Os nomes de Clarice Lispector
Por Antonio Maura
Nos últimos anos, multiplicaram-se
as publicações ― livros, artigos, teses de doutorado ―
sobre a obra de Clarice Lispector. A escritora brasileira tem três biografias,
cada uma delas aprofundando suas origens, sua personagem, a
relação entre seus livros e sua trajetória de vida, e as anedotas contadas
sobre ela por seus amigos, familiares e conhecidos. Os leitores espanhóis
interessados na vida da escritora também podem consultar o livro Ladrona
de rosas, de Laura Freixas, que sintetiza de forma inteligente as três
biografias e faz comentários sensatos sobre sua personalidade, a forma como
abordou sua feminilidade e sua obra.
Quando se trata de obras críticas,
a variedade é tamanha que é difícil classificá-las. Desde os primeiros estudos
existencialistas ou da chamada “escrita feminina”, tradição inaugurada pela
escritora Hélène Cixous, aos do misticismo hebraico, cristão e até zen, das
análises psicanalíticas à literatura comparada, a obra de Clarice Lispector tem
sido suscetível a diferentes leituras. Seus livros ― romances, contos, artigos e
fragmentos ―
foram interpretados segundo as coordenadas filosóficas de Nietzsche ou
Benjamin, e comparados aos de escritores e pensadores como Teresa de Jesús ou
María Zambrano, como defendido por Myriam Jiménez Quenguan em seu livro, ou à
luz do existencialismo sartriano, como explica Carolina Hernández Terrazas em Clarice
Lispector. A náusea literária (inédito no Brasil).
Por que tanta proliferação de
textos, comentários, análises semânticas ou acadêmicas? Qual é o segredo do seu
trabalho? Que mistérios nele se contém? O poeta Carlos Drummond de Andrade
comentou em seu poema dedicado à escritora que:
Clarice
Veio de um mistério, partiu para
outro
Ficamos sem saber a essência do
mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.
Essa foi, em geral, a imagem da
escritora entre seus contemporâneos. Como também foi, segundo Ángel Crespo, o
comentário da escritora Rosa Chacel após sua visita à escritora nos anos 60 do
século passado: “Não é uma mulher”, disse, “é uma pantera”. Seu mistério
felino, sua beleza eslava e sua atração pessoal são lembrados por todos que a
conheceram. Logo se tornou conhecida suas origens judaicas, os pogroms que sua
família sofreu antes de seu nascimento, a paralisia da mãe, a morte prematura
de seus pais e sua infância pobre e sombria na qual ela foi forçada a ser feliz,
embora essa felicidade tenha sido simulada como uma máscara dura.
Aquela infância, aquele passado
remoto que ela não conheceu e do qual tomou conhecimento através das conversas com
as irmãs e o pai, se refletem numa obra que faz do oculto, do segredo e do
silêncio um edifício literário e, possivelmente, um templo. Nesse passado
remoto estava oculto seu nome original, que não era Clarice, mas Haia ou Chaya,
dependendo de como você deseja transcrever os caracteres hebraicos. Chaya, em
iídiche, significa vida, embora também tenha a conotação de animal. E
certamente as reflexões mais profundas e intensas de sua obra são sobre a vida.
Um sopro de vida é o título de sua última e póstuma obra, bem como o
tema sobre o qual os protagonistas de Água viva, de A paixão
segundo G. H., de tantos contos e passagens de sua obra. Também
encontraremos numerosas referências a animais em seus livros: “Às vezes
eletrizo-me ao ver bicho. Estou agora ouvindo o grito ancestral dentro de mim:
parece que não sei quem é mais a criatura, se eu ou o bicho. E confundo-me
toda. Fico ao que parece com medo de encarar instintos abafados que diante do
bicho sou obrigada a assumir.” escreve em Água viva.
Mas, segundo o Levítico,
nem todos os animais são semelhantes, pois é necessário distinguir o puro do
impuro, e os dois tipos de criaturas são descritos com intensa paixão na obra da
escritora brasileira. Os cavalos com sua força selvagem, seu ímpeto, seu
orgulho vital, são encontrados em romances como A cidade sitiada, em seu
conto “A repartição dos pães”, de seu livro Felicidade clandestina, bem
como em muitos outros escritos literários ou jornalísticos. O mesmo se pode
dizer das galinhas, das quais Clarice afirmava conhecer a sua vida interior,
cujas histórias são contadas em várias narrativas e em contos infantis como A
vida íntima de Laura até darem origem a um texto ― ficção ou ensaio ― “O
ovo e a galinha”, acrescentado em seu livro A legião estrangeira.
