Existo para o amor de inexistências

Por Tiago D. Oliveira

Trágico é pensar em uma vida sem o coração por vezes na boca. A fé é um instrumento de razão de nossa existência, mesmo quando envolvida pelo avesso de sua força ou empenhada em joelhos dobrados sobre pedras alheias às que sobram na pavimentação comum da sociedade. A fé é um ponto cadente na vida de qualquer indivíduo, seja ela qual for. Humana. Está marcada pela finitude da carne, mas prometida para além dos muros dos jardins. Somos todos partes de uma marca herdada que afere a nossa condição de retorno em um ciclo de reconhecimentos, No princípio era a ferida./ Em sete dias Deus/ criou a cicatriz. O reconhecimento de nossa condição é o que exatamente possibilita a projeção de um lugar de conforto, cura ou simplesmente continuação. 

Em O mosteiro não é Deus, Imaculada Teixeira de Souza eleva a peregrinação de um monge a um lugar de construção no leitor, que vai recolhendo das incertezas de seu caminhante um aprendizado sobre a desconstrução de uma fé idealizada para outra que é fortalecida pelo traço da experiência, De argila crua/ fabrica-se a prece. Há nos versos uma apresentação da poesia cunhada pouco a pouco com a precisão de quem faz do caminho o seu próprio templo de fé.

O livro foi lançado pela editora Cas’a em 2020 e traz a estreia da poeta Imaculada Teixeira de Souza. Organizado em capítulos que dialogam (fragmentos de suma, testemunhos, idade média do monge, fluxo de oração – mosteiro inscrito, insônia; guerra, fuga para o porão; desatino e prece definitiva) O mosteiro não é Deus apresenta uma escrita discreta que direciona o leitor para um certo grau de percepção e análise do mundo. Pois a partir de uma fábula, o monge em seu caminho a procura do entendimento de sua relação de crença ou descrença, Imaculada leva-nos a caminhar com esse personagem que constrói o espaço sagrado de um mosteiro em si.

Pensar sobre o lugar de construção ou localização de nossa fé é o meu primeiro ponto destacado da leitura, pois a sequência de poemas nos leva a pensar sobre a desconstrução de um espaço único para tal. A fé trilhada em passos vividos pelo monge é construída exatamente sobre as suas incertezas, Vagava no outono./ Via nos ares falcões/ lançando curvas na crença. Dessa forma, percebemos que o próprio monge, com toda a sua prática de vida próxima de um sagrado, é também um fruto do que nos torna todos unidos, a humanidade, andava em terra estrangeira sem sair do lugar

O monge abarca também a dúvida do viver, a de estar no mundo, e corre em seus pés a água do passageiro estado humano de finitudes palpáveis, O mal-estar do mormaço, o do grão, o da prece – nele era a voz de seu próprio rio. O movimento realizado em seu cerne é o do próprio estado de descobrimento, o seguir – correndo debaixo da bruma/ de seu pensamento, do seu provisório/ infinito. Percebo em suas marcas a minha fé atravessada pelos mesmos atalhos e contraposições que nos empurram para o abraço e também para o desabrigo.

O título deste texto carrega um verso da poeta, Existo para o amor de inexistências, o que me fez deixar o teclado de lado, virar-me para a janela enquanto o sol se colocava em seu lugar de nascer no outro lado do planeta. O que entendo por fé? Pergunto-me passando a mão sobre os cabelos parcos. Sinto uma leve pontada nas costas pelo largo do tempo sobre a mesma cadeira enquanto escrevo parágrafos depois da leitura. Vejo o tempo em mim e a mudança lenta, porém decisiva que ele realiza a cada dia em meu corpo. Entendo que a fé é transitória, que permuta a cada época, a cada fase da vida. Já não creio na pressa e não me afobo, nada é pra já, como disse Chico Buarque. Enamoro as transformações ao passo em que vou aceitando-as por consequência maior, a vida. Assim como o monge em sua sina, sigo procurando estratégias para a resiliência, para a ordem dos dias, a regra é o disfarce, mas entendo a natureza e por isso sigo, Sou o bicho transparente perpassado/ pelo raio da vontade/ de um Outro, este outro é a face das inexistências negadas pela minha condição de estar no mundo, apenas acessadas quando assumo a possibilidade real de ressignificação da fé.

Depois da leitura de O mosteiro não é Deus entendo que o movimento de ressignificação da fé pode passar pelo crivo mais pessoal ou aleatório possível. Que não confere ao mundo ou destino um olhar sagrado de nossas próprias vontades. Que a nós compete a maturação de nossa fé diante das idas e vindas, das crenças e descrenças somadas nos anos, da capacidade de sorrir enquanto nos atravessa a dor mais genuína. Depois da leitura dos poemas, entendo que a melhor forma de fé é aquela que segue seu curso e abraçando o desconhecido transforma o barro da prece em panelas para os dias.
 

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