A grande mentira de Patricia Highsmith
Por Guillermo Altares
Patricia Highsmith, 1980. Foto: Maurice Rougemont.
Patricia Highsmith, 1980. Foto: Maurice Rougemont. |
No centésimo aniversário de seu
nascimento, a obra da escritora estadunidense Patricia Highsmith (Fort
Worth, EEUU, 19 de janeiro de 1921 ― Locarno, Suíça, 4 de fevereiro de
1995)
ganha nova relevância. Se há um tema que une seus melhores livros ― a
série de Tom Ripley, O tremor da suspeita, alguns de seus contos ― é
a ideia da mentira como forma de vida. Na era das notícias falsas e dos fatos
alternativos de Donald Trump, a possibilidade de uma vida inteira ser
construída sobre uma mentira e vivida assim, tranquilamente, é especialmente
poderosa. Nesse sentido, Highsmith antecipou o tema central de romances que
tiveram enorme repercussão nos últimos anos, como O adversário, de
Emmanuel Carrère, ou O impostor, de Javier Cercas.
O outro argumento sobre o qual a
literatura de Highsmith, uma texana que vive na Suíça, que amava os gatos (e os
caracóis que ela criava como animais de estimação) gira em torno das pessoas, é
que o crime está escondido no coração da vida cotidiana: qualquer um pode ser um
assassino ou uma vítima. Suas histórias não falam sobre policiais e ladrões,
nem seus personagens pertencem ao mundinho dos suspeitos comuns: seus
protagonistas são quase sempre seres normais envolvidos num torvelinho
criminoso. Ou, como no caso de Ripley, trata sobre criminosos que conseguem
construir uma fachada digna de respeitabilidade. Pacto sinistro, que
Alfred Hitchcock levou ao cinema em 1951, reúne esses dois temas: duas pessoas
aparentemente normais (uma delas é um psicopata, mas ele o esconde muito bem)
se cruzam em uma viagem qualquer e o que começa quase como um o jogo termina numa
tragédia.
“Presentinho de gato”, um de
seus grandes contos, que faz parte do livro A casa das sombras, começa
com uma família que se diverte tranquilamente com um jogo de tabuleiro quando o
felino da família aparece com dois dedos humanos na boca. Esse conto também
pode servir para resumir sua obra: a morte, o crime, sempre estão por aí. “Resgate
de um cão”, sobre um casal que enfrenta o sequestro de seu animal de
estimação; “Os fugitivos”, ambientada em Veneza, sobre um pai obcecado
pela morte de sua filha, por quem culpa o genro; ou Elsie's Lebenslust,
sobre uma modelo no Greenwich Village de Nova York com um assassinato
insuspeito, são livros que refletem aquele mundo um tanto psicopático e sempre
perturbador que Highsmith soube construir.
Graham Greene sintetiza este
universo literário imprevisível, em que os personagens sempre acabam em apuros
sinistros assim: “Nada está seguro do outro lado da fronteira. Não estamos mais
no mundo que pensávamos conhecer, mas em outro que, de forma aterrorizante,
parece mais real do que a casa ao lado. Os atos são repentinos e espontâneos e
os motivos às vezes tão inexplicáveis que só podemos considerá-los válidos”.
Greene e Highsmith compartilhavam um grande afeto por ambientar seus romances
em cenários ao redor do mundo, com personagens que visitavam a filial da
American Express em busca de mensagens ou dinheiro, envolvidos em assuntos
obscuros e encontrando outros personagens como eles neste estranho terra de
ninguém na qual transcorre sua vida.
Em O tremor da suspeita
sujeita o leitor a uma inquietação constante sem que, pelo menos nas primeiras
páginas, nada de especial aconteça. A vida de três expatriados se cruza na
cidade tunisiana de Hammamet, descrita com uma precisão obsessiva, até que,
como de costume, as coisas começam a se complicar. Seus protagonistas são
arrastados por problemas aparentemente insignificantes que acabam sendo letais.
Greene chamou-o de “romance mais bem conseguido”. “E se me perguntassem do que
se trata, eu responderia: é sobre a apreensão”, escreveu.
Nenhum personagem se identifica
tão profundamente com a literatura de Highsmith quanto Tom Ripley, o mentiroso,
assassino, vigarista, que vive tranquilamente num bairro burguês dos arredores
de Paris, sentado sobre uma montanha de mentiras e crimes. Desde o primeiro
romance, publicado em 1955, O talentoso Ripley (levado duas vezes ao cinema) ao
quinto e último, Ripley debaixo d’água, de 1991, Highsmith constrói um
personagem que deveria ser odioso, mas que é impossível não achar atraente. “Existem
muitos tipos de livros de suspense que não dependem de heróis psicopatas como os
meus”, escreveu em seu livro Plotting and Writing Suspense Fiction, um
compêndio de conselhos literários. “Os escritores que desejam escrever livros
semelhantes ao meu têm um problema extra: como tornar o herói simpático, ou
pelo menos razoavelmente agradável.” No caso de Ripley, estamos falando de um
assassino tão implacável quanto irresistível.
A pessoa por trás dessa fascinante
literatura do mal era, falando grosso modo, bastante complexa. Maruja Torres a
entrevistou para o jornal El País em 1995 e relata que a conversa
começou da seguinte forma às 10h. “Ela perguntou: ‘Você bebe pela manhã?’ Eu
olhei para o relógio e então olhei para ela. ‘A partir de agora’. E funcionou”.
Sua biógrafa Joan Schenkar começa assim seu detalhado percurso pela vida da
escritora (quase 800 páginas): “Ela não era simpática. Não era educada. E
ninguém que a conhecesse bem diria que ela era uma mulher generosa”.
Seus diários completos, dos quais
já se sabia alguma coisa em 2019 e que serão publicados este ano em inglês, são
devastadores: neles aparece como antissemita, racista e homofóbica, apesar de ser
lésbica e, além disso, quebrou um tabu muito importante com o romance Carol,
de 1952, no qual o filme de mesmo título se baseou: relatar uma relação
homossexual entre duas mulheres que não termina em tragédia. Mas, “ela odiava
judeus e negros; era, também, uma lésbica que odiava mulheres”, destaca seu
biógrafo Andrew Wilson ao The New York Times sobre os diários da
escritora.
No entanto, no centenário do seu
nascimento, os seus livros continuam sendo editados, lidos, adaptados ao
cinema. Sua obra mantém intacta a poderosa atração que exerce, a sensação de
que, por meio dela, olhamos para o abismo do qual todos tentamos fugir.
Schenkar lembra no final de sua biografia uma frase que Patricia Highsmith
escreveu em 1º de janeiro de 1947 como “Brinde de ano novo”: “Eu brindei a
todos os demônios, pelas luxúrias, paixões, ganâncias, invejas, amores, ódios, desejos
estranhos, inimigos reais e irreais, por causa do exército de memórias contra
as quais luto: que não me deem descanso”. E acrescenta: “Nunca lhe deram”. E
graças a isso temos uma das obras mais brutais, retumbantes e perturbadoras da
literatura do século XX.
Ligações a esta post:
* Este texto é a tradução de “La gran mentira de Patricia Highsmith”, publicado aqui, no jornal El País.
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