Curiosamente, ela escolheria este texto para ser lido num Congresso de Bruxaria
em Bogotá, para o qual foi convidada em agosto de 1975. O mesmo poderia ser
dito de coelhos, búfalos e até mesmo seu próprio animal de estimação, o
cachorro Ulisses, que será retratado em seus últimos trabalhos. Talvez o mais
significativo dos animais impuros seja a barata, que assume um papel
perturbador em A paixão segundo G.H. O interior branco, insípido e
nauseante desse inseto será digerido pelo protagonista do romance transgredindo
assim, tanto a tradição cristã quanto a judaica.
No cristianismo, a comunhão é um
sacramento em que se ingere o corpo de Cristo, simbolizado por uma forma de pão
sem fermento, que pela sua cor, densidade e sabor se assemelha à matéria “fofa
e branca” das entranhas da barata, conforme descrito pela narradora e
protagonista do romance, e que é sua forma de entrar no núcleo neutro da vida.
Mas também, como explica a personagem identificada com as iniciais G.H., “Eu
fizera o ato proibido de tocar no que é imundo”, citando a Bíblia que proíbe
comer as criaturas abomináveis que andam sobre quatro patas e são aladas.
Neste romance, que a sua autora considerava o mais importante dos que escreveu,
aborda-se também o sentido da vida, o seu sentido mais profundo, aquele que
remonta à origem das origens, que representa o inseto, por ser anterior ao
humano e, possivelmente, sobreviverá com suas camadas e camadas sólidas, finas
como as de uma cebola, que poderiam ser asas endurecidas, que não servem mais
para voar, mas para encerrá-lo numa armadura dura e impenetrável. As entranhas
da barata são brancas como o sêmen, “no neutro sêmen está inerente o ritual da
vida”, não tem sabor e é nauseabundo, mas integrá-lo ao nosso corpo é um ato de
humildade e de celebração religiosa, que a narradora expressa na última frase
do livro: “A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro.”
A preocupação com o transcendente
une-se na obra de Lispector por uma sensibilidade totalmente feminina: a
maioria das personagens de suas histórias e romances são mulheres, que lidam
com seus maridos e amantes, com as limitações do cotidiano, com seus condição
de donas de casa, mães ou esposas na tentativa de alcançar uma autonomia
pessoal que nem sempre podem alcançar. De certa forma, essa atitude entre
beligerante e submissa pode ser encontrada em algumas histórias do livro Laços
de família e, especificamente, no conto que leva o mesmo título. Por sua
vez, a própria escritora demonstrou essa luta pela independência das mulheres e
pelo seu desenvolvimento intelectual ao se separar do marido e ir para o Rio de
Janeiro com os filhos. No Brasil, no final da década de 1950, quando isso
aconteceu, esse comportamento foi considerado uma insensatez: as mulheres
podiam, de qualquer forma, deixar o marido por outro homem, mas nunca por
motivos profissionais e optavam por morar sozinhas.
A pequena revolução pessoal de
Clarice é acompanhada por sua reivindicação a um tema em seus romances e contos
que é estranho aos padrões literários e coordenadas de seu tempo. Lispector é
contemporânea de Jorge Amado e João Guimarães Rosa, tão diferentes nas
abordagens narrativas como nos estilos, mas ambos epígonos do romance
regionalista com início, meio e fim. Nenhum outro escritor de sua geração se
atreveu a escrever romances ou ficções que não tivessem enredo, ou que fosse
tão insignificante quanto o de uma mulher que come uma barata, ou de um pintor
que tenta capturar o momento em suas pinturas e com a voz dela, como o
protagonista de Água viva contava na primeira pessoa.
Seus romances e contos são feitos
de impressões, sensações, sentimentos que qualquer circunstância da vida
cotidiana pode provocar. A escritora, que viveu em diversas cidades europeias e
em Washington, quando era casada com um diplomata, não nos oferece romances de
viagem, ou melhor ou pior, histórias armadas que poderia ter conhecido como
cidadã do mundo. São situações como as descritas ou histórias aparentemente
inconsequentes: uma mulher que encontra um mendigo que masca chiclete, uma mulher
que aguarda o marido e é apanhada pelo encanto das rosas silvestres, um ovo na
mesa da cozinha, o encontro de duas mulheres num trem. Qualquer um desses temas
serve como elemento principal de uma história, pois simples impressões serviam
para organizar obras como Água viva ou Um sopro de vida.
Seus contos descrevem, dentro de
sua variedade, uma situação vital que muitas vezes pode ficar inacabada, porque
uma sensação é seguida por outra como ondas na imensidão de uma vida humana. No
entanto, seus romances poderiam ser divididos não tematicamente, mas
formalmente, em dois grandes blocos narrativos que também coincidem com suas
aventuras de vida. O primeiro iria de seu primeiro romance, Perto do coração
selvagem, publicado quando ele acabara de se casar, a A mação no escuro,
que seria publicado logo após sua separação. O segundo bloco começaria com A
paixão segundo G.H. e iria se concluir com seu romance póstumo Um sopro
de vida. Essas duas etapas devem-se ao esforço de dar coerência às suas
narrativas, como acontece em seus primeiros romances, ou ao abandono definitivo
de tal pretensão nestes últimos.
