O amor à beira abismo. Uma entrevista com o escritor Adriano de Paula Rabelo
Por Márcio Rodrigues
“Não acreditamos em reumatismo nem
em amor verdadeiro até o primeiro ataque”. Esta constatação bem-humorada foi
feita pela escritora austríaca Marie von Ebner-Eschenbach, que produziu grande
parte do seu trabalho na segunda metade do século XIX. Ao longo dos séculos,
muitas criações literárias têm se concentrado em retratar, de maneira triunfal,
o momento em que ocorre esse “ataque”, com todo o encantamento e o desassossego
que ele produz. Há toda uma vastíssima literatura folhetinesca, fartamente
recriada no cinema e na televisão, cujas histórias terminam sempre num momento
em que o casal protagonista supera todas as dificuldades e pode seguir junto. E
todo mundo se lembra dos contos infantis que acabavam invariavelmente com um “E
foram felizes para sempre...”. Será que foram mesmo? É o que parece questionar
o escritor mineiro Adriano de Paula Rabelo em O amor é um abismo furtivo, livro
de contos que acaba de ser publicado pela editora Aglaia. Vejamos o que ele tem
a dizer sobre isso.
Suas histórias parecem começar
onde os folhetins terminam, mostrando o que vem depois de um casal se formar,
se estabelecer e seguir junto, tendo de enfrentar as tribulações da vida.
Sim, é quando o amor é
verdadeiramente posto à prova. E que prova! O dia a dia – com suas contas e
tributos a pagar, sua repetição, os maus-humores, as obrigações de um membro do
casal em relação ao outro, os defeitos de cada um (que parecem crescer com o
tempo), as necessidades dos filhos, quando os há – apresenta sempre aos amantes
um longo, um permanente trabalho de Hércules a ser realizado cotidianamente
para que o amor, sentimento e ligação humana marcados por tanta fragilidade,
não se quebre. Pensando bem, seria melhor comparar o dia a dia de um casal a um
trabalho de Sísifo, com todo o absurdo que Albert Camus identificou na ação
deste mito grego.
Por falar nisso, seus personagens
parecem estar sempre enredados no cotidiano, algo muitas vezes mencionado pelos
narradores de seus contos.
Um dos grandes desafios para
qualquer casal é encontrar uma forma de cultivar o amor dentro de um cotidiano
que é muitas vezes comezinho, banal, sufocante, alienado. Isso costuma fazer
ressaltar esse individualismo exacerbado que é a marca registrada do nosso
tempo. Então um ou outro membro do casal, ou ambos, entedia-se, deseja ter
outras experiências, tem a sensação de que a vida verdadeira, excitante, está
em outro lugar ou só será possível com outra pessoa. Afinal, não se deseja o
que já se tem. Mas acontece que, logo, logo, em outro lugar e com outra pessoa
o cotidiano voltará a exercer a mesma ação desagregadora, caso o amor siga sendo
visto como a pedra filosofal que transformará o ranho do dia a dia numa
experiência dourada, de permanente excitação. É possível pensar na aceitação
das falhas próprias e alheias; pensar numa relação pautada, em grande parte,
pela amizade, a colaboração e o diálogo permanente, com mais habilidade para
ouvir do que falar; pensar na disposição para fazer coisas juntos, criativamente,
na boa vontade e na delicadeza de um em relação ao outro. Mas não quero fazer
aqui uma espécie de autoajuda. As relações humanas são mesmo conflituosas e
muito frágeis, e o cotidiano é realmente desagregador. Tudo tem um ciclo e vai
passar. Todos nós, inclusive. E conosco, nossos amores.
Então a sabedoria amorosa estaria
em renunciar ao encantamento dos primeiros tempos, quando nos apaixonamos por
alguém que não conhecemos devidamente?
Eu diria que nem precisamos
renunciar, como se tivéssemos o controle da situação. Esse encantamento acaba
naturalmente quando conhecemos o outro em suas loucuras e impertinências. Todos
nós as temos. Quando o casal se forma e passa a conviver, inevitavelmente
exibimos para o parceiro nosso lado obscuro, que não mostramos a quem está fora
da relação. Na verdade, pode-se dizer que o amor só começa de fato quando
aceitamos lidar com as loucuras e impertinências do outro e lhe oferecemos as
nossas para a sua aceitação. Daí para frente, amar será uma habilidade, um
talento para administrar bem o conflito. Não consigo imaginar essa habilidade
desacompanhada de uma predisposição para a gentileza e a generosidade. Só assim
se pode neutralizar o quinhão de crueldade que é intrínseco a cada relação.
Seus personagens, em grande parte,
pertencem à classe média urbana. Aparentemente você a enxerga de forma dúbia,
sendo muito crítico, mas também compreensivo.
