Compartilhar é paz, curtir é escravidão, comentar é força!
Por Pablo Augusto-Silva
Se você nasceu antes ou por volta de
1990, traga à memória os inícios de sua vida na internet. É provável que deva
ter tido uma sensação estranha quando começara a receber suas primeiras notificações,
digamos, duma foto do churrasco da vizinha ou do tênis que o primo acabara de
comprar; de vídeos curtos do chefe a exibir o volante do veículo ou do colega
de academia a malhar o bíceps... Tal estranhamento tem a ver com nossa repulsa
ao tosco, ao que não foi lapidado nem polido, porque não há nada mais tosco do
que receber uma foto dum prato de comida, do tênis novo ou dum vídeo com a
legenda "Ufa, treino hoje tá pago!"...
Ao longo desse tempo, você até encerrara
algumas contas das inúmeras redes sociais por não ver muito sentido em
compartilhar tanta tosquice. Tal estranhamento, porém, entre a vergonha alheia
e aquela vontade de rir quando lemos sobre hábitos muito exóticos de povos
distantes no tempo ou no espaço, vem deixando de fazer parte de nosso mundo
desde 2007, data em que os Smartphones são inventados e popularizados mundo
afora. Hoje, 2021 d.C., você já deve ter reativado uma dessas contas e mesmo
que não a use como um adolescente nerd, ansioso, antenado, ainda assim, devido
a algum motivo inexplicável, qual um viciado, não consegue ficar por muito
tempo – e muito tempo atualmente é questão de três, quatro dias – longe duma
rede social qualquer. E é muito provável que hoje, janeiro de 2021 d.C., você já
nem mais perceba como até se esquecera (e até ria!) daquela sensação de
vergonha alheia que sentira num passado não tão remoto, a ponto de fazer o
mesmo como todo mundo: curtir, compartilhar, comentar (adjetivar). E a que isso
se deve? Como a cultura, junto à tecnologia, conseguiu moldar nosso comportamento
de modo tão rápido? Será que conceitos como ‘sociedade do espetáculo’, ‘sociedade
da vigilância’ dão conta de nossas relações sociais ‘glocais’ (Robertson, 2004;
Lourenço, 2014), global e local, nas quais nós, indivíduos do século XXI, estamos
imersos? Global porque, graças a um dispositivo (Smartphone) e a seus
aplicativos (redes sociais) circulando em escala planetária, podemos
compartilhar globalmente tanto problemas sérios quanto futilidades de nosso local.
O filme O Círculo (2017) – baseado
no romance homônimo (Eggers, 2014) e alter ego de gigantes como Google, Amazon,
Facebook e alhures – ajuda-nos a entender a gênese dessas mudanças de
comportamento em nosso dia-a-dia. Eis a sinopse:
"O Círculo é uma das empresas
mais poderosas do planeta; atuando no ramo da Internet, é responsável por
conectar os e-mails dos usuários com suas atividades diárias, suas compras e
outros detalhes de suas vidas privadas. Ao ser contratada, Mae Holland (Emma
Watson) fica empolgadíssima com a possibilidade de estar perto das pessoas mais
poderosas do mundo como Eamon Bailey (Tom Hanks), Tom Stenton (Patt Oswalt) e
Ty (John Boyega), mas logo perceberá que seu papel lá dentro é muito diferente
do que imaginava". (O Círculo, 2017)
Anos após as reflexões sobre a
sociedade do espetáculo / vigilância no filme O Show de Truman (1998) o mundo
mudou e tais mudanças em nossa forma de comunicação foram ainda mais drásticas.
Naquela época, quando se popularizava os reality-shows, ainda podia-se dizer
que o indivíduo era enganado por grandes corporações, cujas intenções era transformá-lo,
em especial o morador da grande cidade, num autômato dum Big Brother qualquer. No
mesmo tom distópico, e sem a poesia e os arquétipos de antagonistas que deixam explicações
até certo ponto simplificadas na obra de 1998 – Truman Burbank mera vítima manipulada
por meios de comunicação com a anuência duma sociedade mais desejosa de circo
que de pão – O Círculo retoma e atualiza a temática comunicação-informações. Toda
a sua atmosfera, por tratar de nossas existências pelo prisma do mundo digital ao
invés de pelos meios de comunicação de massa tradicionais, remete-nos a
metáforas que nos induzem a pensar em mobilidade, movimento e participação
política mais no interior de teias, tramas e redes do que de mapas, trilhos e estradas,
com conclusões menos dualistas, mas mais tenebrosas.
