O Decameron, o livro de novelas que atravessa uma pandemia

Por Joaquín León


O Decameron. Salvatore Postiglione

A peste bubônica desembarcou na Sicília de navios vindos da Síria e se espalhou pela Europa, semeando morte, ruína e paralisando o frenético ritmo social das cidades. Em 1348, o mundo de Giovanni Boccaccio e o destino da cidade de Florença mudaram dramaticamente.
 
O então centro mercantil, condenado pelo fluxo de viajantes e mercadores, tornou-se o centro da pandemia e seus muros tornaram-se o símbolo de uma cidade sitiada e afligida pela doença. Cessou o comércio, cessou a comunicação entre municípios e regiões, e os florentinos adotaram o distanciamento social como medida que se mostrou, na época, ineficaz diante de uma doença pouco conhecida, que não se sabia como se transmitia, não pelo contato humano, mas pela picada de pulgas, roedores ou parasitas; e com o aparecimento de bubões negros no corpo, matava suas vítimas logo após o terceiro dia.
 
Quase vazia de habitantes, a cidade viu seus cidadãos adoecerem e morrerem aos milhares, desprovidos de sacramentos, remédios ou consolação. Muitos fugiram da cidade para o campo, abandonando propriedades e deixando seus doentes, e outros, retidos pela pobreza, a necessidade ou a esperança, permaneceram isolados em suas casas. As vítimas da peste pereceram na solidão e anunciaram a morte aos seus vizinhos com o fedor dos seus corpos que, devido à insuficiência dos cemitérios, foram transportados em tábuas de madeira e enterrados às centenas em valas comuns.
 
Mais de 100.000 pessoas morreram dentro das muralhas de Florença entre 1347 e 1353, e na Europa mais de um terço de sua população. Com as cidades dizimadas pela doença e a fome, a peste ― como agora ― significou o aprofundamento de uma crise social que havia começado há muito tempo e o colapso de um sistema já decomposto; os estatutos sociais foram suspensos, a autoridade das leis divinas e humanas foi reduzida e o sistema estatal foi democratizado ao minar a posição econômica de suas oligarquias.
 
Com a falência dos Bardi, os Peruzzi e os Acciaioli ― um grande grupo de ricas famílias florentinas responsáveis ​​pela atividade bancária da cidade ― devido a uma série de dívidas não pagas do Rei da Inglaterra, Eduardo III e do Rei da Sicília, Roberto de Anjou, Florença se encontrava no limite. Mesmo com o florim de ouro ― a moeda mais influente do momento ― a capital econômica da Europa estava privada de tudo, faminta por falta de alimentos, e nas entranhas de uma das pandemias mais letais registradas na história moderna.
 
***
Com a peste bubônica, o ritmo de vida é interrompido, o respeito pela propriedade privada é perdido, os laços familiares são rompidos e os rituais mortuários tão importantes para a sociedade medieval são suspensos. O passeio, a festa e a congregação tornam-se práticas que ameaçam o bem-estar e a salvaguarda comum.
 
A praça pública é esvaziada e os locais de reclusão ― o chalé, a casa e o quarto ― são reorganizados para dar lugar à vida plena dos seus habitantes. Nesta encruzilhada, Boccaccio, escritor italiano e pensador humanista, imaginou em seu Decameron ― um conjunto de relatos medieval escrito durante os últimos anos da peste na Europa ― um grupo de jovens florentinos abrigados em uma casa de campo, fugindo da cidade.
 
Longe do caos, a comitiva, sete mulheres e três jovens nobres, aproveitam o tempo e o confinamento para contar entre si histórias inspiradas nas verdades mais vãs da sociedade florentina e imaginar, acompanhada dos benefícios da ficção, uma ordem que se opõe para a paisagem desolada causada pela peste e a crise econômica.
 
O Decameron ― uma centena de histórias contadas ao longo de dez dias ― é uma resposta à passagem da peste pela Itália, uma espécie de maratona verbal, cheia de humor, erotismo e tragédia que percorre todo o espectro do comportamento humano, suas pretensões aristocráticas, fraquezas eclesiásticas, negócios tortuosos e relacionamentos desviantes. Uma descrição hilária, mas contundente, de como os humanos não se importam o suficiente uns com os outros e a facilidade com que trocam seus ideais por prazeres mais imediatos e recompensas tangíveis.
 
Essas histórias, contadas na voz dos diversos componentes, são a reconto de uma comunidade que, diante da peste, se revela previamente doente. Para Boccaccio, um observador ousado, a pandemia é uma encenação que mostra as fragilidades do governo, das instituições e da sociedade; uma ordem social normalizada que há muito produz injustiça, desigualdade e violência; e espetáculo de morte, bestialidade, degradação e ruína.
 
***
A etimologia do título de sua obra, baseada no Hexameron medieval — tratados teológicos que narravam os seis dias da criação —, alude aos dez dias da história fora de Florença e aponta para a criação de um novo mundo através do pensamento e da literatura.
 
Nas narrativas de Boccaccio, o confinamento é visto, ainda hoje, não apenas como uma responsabilidade cívica, mas como um caminho de regeneração carregado de experiência literária que permite que a sociedade volte às ruas, à cidade, à vida pública, e para reatar os laços rompidos pela doença, e que a vida volte a ser.
 
* Este texto é uma tradução de “El Decameron, el libro de relatos que atraviesa una pandemia”, publicado aqui, na revista Gatopardo.

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