A chamada classe média, aquela à
qual pertence a grande maioria dos escritores, até mesmo porque é dela que saem
os mais intelectualizados, muito especialmente no Brasil, onde a elite
econômica é tão desqualificada em termos de educação e cultura, onde os
estratos sociais mais baixos não conseguem sequer escolarizar-se para além de
uma educação básica de péssima qualidade. A classe média é pouco homogênea e
nela há camadas mais baixas e mais altas, bem como estilos de vida e
posicionamentos políticos variados. Ultimamente, tem chamado atenção o apoio
que uma parte significativa dela tem dado ao que há de mais retrógrado e mais
ignóbil na sociedade brasileira. E também sua selvageria no trânsito, a forma
desavergonhada como vem exprimindo os preconceitos mais vergonhosos, a
resistência a tudo o que insinua o mínimo combate à monstruosa desigualdade
social neste país. No entanto, meus contos não tocam muito nessas questões
ideológicas e comportamentais da classe média na esfera pública, pois a ação de
minhas narrativas se passa quase sempre dentro de casa ou, quando fora dela, em
lugares que marcaram a ascensão e o declínio de um amor. Para além de um
interesse pelas idiossincrasias da classe média brasileira, meu interesse foi
pelo ser humano que está por detrás das tipificações de classe. Por isso a
compreensão da vulnerabilidade humana, em especial no que se refere aos tênues
laços que estabelecemos uns com os outros.
Uma de suas personagens, que se
apaixona, mas vivencia apenas um relacionamento breve, chega a fazer menção ao
conceito de “amor líquido”, de Bauman. Parece que o grande desafio do amor
atualmente é a dificuldade de fazê-lo perdurar. A seu ver, qual é a razão dessa
efemeridade mórbida?
Quando você diz que essa efemeridade
é “mórbida”, já emite previamente um juízo muito negativo sobre a forma como
processam as relações de casal hoje em dia. Não acredito que a duração breve
seja necessariamente ruim. Nem a longevidade da relação é uma virtude em si. É
apenas uma contingência de cada vínculo que estabelecemos. O que importa é a
qualidade da experiência. Para usar uma metáfora literária, há amores que se
realizam como longos poemas épicos, com muitos desdobramentos ao longo de um
tempo mais estendido. Mas há também amores que se realizam como breves sonetos,
haicais e até aforismos de uma única sentença. Do mesmo modo, no âmbito da
expressão corpórea do amor, todos nós guardamos memórias de noitadas épicas
atravessadas sem dormir, assim como de maravilhosas rapidinhas de cinco minutos
em pé, atrás da porta, antes de sairmos para o trabalho. Num caso como no
outro, o que faz a diferença é a força da expressão, a densidade da
experiência, sua autenticidade, não a sua duração. Portanto, não acho que temos
de fazer qualquer coisa para que o amor perdure de qualquer maneira. Há
sabedoria amorosa em reconhecer a hora em que um ciclo da vida se fecha, em
partir e deixar partir, por mais sofrido que isso seja.
Mas o que levou a essa tendência
para amores breves e frequentemente múltiplos que marca o nosso tempo?
Em grande medida, isso se deve aos
desdobramentos das revoluções comportamentais da década de 1960, à mentalidade
que impera na sociedade de consumo, à cultura do efêmero que temos hoje. A
liquidez, como Bauman constatou muito bem, está em tudo: no saltar de um
trabalho para outro, na obsolescência programada dos produtos que compramos, em
nossas identidades mutantes, em nosso ecletismo de pensamento e gostos, no
déficit de atenção de que sofremos quando tudo está ao alcance de um clique
numa tela qualquer. No que tange aos relacionamentos interpessoais na era do
Tinder, somos postos diante de um supermercado de perfis que deslizamos para a
esquerda ou para a direita à espera de alguns matches promissores. Se por um
lado isso proporciona que encontremos alguém muito interessante que jamais
encontraríamos de outra forma, por outro a escolha se torna praticamente
impossível diante da infinidade de opções. Quando ela ocorre, pensamos sempre
nos muitos outros perfis interessantíssimos a que tivemos de renunciar, se é
que renunciamos a eles de fato, deixando de dar uma espiada no aplicativo de
vez em quando. Disso decorre que estamos cada vez menos intolerantes com o
menor conflito, com o menor defeito do outro, cada vez menos hábeis para nos
conciliarmos, cada vez menos generosos em relação às imperfeições alheias, pois
sabemos que existe uma legião de outros perfis disponíveis para novos
acasalamentos. Parece que nisso tudo há uma mentalidade romântica à espera
permanente de um ausente idealizado que nunca vai chegar. Me lembro de dois
versos da poesia lírica de Gregório de Matos: “Nunca amor se afina nem se
apura/ enquanto está presente a causa dele”. Porém todas relações humanas são
conflituosas por excelência, somos todos defeituosos e finitos por excelência. Portanto,
não há outra opção a não ser afinar e apurar o amor em presença, enfrentar o
conflito, a imperfeição e a finitude de tudo o que é humano. Isso nem é
necessariamente para tornar uma relação longeva ou para manter uma sólida
monogamia, mas para criar as condições para que o amor floresça e possa ser
fruído pelo tempo que tiver de durar.
