Johnny Panic e a bíblia dos sonhos, de Sylvia Plath
Por Pedro Fernandes
A reunião de textos de Sylvia
Plath feita por Ted Hughes, poeta e seu companheiro, apareceu no final da
década de 1970 em língua inglesa. A primeira edição era composta por uma parte
dos materiais finalizados e à espera de ganhar o público. Depois, a descoberta
de um vasto espólio adquirido pela Universidade de Indiana, ampliou a
antologia; aos treze dos dezessete contos do arquivo original somaram-se mais
nove da meia centena de textos que perfazem os primeiros esforços criativos da
escritora até os anos 1960. O restante da edição se completa com crônicas
marcadas por acentuado tom ficcional e anotações de mesmo valor colhidas dos
muitos cadernos que hospedava extensa variedade de exercícios escriturais.
Isso significa dizer que extensa
parte da prosa ficcional da autora de A redoma de vidro permanece disponível
apenas aos leitores pesquisadores capazes de desenvolver um contato mais aproximado
com o universo criativo em questão. Ted Hughes estima sete dezenas de textos, muito
embora, saibamos, exista mais. A partir daqui é possível estabelecer uma série
de desdobramentos possíveis sobre o acesso a essa obra.
Reiteradamente retornam acusações
sobre o desfazimento da obra de Sylvia Plath pelas mãos de um Ted Hughes
vingativo, ardiloso e ressentido do talento criativo de sua companheira. Mas, a
sua participação sobre os destinos dessa obra é envolta, ao que parece, mais em
contravenções atribuídas que praticadas. A princípio o que se nota é o
estabelecimento de um senso de rigor sobre esses escritos, algo que dominava
também a escritora. Parte desse entendimento pode ser observado na introdução
que ele escreveu para Johnny Panic and the Bible of Dreams e isso
não pode ser desvirtuado para uma suposta intervenção destrutiva desses
materiais, afinal, o grande arquivo da Lilly Library, de Indiana, por exemplo,
jamais esteve sob seu controle.
Não se quer aqui estabelecer uma
defesa cega para Hughes. A menção ao episódio de censura é apenas para expor
como é difícil entender as minúcias dos impasses assumidos sobre isso que
podemos chamar de embate de poderes sobre os restos deixados por Plath. Por
mais que a escritora tenha sofrido as sanções do próprio mundo editorial, o que
ficou é certamente material que não estava no seu horizonte de interesse vê-lo
publicado. E é preciso, em todo caso, respeitar essa decisão. Sabemos muito bem
que o impublicado interessa exclusivamente a dois tipos de público: o dos
curiosos interessados na fofoca literária e o dos pesquisadores que se dedicam
explorar os traços formativos, os caminhos e as decisões que resultaram no
universo literário oferecido pela escritora aos seus leitores.
É provável que o valor literário
desta coletânea de contos tenha influenciado sua aparição tardia por aqui. Não
é o caso de o Brasil se situar na vanguarda da circulação da literatura estrangeira.
É que Sylvia Plath se distingue por integrar a pequena legião de interessados
leitores. Embora muita coisa ainda seja inédita na nossa língua, sua presença
tem sido quase perene entre nós desde sua chegada em meados da última década do
século XX. Para que o leitor tenha uma noção disso, existiu um livro reunindo
os desenhos da escritora muito antes desta antologia que só agora se materializa,
num tempo que, só por isso, podemos designá-lo como ressurreição dos interesses
pela literatura da estadunidense.
Os textos que reúnem as qualidades
capazes de fazê-los circular fora da redoma dos pesquisadores são poucos e Ted
Hughes já se referiu aos textos menores dizendo que “um dos defeitos desses
contos mais fracos é o fato de ela não se permitir ser suficientemente objetiva.
