Os melhores de 2020: prosa




Essa gente, de Chico Buarque.
Este romance é produto de um embate de narrativas que tem produzido, para bem e para mal, certas fissuras fundamentais nos modelos ainda em vigência de nossa plastificada identidade. E, se por um lado o leitor encontra aí o duelo de classes, por outro, a expressão é validada por outro sentido: é um designativo que permite destacar entre as gentes, a gente do Brasil. É por isso, um daqueles livros que constitui o extenso caleidoscópio proposto pela literatura acerca do tema povo brasileiro e sua condição, entre os quais, figuram nas mais recentes criações obras como Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, Outros cantos, de Maria Valéria Rezende, para citar alguns dos contemporâneos. Mas, poderíamos ampliar essa linha com obras mais antigas como Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, O cortiço, de Aluísio Azevedo ou Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Leia mais aqui.
 
Hoje estarás comigo no paraíso, de Bruno Vieira Amaral.
Este livro de Bruno Vieira Amaral se integra ao rol dos romances do porvir. O designativo pode servir para compreender melhor as obras que integram em seu interior a narrativa possível. O que o narrador desse romance busca é acessar a verdade do acontecido sem ter ao alcance a íntegra dos elementos factuais necessários para tanto, outro dos impasses, visto que nenhum passado se nos apresenta em sua inteireza e sim como resquício, escombro, fragmento; toda história é feita, portanto, do trabalho de preenchimento de lacunas a partir de uma perspectiva assumida por quem conta. Por sua vez, essa tentativa encontra respaldo no princípio universal da ficção: o narrado não como o acontecido e sim enquanto como poderia acontecer. Esse tratamento, embora nada tenha de novo, sempre pode oferecer ao escritor uma variedade de maneiras de execução da história, sendo recorrente o uso do suporte metaficcional, isto é, o princípio pelo qual a narrativa esclarece seus próprios rumos e impasses de feitio. Leia mais aqui.
 
O sermão sobre a queda de Roma, de Jérôme Ferrari.
O exercício ficcional do escrito francês aqui é sempre guiado pelo fim e princípio de um mundo; a certa altura, o narrador reflete o que podemos tomar como síntese da narração: “Talvez cada mundo não seja mais que o reflexo deformado de todos os outros, um espelho longínquo em que a sujeira parece brilhar como diamante, talvez não haja mais que um único mundo, do qual é impossível fugir, pois as linhas de seus caminhos ilusórios acabam por se cruzar”. O retorno e a permanência de Matthieu e Libero, refazendo um percurso como o de alguns antepassados (Marcel é um deles), aponta exatamente para essa conclusão. Se o mundo pode se fazer pelo cerzido invisível do destino, a queda, o fatal fim de tudo, é, por vezes, produto da própria ação humana, porque “o demiurgo não é um Deus criador. Não sabe que está construindo um mundo, trabalha como homem que é, pedra após pedra, e logo sua criação escapa, ultrapassa-o e, se ele não a destrói, será ela a destruí-lo”. Leia mais aqui.

― O que ela sussurra, de Noemi Jaffe.
Este é, indubitavelmente, um dos melhores romances da nossa literatura entre os publicados neste ano improvável. Noemi Jaffe aposta todo um empenho para invenção permitida pelo tratamento criativo da prosa para imaginar a vida de uma personagem dessas que ocupam um lugar à parte na cena literária: Nadejda Mandelstam. Ela foi casada com o poeta de mesmo sobrenome, Óssip. O poeta, sabe-se, morreu prisioneiro num gulag na Sibéria; mas, é dela a missão de guardar os poemas deixados pelo companheiro. E, para que não caia na mesma desgraça e permita a eternização da obra dele, Nadejda converte-se em espécie de biblioteca viva, gravando a memória seus poemas. É evidente que trabalhos como estes da escritora brasileira se constituem pela imensa dedicação à pesquisa histórica. Acontece que, ante figuras cujas notícias quase não existem ou rareiam, é o tratamento fabular o grande mérito do trabalho. Aí está. O romance foi publicado pela Companhia das Letras.
 
