João Cabral de Melo Neto, outros caminhos a se permitir pela “Poesia completa”
Por Pedro Fernandes
“O ato do poema é um ato íntimo, solitário, que se passa sem
testemunhas.” Essa afirmativa de João Cabral de Melo Neto é parte de uma
conferência ministrada pelo poeta oferecida em novembro de 1952 na Biblioteca
Municipal Mário de Andrade, no âmbito de um curso de Poética promovido pelo
Clube de Poesia do Brasil. Sendo um ato que se pratica sozinho, o poeta guarda,
reiterando a imagem de um demiurgo sempre a ele atribuída, toda a liberdade
decorrente no tratamento criativo. E a principal atitude é a de desfiguração da
realidade. É da natureza da lírica que o mundo e as coisas são transfigurados
pelo eu, singularizando-se, alcançando então força que mantém sua condição
circunscrita nas fronteiras próprias do objeto poético.
Com esses novos elementos, o poeta desenvolve um mundo que se alimenta e é sustentado por sua voz; este mundo, disperso ou condensado, é uma unidade de significação no interior da qual se movimenta e para o qual, se quiser compreender, o leitor precisa se integrar. É por isso que, quando sabemos sobre a obra de um determinado poeta sempre encontramos designada pelos seus aspectos essenciais. Por vezes, esse critério chega a se transformar em estereotipia, o que, em todos os casos do tipo, nos ofusca encontrar outros caminhos de leitura, ainda que estes apesar de não serem infinitos são sempre variáveis.
No caso específico de João Cabral
de Melo Neto, nos acostumamos a saber que se trata de um poeta resistente aos apelos
sentimental e espontâneo; é o autor que construiu uma obra guiada por um
racionalismo capaz do desnudamento das coisas e do mundo pelas forças
geométricas lineares que deles participam. Talvez pela repetição constante,
desde sua primeira aparição como poeta, ele próprio tenha assumido essa leitura
e buscado desenvolvê-la como seu projeto criativo. Quer dizer, fez disso um ponto
de obsessão ―
mesmo nas várias intervenções públicas como em “Poesia e composição. A
inspiração e o trabalho de arte”, a conferência de 1952. E repetiu, sem
exaurir a forma, a ideia de feitura de um poema como objeto não apenas
autêntico, mas autônomo, capaz de reiterar a força em-si da linguagem,
que nomeando também presentifica o nominado.
Esse mundo permaneceu mais ou
menos intacto até a aparição de alguns trabalhos ainda desconhecidos do público.
Parte desses primeiros materiais ampliaram as provas sobre o processo criativo
do poeta, para quem, todo ato criativo só se constitui enquanto construção e
nunca como efeito de uma manifestação imediata das faculdades imaginativas. À
comum inspiração de traço ora embebido na leitura que os românticos fizeram da
manifestação poética dos clássicos, João Cabral preferiu a ideia de composição.
É assim que se mostra, por exemplo,
no esboço publicado em 2013 sob o título de Notas sobre uma possível A casa
de farinha. Desde 1966, acumulava esboços para a construção de um poema
capaz de ampliar um exercício recorrente na sua obra: dizer um campo observado,
expressá-lo enquanto testemunha e funcionamento da engrenagem poética e aludir o
aspecto do social. Percebemos que, nesse caso, o autônomo mundo do poeta só se
constitui plenamente da intersecção dessas três expressões. Mundo, linguagem e
metalinguagem. São elas que participam do tratamento de desfiguração. Este,
como podem perceber, não se trata de uma volatização, nem sublimação do mundo,
mas o encontro de alternativa de dizê-lo autenticamente.
Os bastidores de oficina
esclareceram um poeta observador do seu entorno e interessado em, através de um
tratamento ao mesmo tempo autorreflexivo, descobrir como o mundo ordinário participa
desse mundo materializado pelo trabalho poético. E esse processo, sendo
essencialmente criativo, jamais é simples transposição. O mundo exterior
participa oferecendo-lhe funções e contornos para as abstrações e as ideias e
estas, por sua vez, formam uma terceira dimensão ― a da obra. Essa dimensão,
recordando o que dizemos ser o real, é possivelmente outra de suas camadas.
Dois anos antes do esboço para a
possível A casa de farinha, se publicou Ilustrações para fotografias
de Dandara. O livro reúne material de família do período quando o poeta
esteve como diplomata no Senegal: os textos constituem uma sorte de
divertimento do avô para com a neta a partir do contato com os registros
fotográficos que lhe chegavam. Depois o próprio João Cabral, um fascinado pelo fabrico
do livro, transformou esse material na ordem em que saltou do ambiente íntimo
para o público leitor. A atitude sempre questionável favoreceu o descobrimento
de outra face do poeta: a do homem agarrado aos afetos mais corriqueiros, feito
das mesmas emoções comuns a todos os homens, motivado pelo efeito do casual. Ou
seja, tudo a abertura para tudo aquilo que as leituras de sua obra até se fecharam
e que ele havia tomado para si.
Obviamente que esses materiais,
sobretudo o livro íntimo, não afetam radicalmente os sedimentados conceitos
utilizados para a designação do universo poético de João Cabral de Melo Neto.
Mas, constituem a formação de uma terceira margem, aquela que se situa entre o
profissional e o pessoal ― principalmente quando são transportados para o interior
da obra completa. Nesse caso, esses textos estabelecem uma visibilidade entre o
que é de tratamento literário o que é recreativo ― distinções quase sempre
ignoradas ou generalizadas pelos leitores que tendem ver o criador em todas as
dimensões da criatura.