No século XXI, o Estado e as
Corporações sabem tudo sobre o indivíduo. A novidade de nossa época, porém, surpreenderia
personagens de autores tão díspares como Franz Kafka (1925) ou Ayn Rand (1943):
nós também sabemos que eles sabem de tudo a nosso respeito e ainda assim nos
submetemos, ora resignável ora resistível, mas ainda submissão, tanto à
espetacularização quanto à privatização de nossa privacidade individual.
Submetemo-nos porque também ganhamos ao fazê-lo; ninguém duvida de que é um
progresso social poder compartilhar vídeos que denunciem a opressão, como o dum
homem já rendido, algemado, sendo enforcado por policiais ou duma mulher sendo
assediada no transporte público.
Contudo, os críticos ferrenhos da internet que
enfatizam, não sem razão, seu potencial de linchamentos, calúnias e
prejulgamentos devido à rápida naturalização do ato de compartilhar qualquer
coisa, raramente colocam a seguinte questão: antes dos Smartphones e do compartilhamento
instantâneo, quanto tempo se levaria para que tais casos viessem a público? É
fácil esquecermos o longo processo para que tais opressões virassem (e se
virassem) notícia: precisaríamos fazer contato com algum jornal impresso ou
emissora de TV, explicar a natureza do conteúdo, enviar o material (caso o
veículo se interessasse), esperar a sua análise e ficar à mercê dos editores e
de suas preferências morais e políticas se o material deveria (ou não) ser publicado.
E se fosse publicado: quando seria? No dia seguinte? Dois dias depois? Uma
semana depois? E como seria publicado: à moda do denunciante, de quem
filmou/fotografou, ou dos editores? E depois de publicado: quais espaços o cidadão
comum teria para se posicionar? Na 'Carta dos Leitores', seção do site e do
jornal impresso que pouquíssimos leem? Enviar cartas ou e-mails para a redação,
sem obter respostas? Fazer ligações telefônicas para a emissora de rádio sem
muita esperança de ser atendido? Enfim, uma pergunta retórica: teria o mesmo
efeito do ato de compartilhar (reagir, comentar, adjetivar) instantaneamente?
Devemos
tomar cuidado com argumentos humanistas que, parafraseando Umberto Eco (2015), podem
ser resumidos na sentença "as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis...".
O problema de tais argumentos, dos quais não duvidamos de sua boa-fé, é trazer consigo
não só elitismo, menor dos males, senão alta carga de reacionarismo. É possível
ler artigos no qual o analista consegue exaltar o papel do 'povo' em revoluções
alhures ao mesmo tempo em que esnoba o papel do 'povo' nas redes sociais, mal
se dando conta da rasa perspectiva histórica e da dissonância cognitiva para
fazer afirmações tão sem nexo. Afinal, o 'povo' de antes era menos imbecil do
que o de hoje? Se sim, como seria possível medir com retidão o grau e a condição
da imbecilidade?
É fato que as redes sociais deram voz
a muitos imbecis, as fake-news estão aí para comprovar. Mas imbecis – e ignorantes e falaciosos e
fascistas – antecedem Smartphones e redes sociais. Se há algo que merecia um
estudo é o mapeamento dos lugares sociais donde surge a maior parte dos
argumentos que execram a participação do imbecil que agora se junta à 'opinião
pública' e participa do debate, ainda que de modo tosco e em muitíssimos casos "na
força do ódio" para usar uma expressão corrente nas redes sociais; não
duvidamos de que tal estudo nos revelaria que a sua maioria de tais lugares origina-se
em editoriais e artigos de colunistas de jornais impressos e televisivos que,
mesmo com o surgimento e o boom dos blogs independentes nos finais dos anos
1990 (Hewitt, 2007), nunca viram sua posição ameaçada, uma vez que blogs costumam
atrair públicos compartimentados e não a legião anônima de imbecis que comenta nas
redes sociais. Foi a partir de 2007 adiante, com a cultura do compartilhamento
surgida após a popularização dos Smartphones, que a autoridade jornalística
começou a ruir: primeiro com o susto que tiveram ao saber que muita – mas muita
gente mesmo – incluso leitores assinantes, não concordava com seus artigos de opinião;
segundo com o assombro de análises divergentes surgidas nos comentários abaixo
dos próprios artigos ou nas redes sociais onde eram compartilhados; terceiro com
o terror das fake-news que vem sendo tomada por ampla parcela do público como 'fatos
alternativos'1 e concorrentes da opinião pública qualificada.
A percepção social da imprensa
como única ágora moderna – extensão do parlamento nalguns casos e do judiciário
noutros, ao filtrar temas, pautar debates, fiscalizar e julgar homens públicos
– não vem se sustentando mais. As redes sociais vieram competir, almejando serem
outras pequenas ágoras, ainda que a imprensa profissional tome-as por abatedouros.