Enfim, essa divisão, como costuma
ser o caso das classificações literárias, não é totalmente exata, já que nenhum
dos romances da primeira fase é realmente coerente, já que não é suscetível de
ser lido como uma narrativa habitual. Talvez a que mais se aproxime dessa
concepção narrativa do século XIX seja A maçã no escuro, mas seu enredo
é tão frágil ― um homem que, aparentemente, assassinou sua esposa, deve
assumir sua culpa e é, pouco antes de concluir a narrativa, detido pela
polícia, ainda que acabe por se descobrir que tal crime nunca ocorreu ―
não justifica as mais de trezentas páginas do texto. Portanto, não são romances
propriamente ditos, mas narrativas que, já em seu segundo estágio, se
desvinculam de qualquer tratamento usual de um romance com começo e fim. G.H. conta
a experiência de comer as entranhas de uma barata, mas o que ela realmente quer
descrever é sua desorganização psicológica e mental, sua queda no neutro do
ser, sua estranha forma de religiosidade, de adoração a uma divindade
desconhecida. Nem é propriamente um romance como se convencionou a ser.
No entanto, no romance que foi
publicado pouco antes de sua morte, A hora da estrela, volta novamente a
insistir em criar uma narrativa. A escritora brasileira quer contar a vida de
um emigrante que chega de Alagoas, estado do nordeste brasileiro, à cosmopolita
Rio de Janeiro. Para construir a história de Macabéa, a personagem principal, inventa-se
um autor, Rodrigo S.M., para que a sua verdadeira autora – Clarice Lispector – possa
se desdobrar no seu papel de escritora e personagem. Macabéa tem muito a ver
com Clarice: ambas emigraram para a grande cidade que era o Rio do Nordeste,
ambas chegaram sem meios financeiros e passaram a trabalhar como datilógrafas.
Clarice Lispector rapidamente se tornou conhecida como jornalista, contista e
surpreendeu os críticos com seu primeiro romance. Macabéa continua datilografando
sem outro emprego ou ambição. Mas a personagem do narrador também tem que
lidar, como o romancista, com a escrita e suas dificuldades, seus riscos, suas
estranhas descobertas. No final, as personagens parecem ser reflexos do mesmo
corpo em espelhos opostos. A infinidade de imagens representa mais uma vez a
continuidade de uma vida que, como aconteceu com a história de G.H., nunca
termina e é inútil, insípida, como um vazio impossível de preencher. Em certo
momento Macabéa, em cujo nome ressoa a heroica luta dos judeus palestinos
contra os selêucidas registrada na Bíblia, tenta explicar ao namorado que ela
não sabe quem ela é, ao que ele lhe pergunta:
― Mas você sabe que se chama Macabéa,
pelo menos isso?
― É verdade. Mas não sei o que
está dentro do meu nome. Só sei que eu nunca fui importante...
Novamente encontramos com o nome.
No caso desta personagem, reflexo da sua autora, sabemos que tem um nome, mas
sem nada dentro, se não for uma mulher que não se conhece: é uma máscara vazia.
Como o nome oculto da escritora brasileira – Haia ou Chaya – o que não se pode
dizer, pois se transformou em outro que será aquele que ela usa para viver e se
integrar ao mundo, pertencer a um grupo, a um país, a uma literatura. Ao longo
da vida, Clarice fantasiou sobre o significado de seu sobrenome Lispector. Ela
dizia que poderia ser do Latim e derivar dos termos lis, lírio, flor de
lis e pector, peito. Só assim faria sentido uma das últimas anotações pouco
antes de morrer:
Sou um objeto querido por Deus. E
isso me faz nascerem flores no peito. Ele me criou igual ao que escrevi agora:
'sou um objeto querido por Deus' e ele gostou de me ter criado como eu gostei
de ter criado a frase. E quanto mais espírito tiver o objeto humano mais Deus
se satisfaz.
Lírios brancos encostados à nudez do peito.
Lírios que eu ofereço e ao que está doendo em você. Pois nós somos seres e
carentes.
Possivelmente, naquele momento ela
teria assumido sua vida com todos os seus segredos de menina judia, com todo o
peso das perseguições, da sabedoria oculta que só pode ser encontrada no
coração humano. Um coração que também é templo, como ensinam os hassidistas,
que viveram nas terras onde nasceu a mais misteriosa escritora das letras
brasileiras e a autora de uma das obras mais abertas de toda a sua literatura.
* Este texto é a tradução de “Los
nombres de Clarice Lispector”, publicado na edição de dezembro de 2013 na
revista Quimera.
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