sua Suíça natal, o que a tornou o centro permanente e implacável
de sua sátira. Ele se referiu a este país de neutralidade e sigilo bancário
como um “antro de intrigas familiares, crimes, incestos, perjúrios, roubos,
fraudes e calúnias”, bela linhagem à qual acrescentou profeticamente as
seguintes palavras: “Dado que despolitizamos a política ― e nisso almejamos o futuro,
só nisso somos modernos, autênticos pioneiros, o mundo perecerá ou será helvetizado;
como nada se pode esperar da política, nem milagres, nem uma vida nova, talvez
apenas, e aos poucos, estradas um tanto melhores, prevalece a gratidão por
qualquer interrupção da vida cotidiana e qualquer mudança é bem-vinda, tanto
mais que que o desfile anual dos grêmios não consegue substituir nem de longe,
com a sua dignidade espartilhada, a inexistente terça-feira gorda”. Com efeito,
toda a obra de Dürrenmatt é um desfile de carnaval, um desfile em que
participam juízes, policiais, advogados, vereadores, banqueiros, ministros,
reitores universitários, jornalistas e outros delinquentes menores, entre eles
algumas prostitutas e seus respectivos cafetões.
Num país fustigado de caráter rústico,
irreal, centro-europeu, o fim possível se abre de maneira engenhosa. Dürrenmatt
escreve (e perdoe-nos a extensão da citação): “A terra a ser defendida é
comprada por estrangeiros, mãos estrangeiras mantêm viva a economia, que os
nativos agora apenas administram e dificilmente administram, o cidadão do
Estado constitui uma classe superior sob o qual se instalaram, amontoados em
moradias alugadas, muitas vezes a preços escandalosos e levando uma vida frugal
e laboriosa, italianos, gregos, espanhóis, portugueses e turcos, em parte
desprezados, muitas vezes ainda analfabetos, hilotas, por muitos de seus
senhores mesmo seres subumanos que um dia, transformados em proletariado
consciente e superior dentro de sua vitalidade satisfeita, puderam reivindicar
seus direitos ao perceber que a empresa que se chama nosso Estado já foi
comprada pela metade por capitais estrangeiros e só depende deles. Na verdade,
nosso pequeno país ― é o que assumimos e esfregamos os olhos, perplexos ―
saiu da história entrando no mundo das grandes finanças”.
A obra narrativa de Dürrenmatt é
extensa e aos seus valores literários é necessário agregar a denúncia efetiva
de uma ordem que é nossa. O juiz e seu carrasco, o primeiro romance
policial de Dürrenmatt escrito em 1952, conta a história do comissário Bärlach,
que diante de eventos enigmáticos não hesitará em ajustar a realidade à sua
própria concepção de verdade e justiça. Algo semelhante acontece em A
promessa, um romance que é construído sobre o assassinato da garota Gritli
Moser. Aqui, porém, é a totalidade dos aldeões que aos poucos, por meios
lógicos apenas na aparência, dirigem sua condenação a um mascate que passava,
usando policiais tão brandos quanto obstinados. “O povo”, escreve o narrador,
“espera que pelo menos a polícia saiba como ter o mundo sob controle, enquanto
de minha parte não posso imaginar esperança mais nojenta. A realidade é administra
com a lógica apenas pela metade”.
Em Vale do caos,
Dürrenmatt apresenta-nos uma fábula que foge ao quadro dos romances policiais
que tanto frequentou na sua carreira. Nele surge-nos um lugar inacessível do
interior da Suíça, um lugar em que surge inesperadamente uma pessoa misteriosa,
“semelhante ao Deus do Antigo Testamento, só que sem barba”. Este homem é o
presidente de um sindicato internacional do crime, um alto executivo que, com a
ajuda de seu dedicado assistente, Gabriel, dará conselhos e resolverá os
problemas dos habitantes da cidade. O enredo gira em torno de um spa que é a
única fonte de renda dos moradores. Influenciado por um teólogo, o “Deus sem
barba” vai comprar o spa para transformá-lo em uma Casa da Pobreza, onde
bilionários podem passar algum tempo sem seus confortos materiais. Isso será
seguido por uma proliferação cada vez maior de subtramas estreladas por magnatas
e corporações internacionais. O pequeno mundo de Vale do caos é mais do
que uma alegoria negra da Suíça contemporânea: o retrato de uma ordem na qual a
polícia, a justiça, o sistema político e o exército contribuem para moldar uma
sociedade na qual é permitido que tanto o crime em grande escala quanto o
pequeno crime florescem, na prática sem qualquer vigilância, e é por si só
razão mais do que suficiente para explorar o trabalho de nosso autor.
Dürrenmatt foi um observador
lúcido de sua época, em que percebeu os sinais de uma perversão generalizada
que soube relatar de forma viciante, usando tanto a precisão sociológica quanto
a ironia. Existem aqui algozes e vítimas, bem como um mecanismo de dominação
através do crime que, apesar da sua complexidade, é facilmente identificável.
Essas vítimas são aquelas que acreditaram que o que aprenderam na escola era
sério. É assim que explica a advogada e narradora protagonista do romance Justiça:
“Naquela época eu ainda queria dar a volta ao mundo com a consciência
tranquila, ansiava por enfrentar processos autênticos, por ter possibilidades
de ajudar as pessoas”, ilusões que desaparecerão em contato com a corrupção em
vigor. E igualmente vítima é o protagonista de A tarefa, um jornalista
que deve investigar a morte de uma mulher e cujo destino se confundirá com
aquele cuja memória ela pretende resgatar.
A obra de Dürrenmatt está, assim,
mais viva do que nunca.
* Este texto é a tradução livre de
“Friedrich Dürrenmatt: actualidad de un olvidado” publicado em La República
Cultural.
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