Se algum analista as desdenha como mero espaço de muito barulho (e pouco
conteúdo), talvez desconheça, ou negue, que os jornais impressos, primeiros
veículos do que hoje chamamos Imprensa com maiúscula, nasceram quase todos no
mesmo espírito de dissonância: como espaços de oposição política ao status quo;
e só quando realiza seus objetivos (deposição, revolução, golpe, impeachment
etc.) é que começa a ser negócio, empresa a ser gerida, tornando-se,
politicamente, situação caso veja seus interesses encorajados pelo poder, enquanto
as emissoras de rádio e TV vão em direção contrária: por serem concessões
estatais nascem já como empresa, e politicamente como situação, podendo tornar-se
oposição caso veja seus interesses ameaçados. O arquétipo do Cidadão Kane,
magnata todo-poderoso, está ligado a essa última fase da imprensa a ponto de
suplantar aquela, opositora e revolucionária, em nosso imaginário atual, mas também
está com seus dias contados nesse novo mundo surgido com O Círculo e tipos como
Mark Zuckerberg.
Toda essa mudança comportamental e
de percepção social não está restrita apenas aos imbecis. Também é possível observá-la,
de forma curiosa, nas classes dominantes: se antes esconder a riqueza e
usufruí-la em privado era uma ação que fazia sentido racionalmente (não causar invejas
nem provocar a turba a justiçarias com as próprias mãos), caminhamos para uma
inversão, oposta a tal ato. Isso é algo que nenhum liberal do século XX, menos ainda
um do século XIX, chegou a prever: neste novo mundo d'O Círculo, com a voz dos
imbecis e a pena das fake-news, até mesmo o 'burguês' vem abdicando de sua
privacidade. Se antes a ostentação da riqueza – obedecendo a certas regras de
etiqueta e de bom gosto, de se mostrar com elegância e de apreciar com
moderação – era competição restrita entre os iguais de sua classe, grupinhos de
voyeurs e de cocotes, ao mesmo tempo em que a escondia das classes
trabalhadoras para evitar conflito, desordem, inveja e até mesmo certa culpa, quando
o "espectro do comunismo" rondava o mundo aviltando seus valores e existência
social, agora vemos o oposto: mostrar-se a si e suas riquezas para além dos
muros da própria classe social vêm perdendo o laivo de ostentação, grosseria,
esnobismo, transformando-se num comportamento que se não é virtuoso, ao menos
não é mais reprovável porquanto visto como autêntico, sincero, empático, 'gente
como a gente'... Há todo um esforço nesses novos papéis sociais em mostrarmo-nos
não como queremos ser vistos, mas como realmente somos em nossa vida privada. Nesse
novo mundo d'O Círculo o 'querer ser' da antiga sociedade do espetáculo é ressignificado:
só aceitamos que o indivíduo seja. A exposição do argumento é complexa porque
exercer papéis sociais é algo complexo, difícil separar o 'como realmente somos'
do 'como queremos ser vistos'.
Por exemplo, se é possível que
historiadores já consigam traçar alguns paralelos deste mundo virtual com a
idade média onde o corpo, via escatologias e violências físicas, fazia parte do
dia-a-dia, por outro lado, enquanto a estatística mostra que a maioria dos abusos
sexuais de impúberes acontece no lar, ainda é raro vermos tais atos sendo
compartilhados na vida que se leva dentro d'O Círculo, embora não duvide de que
isso seja possível, tanto com consequências positivas ao denunciarmo-los quanto
negativas ao naturalizarmo-los, neste novo mundo virtual. E senão os vemos,
duas hipóteses: tais atos vêm decaindo devido ao medo do linchamento ou então,
caso mais provável, continuamos a mentir como sempre fizemos; agora porém haveremos
de pagar altos preços porquanto ter e querer uma vida totalmente privada são, e
continuarão a ser, vontades cada vez mais suspeitas perante a comunidade, ainda
que ela saiba e conheça todos os nossos endereços, amigos, familiares e
parentes.