Este é o seu segundo livro de
contos e até aqui você tem se apresentado principalmente como contista. No
entanto, o conto não tem sido um gênero muito valorizado no Brasil, se o
compararmos com o prestígio do romance e seu peso na valorização de um
escritor. O que você pensa disso?
Esse é um fenômeno muito
brasileiro e relativamente recente, pois em outras épocas e em outros países o
conto tem sido muito valorizado. Alguns dos maiores romancistas da literatura
ocidental foram também grandes contistas: Dostoiévski, Tolstói, Flaubert, Dickens,
Conrad, Kafka, Joyce, Pirandello, Scott Fitzgerald, García Márquez. Alguns eram
principalmente grandes contistas: Tchekhov, Maupassant, Allan Poe, Horacio
Quiroga, Borges. E para citar alguns mais recentes: Salinger, Alice Munro, Juan
Rulfo, Murilo Rubião. Na literatura brasileira, não se pode esquecer que nossos
dois maiores prosadores foram contistas excepcionais: Machado de Assis e
Guimarães Rosa; que nossa maior escritora foi uma contista excepcional: Clarice
Lispector; que nosso maior poeta também foi um contista de valor: Carlos
Drummond de Andrade.
É verdade que, pelas limitações do
gênero, é difícil imaginar um conto capaz de competir com romances perfeitos,
totais, como Os irmãos Karamazov, Cem anos de solidão ou Os sertões. No
entanto, há contos que são obras-primas inesquecíveis, como “A dama do
cachorrinho”, de Tchekhov, “Bola de Sebo”, de Maupassant, “A causa secreta”, de
Machado de Assis, “A terceira margens do rio”, de Guimarães Rosa ou “A menor
mulher do mundo”, de Clarice Lispector. Ler um conto ou um romance são duas
experiências distintas e válidas em si mesmas. Elas não competem e não podem
ser julgadas por comparação.
Quanto à minha relação com o
conto, é verdade que tenho me dedicado a ele com frequência nos últimos anos,
mas também tenho publicado outros gêneros. A propósito, atualmente venho
trabalhando numa narrativa mais extensa, que ainda não sei se chegará ao final
na forma de um romance ou uma novela. O conto, portanto, é apenas um dos
gêneros que tenho explorado.
Suas histórias dão a impressão de
que você se recusa a lhes dar um desfecho, a encerrá-las com uma chave de ouro
que amarra os acontecimentos, solucionando a trama. Por quê?
Talvez haja nisso alguma
influência de meu contista favorito entre todos, Anton Tchekhov. Seus contos
também não terminavam propriamente com um desfecho. Mas, para além de qualquer
influência do grande escritor russo, essa falta de solução da trama é uma
mimese da própria vida, cujos acontecimentos jamais se fecham num todo
coerente. Isso não acontece em nada que empreendemos, pois somos seres da
incompletude e da falta. Nem na morte isso acontece, pois, ao fim de nossa
jornada por este mundo, deixamos nosso enredo absolutamente não resolvido.
Tocando num tema “pesado”, o fim
da experiência amorosa e a separação dos amantes, suas histórias são contadas
com leveza e concisão. Você considera que essas qualidades devem ser
valorizadas pela literatura contemporânea?
Há muito tempo, lá pelo começo dos
anos 1990, li um livrinho que me marcou muito: Seis propostas para o próximo
milênio, de Italo Calvino. Nele o escritor italiano enfeixa uma série de
conferências brilhantes que havia preparado para apresentar na Universidade de
Harvard, mas que nunca aconteceram, devido à sua morte repentina. Recordo-me de
que suas duas primeiras propostas para este milênio que já estamos vivendo há
20 anos são exatamente “leveza” e “rapidez”. O mundo se tornou extremamente
complexo, mais do que era antes, e hoje estamos sobrecarregados de afazeres e mil
coisas que demandam nossa atenção o tempo todo. O ritmo em que vivemos mal nos
dá tempo para elaborar nossas experiências. Para que a literatura possa ter um
lugar nessa barafunda, ela necessita realmente possuir leveza e rapidez. Isso
não lhe dá licença para ser rasa, banal e soluçante. Como demonstra a poesia de
um Manuel Bandeira ou a prosa de um Graciliano Ramos, a simplicidade expressiva
é uma árdua conquista, resultado de uma longa elaboração.
Suas respostas foram interessantes
e esclarecedoras.
Obrigado.
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