O estranho familiar em “A casa de Bernarda Alba”, de Federico García Lorca
Por Wagner Silva Gomes
No artigo “O estranho” (1919), o
psicanalista Sigmund Freud analisa o uso da palavra heimlich, que em alemão
significa familiar, doméstico, em relação ao seu não tão simples oposto unheimlich,
que na mesma língua significa “estranho”, “não familiar”. Ao esclarecer o uso
etimológico das palavras em várias línguas e culturas, o autor mostra como o
assustador, o misterioso, o estrangeiro, três palavras em sentido do que é
considerado estranho, em diversas narrativas estão relacionadas com o que é
familiar.
E essa é a palavra que norteia a
peça teatral A casa de Bernarda Alba (1936), de Federico García Lorca. O
ambiente familiar nuclear é o de cinco filhas e uma mãe, que impõe às mulheres um
luto de 8 anos com proibição de sair de casa, após o falecimento de seu segundo
marido. Para Bernarda, conservadora no nível do fascismo nacionalista
franquista, já que a peça se passa durante a Guerra Civil Espanhola
(1936-1939), era inconcebível que uma de suas filhas namorasse filho de
trabalhador, fechada que era para os ideais republicanos e progressistas.
A única filha que namora, mantendo
um noivado, é Angústias, a irmã mais velha, filha do primeiro marido e
paparicada por Bernarda e as empregadas por ser dona de uma pequena herança.
Ela recebe o noivo Pepe Romano na janela durante um determinado horário da
noite. O noivo nunca tem voz, ou seja, nunca aparece, e a sua presença traz
toda a familiaridade da imposição do nome Romano, que faz lembrar o Império, a
lógica do patriarcado, da primazia do caráter másculo. Mas essa referência
conservadora ao classicismo europeu de Roma, na figura do homem, é estranha à
família, apesar dela ser conservadora, pois sempre a sua presença é confundida
com o som dos cavalos, dos cachorros, com a fúria do vento, o misterioso, o
assustador.
É justamente essa presença que
cria o clima de ofensa, brigas, desconfianças, uma irmã dizer de forma
pejorativa que não a vê como irmã e sim como mulher, pois além da idolatria de
todas elas como se o nome Pepe Romano fosse uma escultura de Michelangelo,
Adela, a irmã caçula, tem um caso de amor com o tal, percebido pelas outras nas
horas que ele passa próximo ao quarto da irmã mais nova tarde da noite. Então o
familiar, o apego à tradição classicista e classista, é o próprio luto vivido
pelas mulheres pelo distanciamento disso do que vivem, pois não fazem parte de
nenhuma nobreza e nenhum convívio com perfis do tipo, de tal forma que a
presença de um homem representante do símbolo do patriarcado, ao invés de ser
algo admirado, familiar, torna-se algo monstruoso, pecaminoso.
A pesquisadora Sandra Cristina
Pereira Dutra, em sua dissertação As tradições do patriarcalismo nas obras A
casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca e Como água para chocolate, de
Laura Esquivel destaca que além da carga religiosa, a tradição é inventada com o
intuito de dar continuidade a um interesse comum. Aqui, o interesse é
patriarcalista, nos moldes que vinha cunhando o fascismo franquista, que se
transforma em um ritual de luto opressor, já que não é comum à mulheres, mesmo
que tenham um passado de sangue nobre, de tal forma que Adela, ao ser entregue
pelas irmãs como uma consumadora carnal nos braços de Pepe Romano, é taxada
de vagabunda, quase linchada, não suporta a opressão e se mata. Mas a mãe,
tamanho o absurdo conservador, diz que é para tirá-la da corda e que para todo o
efeito ela morreu virgem.
Comentários