Como toda distopia que se
apresenta como utopia antes da ruína, O Círculo também tem seus slogans. A intertextualidade
que o remete a 1984 de Georg Orwell (1949), clássico da literatura e distopia
política do século XX, tanto o homenageia quanto o substitui:
Sai o bordão realista do século XX,
da obra 1984 (1949):
"Guerra é Paz – Liberdade é
Escravidão – Ignorância é Força"
E entra em cena o bordão romântico
do século XXI, da obra O Círculo (2013):
"Segredos são Mentiras – Compartilhar
é Cuidar – Privacidade é Roubo"
Nas teias da vida digital, mais do
que quaisquer outras ideologias terminadas nalgum '-ismo', vamos, por conta
própria, nos submetendo, e aos poucos nos modificando, inclusive as
personalidades mais tímidas e reservadas, em pessoas extrovertidas. É o que se
dá com a protagonista Mae Holland, funcionária provinciana, desprendida, comum;
se no início do novo emprego ela ainda se surpreendia com a falta de
privacidade, seu comportamento social e sua psique vão mudando, transformando-se
– lentamente – devido aos novos hábitos da cultura do compartilhamento a ponto
de compartilhar a vida sexual dos próprios pais sem ver nenhum problema nisso quando
passa a racionalizar e a enxergar a vida a partir do novo bordão.
Há, porém, em todo esse processo um
nó do século XX que não foi nem demonstra tendências de que será desatado tão
rápido. Assim como a burocracia – profissionalizada durante o colonialismo e a segunda
revolução industrial (1870-1914), analisada por Max Weber (2008: 138-170) e ficcionalizada
por Franz Kafka – a vida digital tem algo de vampiresco e quer sempre mais. Se antes
passava-se o tempo a assinar, selecionar e acumular papéis e documentos, o que tornava
a burocracia um fim em si mesmo, agora passa-se o tempo a compartilhar, curtir,
comentar (adjetivar) ora tosquices ora estados emocionais: "Perdi a escova...
quem está feliz?" "Comprei um Nike... quem se odeia?" "Comi pizza... quem gozou?"...
E, tal como a burocracia quando a adentramos, não mais conseguimos sair dessa
jaula de ferro, ou das teias, para usar metáfora adequada: ficar 72 ou 96 horas
longe d'O Círculo é, a cada dia, tarefa mais árdua. Outra experiência cada vez mais
comum: se você é mãe (ou pai) de criancinhas e está nas redes sociais, mas não
costuma compartilhar avidamente fotos e vídeos de seu dia-a-dia, é provável que
já tenha sido ridicularizado por familiares e amigos nas próprias redes sociais,
e não só por aqueles que moram distantes, mas até mesmo por quem mora próximo,
cuja simples visita resolveria o problema. Críticas morais: egoísta, mesquinha...
Se isso já aconteceu contigo, bem-vindo ao novo mundo erigido por O Círculo: seus
críticos já estão nele, ajudando a emaranhar todos os que ainda resistem. E como
a burocracia, esse novo mundo é caminho sem volta: já não se trata de por que, onde,
como, mas de quando, após O Círculo enlaçar a todos, haveremos de viver apenas em
sua órbita.
Em que pese a história atualmente
contada sobre a Ciência de Dados, campo multidisciplinar no qual disciplinas
como estatística, matemática e ciência da computação reinam absolutas (Terra,
2020), é preciso relembrar que parte de sua gênese pode ser encontrada nalgumas
áreas das ciências sociais dos anos 1950/60, influenciadas pela obra de Norbert
Wiener (1948) e promissoras à época em seus anseios de se tornarem tão 'hards'
quanto as ciências da natureza2. O mundo d'O Círculo entrelaça
inteligência artificial, psicologia e teoria social, em especial teorias e
conceitos sociológicos da escola funcionalista. Um desses conceitos, homofilia
social (Goldbeck, 2013), grosso modo afirma, baseado em estudos empíricos, que
as pessoas muito raro procuram o 'diferente' em suas relações sociais,
principalmente quando se trata de amizades; de modo inconsciente, desejamos, procuramos
e ficamos amigos de pessoas parecidas conosco, daí a força dos pequenos grupos no
nosso dia-a-dia como igrejas, times de futebol, academias, botecos, escolas, associações
profissionais, partidos políticos, clubes esportivos ou grupos de qualquer natureza
com que um indivíduo possa se identificar (Mills, 1967). As curtidas e reações
nas redes sociais originam-se aí: os grupos do Facebook, por exemplo, realiza nosso
desejo de uma realidade cotidiana de homofilia social de modo eficaz no mundo
virtual. A partir da Homofilia, a inteligência artificial rastreia e mapeia
cada curtida (positiva, negativa, neutra) que damos sobre qualquer coisa na internet
e então monta-nos uma espécie de dossiê. Na linguagem dum acadêmico dos anos
1960, adágios como 'os opostos se atraem' não passam duma função manifesta (politicamente
correta) para esconder uma função latente (só o igual me atrai). Cruzar
fronteiras psíquica, cultural e social, como sabem bem os historiadores, não é
um padrão do comportamento humano, sempre foi interesse de poucos, dos
"excêntricos" – diletantes, intelectuais, artistas, e escritores especialmente.