As nuvens, de Juan José Saer.
O que a comunidade provisória comandada pelo doutor Real, com suas próprias leis de funcionamento, como observa, finda por testemunhar é a realização da tese desenvolvida pelo doutor Weiss com sua casa de saúde: a integração entre loucos e sãos. Desmantela-se, assim, os princípios sociais correntes, que colocam homens em oposição por sua natureza. A viagem alcança um desfecho feliz, uma vez que cada um dos seus protagonistas consegue reaver, mesmo que parcialmente, uma autenticidade de suas formas de ser e estar no mundo, desvinculando-se das determinações impostas e autoimpostas pelas normas sociais. Por sua vez, a subversão introduzida por esse romance de Juan José Saer encontra dimensões muito fora do contexto histórico da narrativa e do romance; falamos da dimensão universal alcançada apenas pelas grandes obras da literatura. Em As nuvens, um efeito irônico de elevada potência: apenas numa sociedade de loucos é possível saber até que ponto a normalidade é uma regra moral, ou ainda, apenas assim é possível saber quão hipócrita é essa sociedade que tomamos por verdadeira e única. Leia mais aqui.
 
Meu pequeno país, de Gaël Faye.
Os impasses assumidos ao longo da narrativa de Meu pequeno país conduzem o narrador sempre para algumas fatalidades inevitáveis; o próprio romance se assume enquanto produto de uma força decisiva. A descoberta de que o mal nos habita é talvez a mais aterradora, porque destitui por inteiro a utopia da plenitude. Essa descoberta, entretanto, não é definitiva. Por mais que a vivenciemos, ela tornará sempre a se repetir: vejamos o destino da mãe de Gabriel que julgava nunca mais regressar a Ruanda; ou a do pai que julgava ser eterna a aventura de viver em Burundi; e as pequenas e muitas desilusões desse narrador. O fim da utopia da plenitude é o fim da utopia de felicidade. Leia mais aqui.

― Marrom e amarelo, de Paulo Scott.
O autor guarda algumas publicações das mais interessantes da última década na literatura brasileira; em prosa e em poesia. Este é o seu romance mais recente, editado meados de 2019 e possivelmente um dos mais comentados ― e positivamente, o que melhor ― durante todo este ano; nele, Scott recupera a figuração do duplo, através dos irmãos Federico e Lourenço, para evidenciar outra vez os embates entre dois que conjugam e se distendem e aproveitar a situação para explorar todo um complexo contexto social de um Brasil ainda por se compreender. Basta dizer que a segunda personagem é constituída com o estigma da discriminação racial e a primeira sob um contexto de violência recorrente nas periferias ― duas faces, percebam, que diz muito de nós. Agora, o que é valioso neste romance, e na própria literatura de Scott, é uma escrita que ao tratar das questões que estão no interior ou superfície de nossa sociedade se esmera na sutileza de deixá-las à exploração do leitor; sugerir é sempre mais valioso que dizer, bem sabemos, uma vez que abre todo um espaço para a interrogação, para o suposto, para limites que num primeiro momento nem mesmo a própria escrita consegue tocar. 
 
A cidade do vento, de Grazia Deledda.
Mas, o lugar alcançado por Grazia Deledda com a investigação sobre a variabilidade do curso dos destinos, qual o curso dos ventos, é demonstrar como a história é feita de uma contínua libertação da história. Isto é, o passado irresoluto pode afetar o presente e o futuro visível. É esse impasse, portanto, mais que o amor, somado à condição da mulher no casamento, as duas grandes questões predominantes no romance agora lido. A continuidade da nova vida da narradora só parece possível depois de revisitar o acontecimento que teria lhe forjado outra possibilidade de vida. Essa compreensão parece dialogar com o entendimento de que, mesmo parecendo sós, estamos profundamente ligados com a natureza, o tempo e a história; somos sujeitos feitos de ancestralidade. Resulta de uma grandeza a maneira como a romancista faz de uma pequena situação o drama que alimenta e expande a narrativa. Leia mais aqui.
 
De amor e trevas, de Amós Oz.
O que é brilhante neste romance é a maneira como o narrador não se deixa conduzir pela força dramática das situações, como o caso daquelas biografias que carregam as cores nas dores de sua personagem. Amós Oz não tem pretensões heroicas, tampouco hagiográficas. Seja a morte da mãe e a despedida do pai, quando deixa a casa paterna para ir viver num kibutz (esta, um dos episódios que nos arrasta para as lágrimas porque de uma imagem vibrante) tudo é descrito sem dramatismos baratos. Com isso, nunca prevalece sobre todos sua imagem, mas ele se faz personagem entre as demais personagens. Se havia, então, quaisquer interesses de constituir uma imagem oposta ao original (outra vez a implicância fato-ficção) conseguiu. A imagem que prevalece é a de um escritor que busca se reconhecer, individual e coletivamente, sem que, para isso, precise se mostrar acima de ou melhor que. Isso é muito raro. Leia mais aqui.
 
