Vou-me embora para Porto Pim
Por Tiago D. Oliveira
Lembro-me do primeiro contato com os versos de Fernando Moreira Salles. O livro era o Ser longe (2003), havia um espaço desmedido que não consegui inteiramente deter, ficou um tronco adentrando o quarto, empurrando a janela. Curioso é que quando acordei nesta manhã a mesma imagem desenhada ganhou carne e me levou novamente ao chamado de um verso que cavou em mim uma “Memória”, também título daquele poema, lembrar / é ser longe. Abri a janela mais e mais a cada página passada e deixei-me ir.
Carrego em minhas mãos o Diário de Porto
Pim e outros poemas editado em 2020 pela Iluminuras com a sensibilidade de
quem acompanha o sol em seu deitar depois de mais um dia cheio de trabalho. A
delicadeza da capa, feita pelo Eder Cardoso, dialoga perfeitamente com a
atmosfera dos poemas diante de um desencanto com o mundo que caminha em seu
destino para maturar o próprio caminhar. É como se o poeta entendesse que os versos são a lâmina abrindo a mata
para o movimento do corpo em busca da fluidez das correntes do mar. Enquanto
abro as janelas recebo a brisa de algum lugar que acolhe em silêncio.
O livro é
dividido em três partes que se completam, pois os poemas seguem a linearidade
de quem encontrou há tempos o seu lugar, o seu traço, e assim reafirma e
escreve mais capítulos de uma história com a palavra que podemos simplesmente chamar
de vida. E assim encontramos poemas de Diário de Porto Pim, inéditos, A chave
do mar (2010), Habite-se (2005) e Ser longe (2003), o que desenha neste livro
uma antologia muito bem marcada pela ideia que permeia todo o livro, o Diário.
Pois há uma direção muito nítida de narração, uma voz que segue, um “Navegante”
que sonha com Porto Pim, um ideal de tempo e espaço que norteia os seus
pensamentos e vontades. Mas há nesse mesmo sopro liberto uma sólida consciência
que desencanta o ar, mas não os ventos, mas sei / nunca iremos / a Porto Pim.
Pensar em Porto Pim é ir muito mais além
do que a baía de Porto Pim, nos Açores, Portugal. Lembro agora que a Pasárgada
de Manuel Bandeira também existiu, o menino de 16 anos tinha ouvido sobre a
primeira capital do Império Persa e guardou para sempre esse nome; Pasárgada
ressurgiu na vida adulta do poeta, nas idealizações. Nos versos de Bandeira
vemos o desejo de ir para Pasárgada, Vou-me embora pra Pasárgada / Lá sou amigo
do rei, há o ideal maturado em forma de poema com a maestria que só os grandes
alcançam. Nos versos de Salles há o desejo de Porto Pim, mais há também outras
constatações que já conseguem modular os passos, “Simples assim”, hoje sei / nem caminhos / nem verdades / só
poemas / como preces.
O poeta refina a sua percepção diante do mundo e reage
com versos em oração que seguem em direção, ainda sob uma névoa cinzenta, a uma
vida fácil ao toque das mãos, como podemos ler em seu poema “Peregrino”, Caminho
/ meu passo pouco / nas calçadas quebradas / de meu dia. Percebe-se que ao
mesmo tempo em que o caminho serve de transporte para o seu desencanto, cresce
um olhar minimalista e mais simples para a vida, Caminho / por porque sei / que a vida está no passo
/ até mesmo aquele. Pouco a pouco a ideia de movimento vai ficando cada vez
mais forte e a percepção do mundo lá fora faz com que haja maior compreensão do
próprio desejo de Pasárgada ou Porto Pim, Caminho / porque em mim / me perco.
E, diante de um mundo que não cessa, o poeta subscreve nas entrelinhas da semântica
dos dias, Caminho / dia afora / sonho adentro / porque é preciso. É preciso
seguir procurando, tocando, insistindo, ouvindo, o vento / não diz aonde vai / se sabe de Porto
Pim / e de minha espera, como pode ser lido em “Cartografia”, ainda a sua
espera pelo momento em que chegará a Porto Pim. Mas, antes do fim, há o caminho e
nesse ponto o poeta afirma o seguir como forma de se encontrar, porque sei / que me perco / se não partir. E
dessa forma constrói uma sequência de poemas que apresentam um olhar maturado
dentro de uma atitude contida que ganha movimento ao passo em que segue na
busca.
O desejo de ir é a todo tempo invadido
pelas reflexões em pesos distintos que somam em um olhar refratário pedaços, quero ir / aonde o tempo me queira bem, como
pode ser percebido no poema “Diário de bordo”. A vontade de chegar ao ideal é
também a vontade de transformar o real, lá / onde se saúda / o choro contido / e o
gesto / de um abraço. Porto Pim, a sua busca, é em suma a saída para as
análises digressivas que o eu lírico faz constantemente entre o passado e a possibilidade de um
futuro desejado, quando for / quero ir a Porto Pim / a Pasárgada / onde sou /
amigo de mim.
No poema “Anotações de viagem”
encontramos talvez a melhor imagem do mecanismo interno do funcionamento dessa
viagem, Só me sei / onde não sou. Fica a reverberar o que norteia a viagem,
esse espaço não realizado, ideal, a viagem é o esticar da tentativa de tocá-lo,
vivê-lo. O local que não é, está guardando o motivo/ motivação para o seguir,
para a transformação. Dentro de um caminho tão cheio de livros e direções, a
motivação para o caminhar é impagável quando é renovada, renovadora, Viajo / senhor das velas / do sextante / e das
estrelas / só me falta / querer chegar. Dessa forma o caminho é mais importante
do que o chegar, o que vemos no poema “Travessia”.
Diante de tanto caminhar restam as
memórias de um dia para alimentar ainda o caminho, agora sob outra estética, a
dos meses e anos sobre o chão vital. O “Peregrino” aponta, quem sabe / farei um
dia / do qual queira / me lembrar.
A poesia aqui serve, a partir das
constatações escavadas, como didática para as horas, segue adiante, menino /
qual seja o caminho / sem perder a certeza / de que não temos destino / nem
queremos chegar, percebemos no poema “Ao caminhante”. O seguir é o verso
fundador dessa antologia, é a partir dele que crescem todos os outros versos.
Em poemas que marcam a trajetória de uma
vida comprometida com as pessoas e as palavras, Fernando Moreira Salles cria um
pequeno tratado para a contemporaneidade, em que a principal direção é a
tridimensionalidade criada a partir da memória, da gestão da realidade diária e
do desejo de seguir o caminho. O Diário de Porto Pim e outros poemas carrega
quase que uma narrativa sequencial em capítulos que se integram e poemas que se
completam. Depois da leitura terminada e o livro ficar marcado pelos apertos
que lhe dei em suas páginas, começo a me perguntar também sobre o meu Porto
Pim.
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