Os emojis de reação sofisticaram ainda mais o conceito porquanto agora informam
não só sobre nossa personalidade, como nossos estados emocionais. Tudo isso ajuda
a explicar porque no ativismo digital, fruto da bolha e do ultranarcisismo que
a homofilia social gera, a maioria dos militantes, de qualquer espectro político,
tem a pretensão de querer escolher com quem hão de debater, como se isso fosse
possível na esfera política.
Junte-se a isso o surgimento de
aplicativos que conseguem: imitar (falsificar) a voz; inserir de modo realista um
rosto em qualquer vídeo; e modificar um vídeo original, inserindo nova imagem e
editando suas falas (Dvorsky, 2017; Suwajanakorn, 2018; Citron, 2019). Com isso,
as fake-news estão à beira dum salto qualitativo: já-logo será possível inserir
pessoas em vídeos cruéis, pornôs, violentos ou editar falas, entrevistas, discursos
e reinseri-los noutro contexto, por exemplo, discursos inflamados dum radical vertidos
na boca dum moderado e vice-versa. Veremos absurdezas quando tais tecnologias
não conseguirem distinguir vozes falsificadas de originais; um cidadão (seja
ele um político ou um criminoso) que de fato dissera algo poderá negá-lo argumentando
que se trata de falsificação, dificultando ainda mais a distinção entre fato
histórico, 'fatos alternativos' e fake-news: "está chegando o dia em que
discursos vocais, assim como imagens processadas no Photoshop, poderão ser
manipulados sem nosso conhecimento [...] a era em que podemos confiar em
gravações de áudio está prestes a chegar a um fim" (Roose, 2018).
Mas eis o grande estalo: é preciso
compartilhar não tanto o que você pensa, e sim o que você sente. No trecho abaixo,
Eamon Bailey, um dos três fundadores d'O Círculo, está dando uma concorrida palestra,
junto com a funcionária Mae, para funcionários, universitários e
empreendedores:
"'Muito bem', disse Bailey,
como se tivesse reunindo forças. 'Neste ponto vamos entrar em algo mais
pessoal. Como todos vocês sabem, tenho um filho, Gunner, que nasceu com PC,
paralisia cerebral. (...) Não pode andar. Não pode correr. Não pode andar de
caiaque. Então o que ele faz se quer experimentar algo assim? Bem, ele assiste
vídeos. Vê fotografias. Boa parte de suas experiências do mundo chegam por meio
das experiências das outras pessoas. E é claro que muitos de vocês, membro do Círculo,
têm sido muito generosos e o abastecem com fotos e vídeos de suas viagens.
Quando ele vivencia a imagem da [câmera em tempo real] SeeChange de um membro
do Círculo subindo o monte Quênia, ele se sente escalando o monte Quênia.
Quando vê vídeos em primeira mão feitos por um velejador da America's Cup de
iatismo, Gunner, de certo modo, sente que também participou da America's Cup.
Tais experiências foram viabilizadas por pessoas generosas que compartilham com
o mundo, com meu filho inclusive, aquilo que viram. E podemos imaginar quantas
pessoas como Gunner existem pelo mundo. Podem ser deficientes. Podem ser
idosos, que não têm como sair de casa. Podem ser mil outras coisas. Mas a questão
é que existem milhões de pessoas que não podem ver o que você viu, Mae. Parece
justo privar essas pessoas de ver o que você viu?'
A garganta de Mae estava seca e
ela tentou não demonstrar sua emoção. 'Não. Parece muito injusto'. Mae pensou
em Gunner, o filho de Bailey, e pensou no próprio pai [também doente].
'[Mae] Você acha que elas têm
direito de ver coisas como as que você viu?'
'Acho.'
[...]
'Muito bem. Acabamos de conversar
sobre como nós, seres humanos, escondemos aquilo de que temos vergonha. Fazemos
uma coisa legal ou antiética e escondemos do mundo porque sabemos que está
errado. Mas esconder uma coisa maravilhosa, um passeio sensacional pela água da
baía, iluminado pelo luar, uma estrela cadente...'
'Foi puro egoísmo, Eamon. Foi egoísmo
e mais nada. Da mesma forma como uma criança não quer dividir seu brinquedo
predileto. Entendo que o segredo faz parte, digamos, de um sistema de
comportamento inaceitável. Provém de um lugar ruim, não de um lugar de luz e
generosidade. E quando privamos os amigos, ou alguém como seu filho, Gunner, de
experiências como a que tive, no fundo estamos roubando delas essas
experiências. Privamos essas pessoas de algo a que elas têm direito. O
conhecimento é um direito humano básico'" (Eggers, 2014: 319-321).
