A cena do crime

Por Patricia Highsmith


Positano. Foto: Umberto D'Aniello


 
Em meu primeiro livro sobre Tom Ripley, este é um homem de 25 anos, inquieto e desempregado em Nova York, morando temporariamente no apartamento de um amigo. Havia ficado órfão numa idade jovem e foi criado em Boston por uma tia bastante mesquinha. Tem um certo talento para a matemática e a mímica, e essas duas habilidades permitem que ele continue, por carta e por telefone, um pequeno jogo de intimidação aos contribuintes estadunidenses: ele pede um novo pagamento a uma repartição da Receita Federal cuja filial, diz, se encontra num certo endereço: o do amigo em cuja casa ele mora, e Ripley recolhe as cartas quando elas chegam, embora não haja nada que ele possa fazer com os cheques recebidos, exceto rir com estranha satisfação.
 
Quando Ripley percebe uma noite que está sendo seguido nas ruas de Manhattan por um homem de meia-idade, seu primeiro pensamento é que o homem é, ou poderia ser, um policial enviado para prendê-lo por seu fraudulento jogo de impostos. O seguidor é o pai de um conhecido de Ripley de quem ele, inicialmente, acha difícil se lembrar: Dickie Greenleaf, que agora mora na Europa, diz. Herbert Greenleaf convida Tom para jantar no dia seguinte, e no jantar Tom conhece a mãe de Dickie e tem um vislumbre das mais refinadas coisas da vida: móveis finos, serviço de prata à mesa, ordem e boas maneiras. Essas coisas ― Tom percebe, e não pela primeira vez ― constituem suas aspirações. Além disso, os Greenleaf se oferecem para pagar uma viagem de ida e volta à Itália. Tom concorda em ir.
 
É a primeira vez que viaja para a Europa. Ele chega à pequena cidade onde vive Dickie Greenleaf e vai visitá-lo. Quanto mais tempo fica com Dickie, mais inveja o modesto mas regular salário, pago a ele por um grupo de empresas nos Estados Unidos; inveja sua independência e o que para Tom parece sua educação nos costumes europeus. Mas quando Dickie o surpreende experimentando um de seus ternos, fica muito irritado e a ponto de pedir que ele saia de casa. No entanto, eles vão juntos para San Remo, e Tom mata Dickie quando estão sozinhos em uma lancha a alguma distância da praia. Tom mergulha o corpo na água com o auxílio de algumas pedras e se desfaz da lancha da mesma forma. No dia seguinte, retorna para a casa de Dickie, onde começa a inventar histórias sobre desaparecimento do proprietário.
 
Tom se interroga sobre o assassinato de Dickie, mas nunca se vê acusado disso. É o único assassinato do qual Tom se arrepende profundamente e se envergonha, porque sabe que o realizou por egoísmo, ganância, inveja, cólera. Por um certo tempo assume a identidade de Dickie, pega seu passaporte e o utiliza, redige um testamento em seu favor e o assina com o nome de Dickie. O pai, Herbert Greenleaf, acredita em tudo. Tom Ripley está em seu caminho, independente e determinado a ascender, a melhorar a sua posição, a seu ver.
 
Lembro-me do lugar onde Ripley nasceu, no sentido de ser uma imagem menor em minha memória. Em Positano, na minha primeira viagem aí, em 1951, no final do verão ou início do outono. Eu estava num hotel com um amigo e nosso quarto ou quartos tinham um terraço com vista para o mar e a praia. A costa forma uma curva acolhedora com alguns barcos de pesca atracados ou ancorados. No entanto, a praia está cheia de seixos e é desagradável caminhar sobre ela. Uma manhã, por volta das seis, acordei e saí para o terraço. Tudo estava sereno e calmo. Os penhascos se erguiam bem atrás de mim, à grande altura, e estavam fora do alcance total da minha vista no momento, mas eram visíveis à direita e à esquerda. Não havia uma alma por perto, nada se movia, exceto uma ou duas gaivotas; então notei que um jovem solitário, de short e sandálias, com uma toalha jogada no ombro, caminhava da direita para a esquerda na praia. Ele estava olhando para baixo ― quem não iria, por causa das pedras e seixos. Eu só podia ver que seu cabelo era liso e escuro. Ele tinha um ar taciturno, talvez preocupado.
 
E por que ele estava sozinho? Ele não parecia o tipo atlético que tomaria um banho frio sozinho, tão cedo. Ele tinha brigado com alguém? O que estava fervendo em sua mente? Eu nunca mais o vi. Eu nem escrevi nada sobre ele no meu cahier. O que eu poderia ter dito? Sua aparência era a de mil outros turistas estadunidenses na Europa naquele verão.
 
Uma figura solitária
 
Meses depois, a cena da praia voltou à minha mente. Nesse ínterim, havia escrito alguns contos e alguns artigos, é claro. Eu estava me familiarizando cada vez mais com a Europa e com o modo de vida das pessoas na França, Alemanha e Itália. Era minha segunda viagem ao continente, duraria dois anos e três meses, e incluía Trieste e Munique. Começava a notar não tanto a atração de Europa, mas a possibilidade de uma afinidade com ela, tão profunda e importante que talvez eu não queria ou precisava discutir sobre com meus amigos ou familiares. Tive a ideia de um jovem estadunidense solitário enviado à Europa para, se possível, trazer outro estadunidense para casa. Devo ter percebido então que a ideia se parecia com Os embaixadores de Henry James. No entanto, o meu seria mais diferente do tema de James.
 
E então, quando pensava no primeiro livro sobre Ripley, quando estava escrevendo as primeiras páginas, não tenho certeza de que me veio a imagem da praia de Positano com a figura solitária. A imagem não estava no papel. Nunca a usei numa cena em Positano (dei outro nome à cidade). Era algo em minha mente como uma fotografia desbotada mas indelével, quase esquecida, até que anos depois os jornalistas me perguntaram: “De onde você tirou essa ideia para o Ripley?”. E quando me esforçava para responder, para lembrar exatamente onde, a figura solitária voltou para mim, e eu descrevi sua aparência como eu a tinha visto de uma distância de duzentos ou mais metros. “Você conheceu alguma vez aquele homem?”, seria a próxima pergunta. Não, não tenho certeza de que o tenha visto nunca novamente em um restaurante ou bar Positano. Fiquei em Positano mais alguns dias naquela primeira viagem, mas não me ocorreu procurar o estadunidense que vira naquela manhã. Teria sido bom vê-lo? Detalhes mais precisos poderiam até ter bagunçado tudo. Em todo caso, quando tive a oportunidade de rever aquele jovem, isto é, quando estava no sul da Itália, a ideia do primeiro livro sobre Ripley não estava em minha mente.
 
A praia de Positano
 
Posso imaginar duas razões para que os criminosos voltem à cena do seu crime: para ver se deixaram alguma evidência incriminatória, ou para reviver a emoção ou o prazer que a realização do ato lhes proporcionou ― talvez. Um terceiro motivo, suponho crível em alguns casos, é o desejo de ser reconhecido, acusado e preso. Os anais do crime estão repletos de exemplos de retornos, e os assassinos frequentemente admitem um desejo de retornar à cena e vagar por ela simplesmente para serem parados e receberem atenção.
 
O trecho da praia de Positano, que não mudou muito, exceto que agora pode acomodar alguns barcos e outras pessoas, não exerce um fascínio particular para mim. Ripley não nasceu lá realmente, e foi necessário outro elemento para dar início à vida: a imaginação, que surgiu muitos meses depois.

 
* Este texto é a tradução livre de “Scene of the crime”, texto publicado a 22 de dezembro de 1989 na revista Granta.
 

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