“Platero e eu”: pedagogia e ternura
Por Rafael Narbona
A primeira edição de Platero e
eu foi publicada em 1914, com 63 capítulos que mostravam uma experiência
muito pessoal da língua espanhola, sem traços de retórica, aspereza ou
exotismo. Nascia uma das grandes obras da literatura mundial e um dos clássicos
mais recentes e comoventes. Três anos depois surgiria uma segunda edição, com
os 138 capítulos definitivos. Cada capítulo de Platero e eu é um pequeno
poema em prosa. O estilo cuidadoso e requintado coexiste com um ritmo narrativo
ágil, fluido e altamente emocional.
Juan Ramón Jiménez (Moguer,
Huelva, 1881-San Juan, Porto Rico, 1958) iniciou sua carreira literária sob a
influência do Modernismo, mas não demorou muito para se tornar independente de
qualquer tendência estética, construindo uma obra dinâmica, mística, autocrítica
e profunda. Ele nunca se sentiu confortável com os postulados da Geração de 98.
Não compartilhava de seu pessimismo ou de sua angústia vital, e os campos de
Castela apenas nele produziam tristeza e desolação. A sua pena sempre preferiu
exaltar a paisagem andaluza, com os seus prados, vales e pântanos.
Claro, há um parentesco
indiscutível com Antonio Machado, acentuado pela admiração mútua por Bécquer e
pelo Simbolismo. Os dois procuram a palavra exata e nua, que permita dialogar
com a alma, o mundo e Deus, as três chaves da razão para encontrar um sentido
transcendente à existência. Ambos compartilham o desejo de uma Espanha moderna,
plural e progressista, mas que preserva os aspectos mais valiosos de nossa
tradição: o humanismo de Cervantes, o Erasmismo, o sopro místico de Santa
Teresa de Jesús e San Juan de la Cruz, o romantismo liberal de Espronceda. A
visão do ensino de Giner de los Ríos e a vocação educativa das Missões
Pedagógicas sintetizam esse desejo, que só se concretizará por meio da educação
das classes populares. Só então surgirá uma nova consciência nacional baseada
nas virtudes republicanas: liberdade, igualdade, fraternidade.
Às vezes Juan Ramón Jiménez é
colocado na geração de 1914, mas a arte pura e desumanizada está longe de sua
sensibilidade. O mesmo poderia ser dito de Gabriel Miró, que também costuma ser
enquadrado no Novecentismo. Gabriel Miró e Juan Ramón Jiménez não entendem a
arte como um jogo e pirueta, mas como um compromisso moral com os pobres, marginais
e excluídos. Ambos são cristãos sinceros, afirmando pureza evangélica, mas não
demonstrando apreço pelo clero. Nesse sentido, eles seguem os passos dos “romances
espirituais” de Pérez Galdós, nos quais personagens como Nazarín ou Benina agem
de acordo com os ensinamentos do cristianismo primitivo. Em Misericórdia
(1897), Galdós aborda o “pequeno e muito pobre proletariado”, olhando de perto
os mais sombrios quadros de pobreza e injustiça. Benina, a donzela que ampara
com sua esmola a patroa orgulhosa e ingrata, é uma versão atípica de Cristo,
que nunca poupa o perdão e a ternura.
O mesmo se poderia dizer de
Platero, onde “a tristeza e a alegria são gêmeas, como as orelhas” do “pequeno
burro que tão bem entendia as crianças”. No “mar de luta” de uma Andaluzia
oprimida por caciques e latifundiários, as crianças são “uma ilha de graça,
frescura e alegria”. Juan Ramón sofre ao presenciar a miséria que aflige os
menores descalços, desnutridos, explorados como mão de obra barata e sem
escolaridade. Em sua “Advertência aos homens que leem este livro para crianças”,
lembra uma frase de Novalis: “Onde há crianças, existe uma idade de ouro.” É
difícil não lembrar a advertência de Jesus no Evangelho de São Mateus:
“Em verdade vos digo que se não vos converterdes e vos tornardes como crianças,
não entrareis no reino dos céus”. No Evangelho de São Marcos, anterior
no tempo, podemos ler: “...aquele que se humilha como esta criança será o maior
no reino dos céus”. Seria um erro pensar que Cristo incita à servidão e à
obediência. Do meu ponto de vista, o objetivo é dignificar os humilhados e
esquecidos. Ao escolher Platero como protagonista, Juan Ramón Jiménez manifesta
seu amor pelos humildes e pelos pequenos. Poucos animais foram tão
ridicularizados quanto o burro, apesar de sua bondade, paciência e sabedoria,
verdadeiro “Marco Aurélio dos prados”.