O longo excerto resume a nova
psique que se estrutura a partir do bordão citado: "Segredos são Mentiras
– Compartilhar é Cuidar – Privacidade é Roubo".
Se antes a "graça" de viagens,
culinárias exóticas, sexo casual, relação extraconjugal, estava na fruição em si
mesma, na ideia de algo único, incrível, e até proibido, pouco importando quem saberia,
neste novo mundo o agora antigo prazer da privacidade individual, ou do
compartilhamento apenas com pessoas íntimas, vem se tornando não só excentricidade,
como imoral: é puro egoísmo, como diz a personagem. O compartilhamento das
emoções vividas em tais experiências é tão ou senão mais admirável quanto à
própria experiência vivida e "não compartilhar suas experiências
[emocionais] é o maior crime que você pode cometer contra a humanidade"
diz a personagem Mae (no filme), ecoando uma verdade que nossa época está erigindo.
Aqui, o conhecimento como direito básico de todo ser humano está menos para o Iluminismo
e mais para o Romantismo mostrando, aliás, toda a sua força como o '-ismo' psíquica
e socialmente mais poderoso da modernidade. Repara: os perfis mais populares,
de qualquer área, são os dos 'românticos', não os dos 'realistas'. Intelectuais
românticos. Cientistas românticos. Artistas românticos. Pessoas comuns
românticas. Imbecis românticos. Todos têm mais alcance do que rivais ou
concorrentes realistas.
É por isso que quaisquer políticas
culturais ou de empreendedorismo calcadas apenas em conteúdos realistas parecem
fadadas ao fracasso. Exemplo: a dificuldade (exceto para estudiosos) dum cidadão
comum do século XXI em ler obras do século XIX, em especial de autores não românticos
e pouco importa se ficção ou não-ficção, é que, parafraseando Franco Moretti, elas
tratam dum mundo no qual a subjetividade está em segundo plano, logo, onde não
há conexão com o artista, logo (pretensão de) objetividade. E onde há objetividade
há "supressão de algum aspecto do eu" afirma a historiadora Lorraine Daston
(Moretti, 2014: 96). E haverá maior crime na cultura contemporânea – desde a
contracultura, a teoria pós-moderna que lhe segue e a hegemonia dos movimentos
identitários na atual agenda da esquerda – do que suprimir aspectos do Eu? Por
ora, é o Realismo que está morto porquanto, no mundo erigido por O Círculo, Conhecimento
dá pouca ênfase à objetividade, à cognição e ao intelectualismo. Conhecimento
como cultura socialmente compartilhada pode ser traduzido por Sentimento, no
sentido que lhe dá o Romantismo: conhecimento de nossas emoções, como prova a
sofisticação cada vez melhor dos emojis para capturar nossos estados
emocionais. A novidade é que, para o bem e para o mal3, o mundo d'O
Círculo mostra que somos, e queremos sê-lo ainda que não queiramos arcar com as
consequências, como a personagem Truman Burbank, mas sem sua ignorância e
ingenuidade. Mae Holland é uma versão faustiana de Truman, ainda que não tão
diabólica quanto Mefisto. Pelo menos até agora...
No filme, o ponto fraco é não ter
levado aos extremos as premissas embutidas no romance, ainda que seu autor também
seja um dos roteiristas. Entraves de Hollywood, pois foi pensado e produzido
para ser um blockbuster e enquanto tal termina com um remate para uma obra com este
objetivo: uma Mae Holland inconformista saindo da caverna da ignorância e a se
rebelar contra o "sistema", o maior dos clichês, quando teria sido mais
original se, na cena final, tivesse frustrado a expectativa (de rebeldia) do público
como uma heroína perdedora, harmonizada com o tom todo distópico do filme. Com
isso, a 'catarse' já esperada lança o público de volta ao conformismo.