Quando queria apenas registrar os acontecimentos, sem pensar no desbastamento
artístico ou na publicação, ela produzia alguns de seus textos mais eficazes ― e
isso fica claro em seus diários.” Parece então que o imperativo da escrita
compromissada, no sentido de um compromisso profissional, é o grande inimigo de
Sylvia Plath; o melhor de sua criação estaria, assim, circunscrito no âmbito do
que o próprio Hughes chama de autobiografia íntima.
Bom, é preciso discordar um pouco
dessa afirmativa. Mesmo que o valor da sentença seja irrefutável ― o
melhor de Plath está em como conseguiu dominar e alimentar seus próprios
demônios pela escrita, ao mesmo tempo máscara e disfarce ― a
antologia reúne peças muito bem conseguidas e que escapam dessa característica
dominante na sua literatura. Um exemplo é o conto que nomeia parte do título da
obra, “Johnny Panic e a bíblia de sonhos”, possivelmente um dos melhores escritos
ficcionais da estadunidense.
Uma narradora fabula no interior
de sua narração um outro que lhe acompanha e é ela própria no hobby de anotar
os sonhos dos pacientes num sanatório; sua ala de atuação é a psiquiátrica, mas
sua função nada tem de clínica, é apenas a de preencher à máquina os registros
nos prontuários dos pacientes. Esse tratamento permite que ela desenvolva um
novo sistema classificatório que ao invés de medir as pessoas pelos seus
designativos, incluindo os possíveis problemas que carregam, passa a reuni-las
de acordo com os seus sonhos. Quando estes não estão relatados, ela trata de inventá-los.
A beleza desse texto está na
maneira como Sylvia Plath engendra um ardiloso jogo espelhar em que nele se
imiscuem personas e a própria ordem da ficção, uma vez que se trata de
uma personagem num exercício de fabulação no interior da fabulação. E, pouco
ou quase nada de derivas autobiográficas existem aqui, prevalecendo o tratamento
com o ficcional. Talvez se possa dizer do desacerto psicológico dessa
narradora, mas isso se configura, sabemos bem, numa crise entre nós e a realidade
nunca superada desde nossa cisão com a totalidade.
Nesses textos, prevalece um rico
equilíbrio entre o real e o simbólico. O que se materializa não é o efeito
extraordinário mas o extraordinariedade do comum. Esse tratamento tem duas
frentes singulares: uma é constituída desse espírito voltado para a objetividade
do mundo, o que Ted Hughes recorda como o interesse comum que a escritora tinha
por materializar com os mínimos matizes aquilo que estava ao alcance da visão;
a outra se organiza pela expressão criativa do olho poético, capaz de converter
por dentro e por entre uma coisa em outra, estabelecendo um mundo que é outro,
fora dos endereçamentos que se queira fazer entre fato e ficção. Em “Johnny
Panic” é exatamente isso que se observa: uma realidade que se mistura ao
onírico, arrastando sua inventora para mundo organizado por suas próprias leis.
Fora isso, que é mesmo o melhor
aspecto a se destacar no trabalho criativo de Sylvia Plath, circulam os
interesses que se fizeram recorrentes na sua obra, tais como a complexificação
do feminino num mundo estrategicamente moldado à imagem e semelhança do homem,
a falta, a ansiedade pelo preenchimento da existência com um sentido coerente e
a contínua cisão entre o eu e o mundo. Nos registros de feição diarística é a
mesma consciência perturbada, as dificuldades de adaptação entre o interior e
exterior e as tentativas de encontrar um ponto de equilíbrio capaz de fazê-la uma
habitante nesse mundo comum para a maioria de todos.
Esta Jonnhy Panic e a bíblia
dos sonhos e outros textos em prosa é a mais robusta obra que os leitores podem
em errância encontrar muito do périplo criativo da escritora. O que se revela é
uma mulher em contínuo processo de acentuada obsessão para com a escrita. Não
fosse a ausência dos poemas, forma literária que praticou magistralmente,
diríamos ser esta antologia a síntese mais completa da literatura de Sylvia
Plath. E é, se tomarmos como uma bíblia póstuma de seus sonhos.
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