Carta à rainha louca, de Maria Valéria Rezende.
Este é o registro sobre a profunda solidão das gentes que, entre todos, fazem um caminho contrário ao curso comum e modificam ou contribuem para a modificação do mundo. O trabalho de documentação desses esforços, aliás, é uma das marcas que identificam este romance como pertencente a Maria Valéria Rezende, autora de uma obra que tem se preocupado não apenas em construir uma literatura interessada em tocar questões das mais caras em seu tempo mas dizer que o traço essencial da existência se faz pelos enfrentamentos. O retorno aos tempos de nossa formação com este romance, esclarecem um tanto disso porque se preocupa de dizer quão piores um dia fomos mas nunca deixou de existir quem se colocasse em posição de luta contra a ordem. Numa ocasião quando tanto carecemos de futuro ou quando depositamos a mudança ora no tempo das impossibilidades ora no tempo das incertezas ora ainda na desesperança, a leitura de trabalhos que nos refiguram a história se reveste de um sentido precioso. Leia mais aqui.
 
Desonra, de J. M. Coetzee.
Este romance reafirma à sua maneira o que toda a literatura prova com sua existência mas que agora se quer por fina força ideológica de tempo desfazer. Demonstra-o pela impossibilidade de negar o diálogo entre o ético e estético porque fundamental para alcançar parte significativa das múltiplas camadas do tecido romanesco, mesmo quando essas relações se demonstram indiscretas. Não é gratuita a vivência pelo erudito clássico deste David Lurie, nem é apenas um distintivo da persona, nem dos impasses do trânsito entre tradição e modernidade ou outros pares dicotômicos fáceis de designar; é um elemento que contribui para o funcionamento da narrativa e favorece na inventio que estabelece este romance entre os grandes objetos moldados pela criação literária. Coetzee prova que qualquer história serve para um bom romance, mas seu criador não precisa somente da técnica ou da eleição pelos primeiros tópicos das pautas vigentes seja para concordar ou discordá-los. O romance está numa ponta fora disso porque sua natureza se ampara na inteligência intelectual do criador ― o grande território não pisado pelo protagonista de Desonra e certamente é o maior dos seus fracassos. Leia mais aqui.
 
Vertigem do chão, de Cezar Tridapalli.
Este é um romance que tem um fôlego inventivo inusual na literatura brasileira vigente. Constrói-se ainda repisando uma variedade de simbologias ― do tempo, do corpo, do espaço, da viagem, da cidade, do chão ― cada uma capaz de revelar nuances das mais variadas ou camadas de leitura, ampliando os próprios limites do primeiro tecido textual. Além de explorar com propriedade geografias e contextos, dentro e fora do país, e discutir múltiplos caminhos acerca do tema dominante, sempre com um ceticismo em torno das certezas administradas pelas personagens sobre seus mundos ― certezas que encontram muito de perto as que muitos de nós depositamos sobre o lugar que habitamos. Leia mais aqui.
 
A trégua, de Mario Benedetti.
O diário de Martín Santomé não é feito apenas do contato com o acaso da existência e sua última tentativa de adiamento pelo exercício do amor. A narrativa, ao passo que toca na situação familiar, mostra ainda certo retorno da memória para com o passado pelo reaparecimento de algumas das amizades de rua nos idos tempos de sua juventude. Um contato que não é em nada amistoso e sim continuamente corroído por uma ironia mordaz, por vezes, irreprimível e ferina, uma liberdade alcançável apenas pelo avultamento da sinceridade com aparecimento de certa maturidade. Abre-se então o que é, possivelmente, o tema preponderante em A trégua: o relacionamento humano. É este o cerne do amor com Avellaneda; o mesmo no convívio com a família, com os do ambiente de trabalho, e com essas aparições repentinas de sua infância e juventude, numa ocasião primeiro esperada como a retirada do homem de seu clã e o isolamento em busca da encontrar o fim com a devida serenidade. Leia mais aqui.
 
Ingênuo. Super, de Erlend Loe.
O romance de Erlend Loe, portanto, recorta a vida de um jovem em adultecimento que, tomado por uma dessas crises que assomam a todos, decide, por conta própria instituir uma pequena primavera capaz de oferecer uma compreensão mais coerente sobre seu destino; essa percepção da bondade talvez seja a principal das lições que nos fica. Embora pareça que a vida quase não tenha mais disso, é preciso reparar o que ainda resta e colocar em relevância, sem deixar de compreender, obviamente, que nossa natureza é mediada por uma variedade de forças que não nos fazem inteiramente bons, tampouco melhores ou piores do que já fomos. Se a existência é um emaranhado muito complexo, cabe a nós encontrar o simples, capaz de nos favorecer a vida tal como se nos revela, no seu movimento contínuo desde a origem do tempo. Leia mais aqui.
 


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