A terceira margem finda por
esclarecer que, sendo ato íntimo, toda criação lírica consiste no criterioso
labor de alteração metamórfica do mundo imediato pelos sedimentos da palavra e
das obsessões interiores do poeta. Voltamos outra vez à compreensão segundo a qual
a lírica se mantém pela desfiguração do real. Seria possível, assim, falar
sobre fingimento poético como princípio estético de João Cabral de Melo
Neto?
Ora, é possível que todo poeta nascido
no interior e posteriormente aos ideologemas modernistas se filie direta ou
indiretamente dos seus princípios. Sabe-se que é a partir de então que se
manifesta abertamente uma consciência de criação fora dos princípios casuais da
inspiração. Isto é, o tratamento composicional defendido pelo poeta
pernambucano encontra claramente aqui suas bases. Naturalizando-se no outro de
si como sujeito da enunciação poética, o que aqui se pratica é uma arte do fingir.
É bom dizer que isso nada tem a
ver com embuste; não é de sinceridade do poeta que se trata quando falamos
sobre fingimento. (E mesmo nesse sentido parece fundamental considerar que fingir
é a melhor maneira de se aproximar da carnadura do mundo. Ao assumir um
princípio natural da criação poética, o criador vivifica a sua angústia, que
também é nossa, de nunca alcançar tocar o instante e nem revelar, se há, sua
autenticidade. Que isto só se mostra enquanto produto das forças da experiência).
Trata-se de assumir uma posição no interior do seu mundo, capaz de gerir suas
leis e seu funcionamento. E o mundo de João Cabral de Melo Neto recusa um eu
enquanto unidade subjetiva e pela qual o seu desnudamento revele a si ou o
mundo. Sabemos que, para ele, tudo está ao seu alcance, sem charadismos.
A Poesia completa de João
Cabral de Melo Neto publicada no Brasil seis anos depois de quando saiu em
Portugal ―
e a julgar pelas condições editoriais meio a toque de caixa ―,
amplia uma compreensão sobre essa negativa do eu-subjetivo. Não é apenas a
possibilidade de entrarmos em contato com a organização de sua biblioteca,
capaz de nos oferecer as variáveis do andamento do seu projeto criativo. É a de
revisar a formação de sua poética e expandir os limites a que foi reduzida desde
sempre.
Isso se oferece pelo acréscimo da meia
centena de poemas recolhidos noutras publicações esparsas ou em arquivos de terceiros.
Todos os elementos que designam a poesia cabralina comparecem nesses textos: o
contato com a memória, com o social, os seus afetos, suas leituras, a matéria
da poesia e mesmo a decisão pela forma precisa manifesta numa poética
substantiva são alguns exemplos. Mas, é outro poeta que encontramos: mais à
vontade, como se respirasse meio corpo fora de suas obsessões e, por isso
mesmo, capaz de se aproximar das feições líricas mais comuns, aquelas mais abertas
sobre as vivências do eu-poético, o que chamará atenção dos leitores. Esses
poemas, portanto, sintetizam o instante entre o homem e o poeta, com uma
condição, não são exercícios de lazer praticados no ambiente íntimo.
Esses inéditos não desmancham as
determinantes que se fizeram em definição do universo poético de João Cabral,
mas nos leva a minimizar o emprego da rigidez classificatória, abrindo-se mesmo
para uma releitura da sua obra capaz de melhor compreendermos o funcionamento
das leis desse universo, sobretudo a parte menos visitada porque erroneamente
fixada entre as obras de dicção hermética. São os textos que esclarecem uma
dialética entre o homem e o poeta. Se os dois não podem ser lidos (em nenhuma
obra) como um-só, também não podem ser conjugados como incomunicantes.
Nisso, o poeta pernambucano foi um todo coerente. Nós que muitas vezes não
quisemos acreditar ou buscamos em lugares improváveis o que sempre esteve à nossa
vista.
A publicação da Poesia completa
de João Cabral é, apesar das reservas que possamos fazer sobre a qualidade
editorial ― ou talvez isso seja apenas a implicância de um leitor que aguardou
com elevada ansiedade a chegada dessa pequena grande biblioteca ― o grande
acontecimento de 2020. É pelo trabalho primoroso e cuidadoso de Antonio Carlos
Secchin, o leitor mais acurado da poesia cabralina e autor de um compêndio de textos que testemunha vivamente isso (João Cabral de ponta a ponta, publicado pela Cepe Editora neste ano do centenário); é pela pesquisa criteriosa
e anotada de Edneia Ribeiro de uma seção que nos coloca em contato com os poemas inéditos porque conhecidos só de um público muitíssimo restrito de leitores; é pelo breve perfil que nos é oferecido, pelo itinerário biográfico, e a partir
das várias declarações públicas do poeta, incluindo, caminhos para se ler e se
pensar sobre sua poética; é, por fim, na exposição do breve levantamento bibliográfico
que oferece um panorama sobre as múltiplas leituras desenvolvidas sobre a literatura
aqui em questão perfazendo pelo menos três momentos importantes da sua sobrevida. Isto
é, esse trabalho de fôlego ― e sim de alta qualidade ― é uma rara oportunidade concedida a um poeta da nossa
literatura; tal material é mesmo capaz de, uma vez os leitores atravessarem todo itinerário,
garantir uma posição de iniciados numa obra que continua ser uma das
mais valiosas.
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