Desvio, de Juan Francisco Moretti
Por Pedro Fernandes
A narrativa de Desvio
inicia com uma sentença que, dispersa num episódio de total desorientação do
narrador e personagem, funciona como se um marco de orientação para este jovem
quase tragado pela força das circunstâncias: “Abre os olhos, Nicolás, ele vai
te matar.” No final, a força reativa do chamado é ainda um eco e se amplifica
para fora da narração ao ponto de se integrar na apalermada consciência do
leitor. Sim, este romance é um chamado. Sem subterfúgios, sem meios-termos, por
vezes visceral, desbocado, alucinado, feito de uma urgência necessária; não é
um piparote mas um soco, qual o tomado por este Nicolás que, num ímpeto de
fúria, rompe com os limites da domesticação, e avança para o homem de
qualidades reprováveis, o tipo-gado que, mesmo depois de tantas circunvoluções
terrestres, sente-se autorizado para o insulto racista, vil, da mesma ou pior violência
que a atitude homicida despertada do asco ao que é pior de nós. Talvez para
este tipo a terra é plana, não é mesmo?
De alguma forma, Nicolás desvia.
Escapa à fúria. E nesse mundo sem deuses, é ajudado por um seu semelhante,
quem, em algum momento, se decidiu por integrar uma vida em curso de
degeneração e nela também produziu seus desvios. Assim ficamos: o mundo é as
nossas consequências e a condena ou salvaguarda só existe do convívio, para mal
ou para bem, com os nossos. Mas, o episódio contado, primeiro com a dicção atordoada,
fragmentar, por vezes feita do corte cinematográfico, depois com certa ordem em
parte estabelecida pelos fios da narrativa, é apenas o primeiro de uma série de
sucessos marcados pelo inesperado como se um cego destino quisesse fazer
despertar essa personagem para o grosso da vida. Como numa tragédia grega,
preserva-se do início ao fim, o instante-limite, ainda que ― e
notável, porque afinal este é um romance ― sempre existam as pequenas
ilhas de repouso, onde ainda é possível regressar à sombra fresca do amor ou
aos fiapos de memória de um passado sempre melhor que o presente mesmo que até
revestido do mesmo mormaço da atmosfera do presente. Essa espiral que chamamos
enredo é perfeitamente bem executada, ao ponto de carregar o leitor pelas
circunstâncias e soltá-lo apenas depois que se rompem os fios. Um romance nunca
termina ainda que alcançássemos o tempo do felizes-para-sempre ou o da ansiada
esperança, dois destinos para os quais precisamos esquecer.
Nico desvia da falta de destino ― isso
que ele próprio descobre não ser uma recompensa oferecida pelo acaso, mas produto
de suas atitudes. A construção dessa descoberta passa por se reconectar com os
afetos, esses que só vigoram na rotina pública, nos convívios materiais e não
nas redomas feitas das mesmas emoções e da fabricação fria de uma realidade que
mais nos escraviza a nos impelir para a ação. Fora do displicente e em contato
com as existências comuns ― a do amigo que lhe salta em socorro, este que também um dia
trocou outras aventuras, as exercidas no contato com o mundo material, por
alguma aproximação com o lar ― salta à consciência desse aprendiz, aleatoriamente,
que “É nas pequenas coisas que a gente distingue quem sabe viver”. Embora pareça,
não existem quaisquer formas de nostalgias que favoreçam esses retornos: o
passado, quando se apresenta numa ou noutra invasão da memória, se revela
apenas como um acontecimento entre acontecimentos. Ou seja, essa descoberta
para o mundo, não guarda absolutamente nada da pieguice de transformação do homem
para o bem ou o retorno para um tempo imorredouro. O que mais faz o tempo em Desvio
é devorar as vidas, arrastar as personagens para a certeza trágica que nos faz parte
da mesma massa.
Nesse sentido, este romance de Juan
Francisco Moretti, oferece uma cartografia da violência; o tempo não é Cronos
devorando impiedosamente seus filhos, mas seus filhos numa infinita selvageria.
Numa das tentativas de reaprendizagem no mundo comum, a do encontro com a
família do Rasta / Florían / Flori, composta apenas do amigo e da mãe, Nicolás
estabelece as diretrizes essenciais para essa leitura: sua percepção que a
civilização é a barbárie domesticada. Depois de observar a variedade de objetos
numa cozinha capaz de transformar qualquer pacata dona de casa numa homicida,
se questiona, como conseguimos construir essa domesticação dos instintos para a
vida e não para a morte. Os episódios que povoam boa parte do romance, por sua
vez, constatam que é a nossa brutalidade, essa fúria primitiva, o que nos
orienta e isso a que passamos chamar por condição humana é produto de um
contínuo flagelo de docilização e imbecilização dos corpos. Reflete o narrador
sobre aquelas pequenas violências que animaram a infância de todos, quando, sem
quaisquer reflexos das consequências brigávamos para matar: “Em algum momento
mais tarde, absorvi o medo do ridículo, da humilhação, das consequências
legais, e tudo me dizia que era melhor não brigar.”