O hispanista Michael P. Predmore
apontou as múltiplas analogias entre Cristo e o casal composto pelo poeta com a
“barba nazarena” e a “brandura gris” de Platero. Na verdade, a obra poderia ser
lida como um novo evangelho, anunciando a loucura de amar os mais vulneráveis
e marginalizados: crianças pobres, doentes de tuberculose, idosos sem filhos,
cães sarnentos, éguas velhas. Não é estranho que as crianças de Moguer gritem:
“O louco! O louco! O louco!”, cada vez que o poeta e o burro cruzam suas ruas.
As crianças imitam a maldade dos adultos e não apreciam o fato de Platero ser “terno
e fofinho como um menino, uma menina...”. O poeta fica chocado ao pensar o que
teria acontecido com Platero em outras mãos, pois existem homens que “dão
arsênico aos burros e colocam alfinetes nas orelhas para que não caiam”.
Felizmente, Platero “tem um estábulo quente e macio como um berço” e quando
morrer será enterrado “aos pés do grande pinheiro redondo no horto de Piña”,
com “o infinito céu azul constante de Moguer”, guardando seu sonho. Platero é
como a “criança estúpida” da rua de San José: “tudo para a mãe, nada para os
outros”, mas nessa fragilidade reside a graça de “ser laranja em flor, ser puro
vento, ser sol alto”.
O cristianismo de Juan Ramón é
cheio do espírito franciscano, com aquela paixão pela natureza que beira o
panteísmo. Ao se aproximarem de um jardim chamado El Vergel, acompanhado de
Platero, um guarda os impede de passar, pois é proibido entrar no recinto com
animais. O poeta, abatido, sai, porque se o Platero “não pode entrar por ser
burro, eu, porque sou homem, não quero entrar”. Mais tarde, quando o canário de
algumas crianças aparece morto em sua gaiola, o poeta se pergunta: “Existirá um
paraíso para os pássaros? Haverá um pomar verde contra o céu azul, todo florido
com roseiras douradas, com almas de pássaros brancos, rosados, azuis, amarelos?
A Paixão de Platero só pode
terminar com sua morte, mas “a bela borboleta de três cores” que voa em torno
do quarteirão naquela hora fatídica contém a promessa de ressurreição. O tempo
passa e o poeta se pergunta: “Platero, é verdade que tu não nos vês? Sim, tu me
vês. E acho que ouço, sim, sim, ouço no claro oeste, adoçando todo o vale dos
vinhedos, seu terno zurro lamentoso...”. E quando o poeta visita em abril “a
sepultura de Platero, que está ― como prometido ―
no horto de Piña, ao pé do pinheiro redondo e paternal”, “aparece uma ligeira
borboleta branca”, pairando “como uma alma, de lírio em lírio…”. A borboleta
simboliza o renascimento da vida e os lírios a pureza, o estado de inocência.
Juan Ramón não deixa nada ao acaso. Platero e eu é um exercício estético
rigoroso, com uma intenção claramente espiritual e um cristianismo elementar,
longe de qualquer ortodoxia ou dogmatismo.
Nos últimos cem anos, apenas a Bíblia
e Dom Quixote superam Platero e eu em número de traduções. No ano
do centenário surgiram várias adaptações infantis, aproveitando a efeméride.
Compreendo o nobre propósito de aproximar os clássicos dos mais pequenos, mas
não creio que Juan Ramón Jiménez tivesse gostado da iniciativa. Na verdade, ele
disse: “Nunca escrevi nem escreverei nada para crianças, porque acredito que a
criança pode ler os livros que os homens leem, com certas exceções que todos
podem pensar”. Em outra ocasião, ele destaca: “Eu acreditava e acredito que não
se deve dar às crianças tolices para interessá-las e excitá-las, mas histórias
e transcrições de seres reais e coisas tratadas com sentimento profundo,
simples e claro. E requintado. Platero não é, pois, como muito se disse, um
livro escrito mas escolhido para crianças”.
Platero e eu “vive no
eterno” e tem em suas mãos, “o escarlate como o coração de Deus perene, o sol
de cada amanhecer”.
* Este texto é a tradução de “Platero y yo: pedagogía y ternura”, publicado aqui, em El Cultural.
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