No livro, embora ouçamos ecos de 1984
de Georg Orwell na construção dum bordão fácil de lembrar e repetir, o
personagem Kalden/Ty, um dos fundadores da empresa – arquétipo do herói
coadjuvante, arrependido por não ter previsto que O Círculo se tornaria um
tubarão que a tudo devora – pede a ajuda de Mae para destruí-la, alertando a
sociedade dos "perigos" desse novo mundo. Ela discorda e o denuncia
levando-o à bancarrota; ponto certeiro do escritor. Seu desacerto, assim como o
de muitos livros e reflexões sobre o papel da vida digital em nossas vidas,
está em superestimar ideias e subestimar coisas quando a importância de
dispositivos em processos de mudança social não pode ser desdenhada. O filósofo
Michel Serres nomeava tais dispositivos como objetos-mundo: instrumentos
construídos e disseminados a partir do conhecimento científico capazes de
atingir e penetrar em proporção e extensão o espaço global em tempo real: com
eles "podemos nos comunicar (ou nos matar) à velocidade da luz"
(Serres, 2003: 211). Exemplos de objetos-mundo: bomba atômica, notebook, celular,
resíduos nucleares, satélites, vacinas, gás carbônico jogado na atmosfera pelas
indústrias, internet, drones... Quando escreveu isso, em 2001, pensava no
celular, dispositivo revolucionário à época, mas que mal se compara com o que
viria a ser o Smartphone apenas seis anos depois. Desde que a Microsoft
(softwares) levou a melhor contra a IBM (hardwares), quase toda a literatura
(ficção e não ficção) sobre criatividade, empreendedorismo, novos negócios
costuma dar mais importância a softwares do que a hardwares (dispositivos) criando
toda uma mitologia ao associar engenhosidade aos primeiros e engenharia aos
segundos. As redes sociais são anteriores ao Smartphone, mas sem este dispositivo
a cultura do compartilhamento teria vingado tão rápido? Os Círculos teriam
criado um ecossistema tão potente sem ele? Estou entre os que não subestimam a
força e o perigo de coisas como os dispositivos (hardwares). Sem a invenção da prensa
de Johannes Gutenberg em meados do século XV, por exemplo, é difícil imaginarmos
este texto, livrarias, reforma protestante, panfletos revolucionários, imprensa,
livros ou o dispositivo em que você leitor está lendo este ensaio agora.
Notas:
1 A Cambridge Analytica,
segundo Brittany Kaiser uma ex-funcionária, atuava como produtora de fatos
alternativos, não de fake-news. Exemplo: vídeos antigos de Hillary Clinton
chamando jovens negros de predadores, descontextualizados do original, eram
direcionados a eles; ninguém poderia acusar a empresa de fake-news, nem mesmo
juridicamente, porque os vídeos existem e Hillary de fato falou tudo
aquilo (Kaiser, 2020). Michiko Kakutani, da direita à esquerda, faz uma gênese
e distinção entre multiculturalismo, relativismo, pós-modernismo, fatos
alternativos e fake-news; mentira na política não é novidade, mas, diz ela, as
peculiaridades das fake-news, usadas inicialmente pela militância da
extrema-direita, sim, e podem até encontrar sustentação ético-filosófica em
muitos autores da esquerda pós-moderna (Kakutani, 2018). Asad Haider, da
esquerda à direita, diz que as pautas da esquerda identitária não diferem em
essência às da extrema-direita, podendo até ser encontrada em conservadores
ultranacionalistas (Haider, 2019).
2 Segundo Theodore Mills
(1967: 214-215), algumas revistas científicas – Sociometry, Human
Relations e Journal of Abnormal and Social Psychology – vinham
publicando artigos dessa natureza, mas a principal publicação, a que
apresentava "a aplicação de matemática e técnicas de computador a grande
amplitude de problemas, alguns dos quais [...] importantes para pequenos
grupos" era a Behavioral Science.
3 O mal está no
anti-intelectualismo que afiança e faz prosperar fake-news, 'fatos
alternativos' e, no Brasil, na ascensão política de religiosos obscurantistas,
orgulhosos duma sabedoria 'viva', antiteórica e antilivresca.
CITRON, Danielle. Como os
"deepfakes" minam a verdade e ameaçam a democracia. Trad. Carolina Ragazzi de Aguirre. TED,
Setembro de 2019. Aqui.
DASTON, Lorraine. Historicidade e Objetividade. Trad. Derley Menezes Alves e Francine Iegelski. SP: Liber Ars, 2017.
DVORSKY, George. 'Este gerador de fala consegue falsificar a voz de qualquer um'. Gizmodo Brasil, 03/05/2017. Aqui.
ECO, Umberto. 'A conspiração dos imbecis'. Veja, 26/06/2015. Aqui.
EGGERS, Dave. O Círculo. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia. das Letras, 2014.
GOLDBECK, Jennifer. 'O dilema das fritas enroladas: Por que 'curtidas' em mídias sociais dizem mais do que você pensa'. Trad. Gustavo Rocha. TEDxMidAtlantic, outubro de 2013. Aqui.
HAIDER, Asad. Armadilha da Identidade: raça e classe nos dias de hoje. Trad. Leo Liberato. SP: Veneta, 2019.
HEWITT, Hugh. Blog: entenda a revolução que vai mudar seu mundo. Trad. Alexandre M. Morais. RJ: Thomas Nelson, 2007.
KAFKA, Franz. O Processo. Trad. Lívia Bono. Cotia: Pé da Letra, 2018.