Ora, a domesticação das forças é,
portanto, um desvio. Naturalmente somos maus, rudes, instintivos e bárbaros,
logo, qualquer motivo pode nos arrastar outra vez para fora da civilização. Ou melhor,
talvez isso a que chamamos civilização seja outro tipo de barbárie, pior,
porque muitas vezes institucionalizada, regida pelos princípios legais de
funcionamento dos aparelhos burocráticos. Se repararmos nossos pequenos gestos
cotidianos, a banalidade como lidamos com os episódios trágicos, a estreita
insensibilidade para com o outro e mesmo as pequenas apatias que cada vez mais faz
com a gente empurre para o outro a responsabilidade que é de todos; se
repararmos como lidamos com a memória insepulta dos nossos antepassados ― um
itinerário que é repetido e observado por Nicolás em múltiplas direções, da
atitude involuntária aos fluxos puramente cogitados na consciência ― então,
entenderemos de perto a leitura questionadora que Desvio nos provoca
sobre nosso ideal civilizatório.
Não é este romance uma apologia à
violência; nem é isso o que dizemos ao afirmar que é esta a força que nos
mobiliza; tampouco que a condição humana não cumpre sentido social. A violência
é um traço primitivo, inerente à natureza ― qual a imagem da gata que extravia o
corpo inerte da tartaruga para citar um dos episódios registrados pela
narrativa que testemunham seu traço original ― e esta, pelo muito esforço que
fazemos por nos desviar ainda nos comanda com a mesma brutalidade dessa
imagem. Nesse sentido, constata o romance, a libertação do homem dos instintos
bárbaros, ainda que tenha produzido seus frutos, é a maior das utopias.
Por outro lado, o apagamento total da
violência (e falamos sobre a sua energia geradora) coloca em crise a própria
continuidade da civilização; e Nico é uma alegoria dessa condição. O ímpeto
para ação, esse que se perde no entorpecimento dos sentidos e na falsa ideia de
que o mundo se decide por suas próprias leis, é um exemplo singular; e, à sua
maneira, a letargia também nos empurra para o mesmo lugar do bárbaro, uma vez
que, o mundo é, sim, produto de nossas ações. Parece ser nesse sentido que o
próprio Nico, numa aproximação com um versículo bíblico estampado na parede de
uma igreja que serve como núcleo de apoio a idosos, entende que “Para os ateus
natos, o otimismo religioso tem a doçura suspeita de uma fruta a ponto de
apodrecer”.
Todo homem bom é um imbecil. A máxima
lançada pela personagem principal de Desvio num dos seus momentos de
fúria estabelece um conjunto diverso de sentidos. No itinerário proposto neste
texto, este conceito reitera a impossibilidade do homem inteiramente bom; este,
se o há, é um sujeito de inteligência curta, capaz de servir à comunidade como
o bode de expiação. Mais tarde, confrontado pela mãe com essas palavras que
foram jogadas por Nico contra Raúl, o namorado dela, ele parece titubear, desacreditar
ou mesmo se desfazer da afirmativa. A mãe, o corrige dizendo que um homem bom é
só isso e nada mais e amarra a questão reiterando como exemplo o próprio filho.
Ou seja, se Nico concorda com a verdade do que disse, é ele próprio um imbecil.
Bom, a confirmação não é de um todo mentirosa.
Entre as várias sentenças de morte que
algumas leituras têm lançado desde o fim da década de 1940, uma delas se
dirigiu narrador. Mas, romances como este de Juan Francisco Moretti continuam a
servir de justificativa a pensar os erros do fatalismo, porque justamente
apontam o seu contrário. O que aqui se leu é graças ao prodígio do narrador de Desvio,
um sujeito dotado duma riqueza imaginativa efervescente, situado sempre no limiar
da experiência, que é entre a ação e a imaginação e esta colabora para o desenvolvimento
formal dos sentidos provocados pelo termo-título do romance. Em algum momento, Rasta
qualifica Nico com o epíteto de autista. O constante entrar e sair da realidade
imediata, por vias das mais diversas não apenas confirma o estágio de homo
imbecillis, favorece um proposital estágio de desestabilização do realismo cru
empregado nas descrições de vários episódios de cores berrantes, próximas,
claro está, dos tons da violência. Ao mesmo tempo que desviam aguçam os
sentidos da barbárie. Também obrigam o leitor a estabelecer suas escolhas no
pantanoso território da invenção, entre o acontecido e o possível, restando,
assim, pouquíssima coisa que possamos identificar como a verdade absoluta. No
mais, é pouco provável que este homem estabelecido numa redoma dada sua incapacidade
para a ação ― ainda que desenvolva suas certezas sobre um desencanto do mundo ―
signifique o produto de uma geração incapaz de desviar o curso da civilização
de seu fracasso. Nada mais fundamental a um romance nesses nossos tempos.
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