KAISER, Brittany. Manipulados: como a Cambridge Analytica e o Facebook invadiram a privacidade de milhões e botaram a democracia em xeque. Trad. Roberta Clapp e Bruno Fiuza. RJ: Harper Collins, 2020.
KAKUTANI, Michiko. A morte da verdade: notas sobre a mentira na Era Trump. Trad. André Czarnobai e Marcela Duarte. RJ: Intrínseca, 2018.
LEITE, Dante Moreira. O amor romântico e outros temas. 3ª ed. SP: Edunesp, 2007.
LOURENÇO, Nelson. Globalização e glocalização: o difícil diálogo entre o global e o local. Mulemba, 4(8) 2014. Aqui.
MILLS, Theodore. Sociologia dos Pequenos Grupos. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Pioniera, 1970.
MORETTI, Franco. O burguês: entre a história e a literatura. Trad. Alexandre Morales. São Paulo: Três Estrelas, 2014.
ORWELL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner e Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
RAND, Ayn. A Nascente. Trad. David e Andrea Holcberg. SP: Arqueiro, 2013.
ROBERTSON, Roland. 'Nous vivons dans un monde glocalisé'. Le Courrier, 14/06/2004. Aqui.
ROOSE, Kevin. 'Depois das fake news, começam a surgir os vídeos falsos'. Trad. Claudia Bozzo, Estadão, 08/03/2018. Aqui.
SERRES, Michel. Hominescências – o começo de uma outra humanidade? Trad. Marisa Perassi Bosco e Edgar Carvalho. RJ: Bertrand Brasil, 2003.
TERRA, Kizzy. 'Ciência de Dados, Informação e Educação nos tempos de Covid-19 – entrevista com Kizzy Terra'. Ogunhê Podcast, 14/05/2020. Aqui.
SUWAJANAKORN, Supasorn. 'Vídeos falsos de pessoas reais e como identificá-los'. Trad. Maurício Kakuei Tanaka. TED, abril de 2018. In: Aqui.
WEBER, Max. "Burocracia". In: Ensaios de Sociologia. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 138-170.
WEBER, Max. Sociologia da Imprensa: um programa de pesquisa. Lua Nova, 55-56, 2002, p. 185-194.
WIENER, Norbert. Cibernética: ou Controle e Comunicação no Animal e na Máquina. Trad. Gita Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2017.
Filmes
O CÍRCULO. Direção: James Ponsoldt. Roteiro: James Ponsoldt/Dave Eggers. Elenco: Emma Watson, Tom Hanks, John Boyega etc. Drama/Suspense/Ficção Científica. EUA, 2017, 110 min.
O SHOW DE TRUMAN. Direção: Peter Weir. Roteiro: Andrew Niccol. Elenco: Jim Carrey, Laura Linney etc. Drama/Comédia. EUA, 1998, 103 min.
DASTON, Lorraine. Historicidade e Objetividade. Trad. Derley Menezes Alves e Francine Iegelski. SP: Liber Ars, 2017.
DVORSKY, George. 'Este gerador de fala consegue falsificar a voz de qualquer um'. Gizmodo Brasil, 03/05/2017. Aqui.
ECO, Umberto. 'A conspiração dos imbecis'. Veja, 26/06/2015. Aqui.
EGGERS, Dave. O Círculo. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia. das Letras, 2014.
GOLDBECK, Jennifer. 'O dilema das fritas enroladas: Por que 'curtidas' em mídias sociais dizem mais do que você pensa'. Trad. Gustavo Rocha. TEDxMidAtlantic, outubro de 2013. Aqui.
HAIDER, Asad. Armadilha da Identidade: raça e classe nos dias de hoje. Trad. Leo Liberato. SP: Veneta, 2019.
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KAFKA, Franz. O Processo. Trad. Lívia Bono. Cotia: Pé da Letra, 2018.
KAISER, Brittany. Manipulados: como a Cambridge Analytica e o Facebook invadiram a privacidade de milhões e botaram a democracia em xeque. Trad. Roberta Clapp e Bruno Fiuza. RJ: Harper Collins, 2020.
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LEITE, Dante Moreira. O amor romântico e outros temas. 3ª ed. SP: Edunesp, 2007.
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O CÍRCULO. Direção: James Ponsoldt. Roteiro: James Ponsoldt/Dave Eggers. Elenco: Emma Watson, Tom Hanks, John Boyega etc. Drama/Suspense/Ficção Científica. EUA, 2017, 110 min.
O SHOW DE TRUMAN. Direção: Peter Weir. Roteiro: Andrew Niccol. Elenco: Jim Carrey, Laura Linney etc. Drama/Comédia. EUA, 1998, 103 min.
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