Entre Croce e Sainte-Beuve: Carpeaux e os caminhos da crítica
Por Guilherme Mazzafera
No que constitui uma de suas
primeiras reflexões em terras brasileiras sobre o ofício da crítica literária,
Otto Maria Carpeaux procura qualificar dois termos-chave de seu vocabulário
crítico, expressos no título do ensaio: “Situação e presença: algumas reflexões
sobre a crítica literária”.1 Ao
propor uma reavaliação radical dos conceitos históricos postulado por Charles
Sainte-Beuve e Benedetto Croce, Carpeaux estabelece uma oposição entre tais
abordagens: “Sainte-Beuve parte do homem e Croce parte da obra, e parece que
estes dois métodos levam a triunfos e a derrotas igualmente opostos.” Sainte-Beuve
seria incontestável no que se refere ao passado literário, impregnando sua
recepção até o presente vivido por Carpeaux. Por outro lado, seria surdo às
manifestações da atualidade, pós-1830, ignorando autores como Stendhal, Balzac,
Hugo, Flaubert, Musset e Nerval. Croce, por outro lado, embora tenha sido por
muito tempo “o juiz e a consciência da literatura contemporânea”, equivoca-se
constantemente como crítico do passado (pré-1830), até mesmo com relação a
nomes da envergadura de Dante e Leopardi (CARPEAUX, 1941).
Procurando
esmiuçar a questão, Carpeaux articula uma distinção fundamental entre história
e crítica literárias, alicerçada nos diferentes gestos apropriativos que fazem
da filologia: “a filologia do historiador estuda esta língua”, enquanto “a filologia
do crítico estuda o sentido”. Ao estudar a língua, chega-se à situação
histórica de um autor e obra, enquanto o estudo do sentido desvela a presença,
“pela qual uma obra se subtrai do tempo histórico e torna-se imortal: sempre
presente”.
Em termos de evolução literária,
Carpeaux considera que autores e obras costumam apresentar apenas uma destas
instâncias, tendo importância meramente histórica (situação sem presença) ou
constituindo-se como pura atualidade (presença sem situação). Ao olhar para o passado,
o historiador almeja fixar as situações, enquanto o crítico anseia por evocar a
presença; na atualidade, cabe ao crítico estabelecer as situações, enquanto ao
historiador só resta o cruzar de braços em face de um eterno presente. Os
campos de atuação do historiador e do crítico parecem, deste modo, excluir-se
mutuamente. No entanto, lembra Carpeaux, “o acordo da situação e da presença
faz a prerrogativa do gênio”, e o mesmo deve aplicar-se ao método do
intérprete. Sainte-Beuve rejeita a simples situação, recorrendo à vida dos
autores, à “personalidade fora do tempo”, para melhor compreender as obras. Croce,
por outro lado, abstrai a personalidade para encontrar a obra em seu presente
constitutivo.
A predominância exclusiva da
situação equivaleria ao golpe de morte da história sobre a obra de arte,
limitando seu entendimento à interpretação alegórica, de cunho dogmático. A
preferência do crítico pela presença, portanto, estaria vinculada a uma
concepção simbólica da obra literária, como apontado no estudo fundamental de
Mauro Souza Ventura: “Para o crítico, arte é símbolo e não alegoria. Quando uma
obra não consegue suplantar o nível da alegoria, torna-se inferior.” (VENTURA,
2002, p. 95) O anseio do crítico literário, segundo Carpeaux, é o de “aniquilar
o tempo”, único meio de vislumbrar a presença de um autor ou obra. A
interpretação da obra enquanto símbolo, ou seja, “sua capacidade de gerar
múltiplos sentidos” (p. 103), depende de um gesto ativo do leitor-crítico que,
a partir dos símbolos gestados pela arte – que não deve deles tirar conclusões,
segundo Carpeaux –, não procura impor uma tábua de valores pré-moldada, mas
“cria-os por intermédio da arte”, passo diverso daquele dado pelo historiador
literário, que inventaria o corpus crítico precedente, fixando “os valores da
tradição”:
“O historiador literário faz o
inventário das críticas acumuladas. Fixa os valores da tradição. Sua maior
ambição é de dar um “idearium” completo da sua literatura. O crítico
não faz um inventário; faz a crítica do inventário. É por isso que uma história
literária, feita por um crítico, desperta um interesse excepcional. O crítico
não fixa os valores; cria-os por intermédio da arte. Uma grande experiência nos
ensinou que a literatura antecipa, pelos seus símbolos, o futuro. Mas a arte
cria os seus símbolos, sem tirar deles conclusões. A crítica tira desses
símbolos as suas conclusões; a crítica cria valores. O crítico não escreve um “idearium” e
sim um modesto diário; mas o seu jornal é um calendário do futuro. Ele é o
historiador das eras vindouras.” (CARPEAUX, 1941)
Uma rápida consulta aos ensaios de
Carpeaux revela sua preferência pelo segundo termo: “Presença de Goethe”,
“Presença de Aníbal”, “Presença francesa”, “Brasil: ausências e presença” sem
falar no título da coletânea de 1958, Presenças, em oposição a um breve exemplo
da “Situação de Mallarmé”. A isto se pode associar, talvez, a opção de Carpeaux
pelo ensaio como forma mentis de sua crítica, que penetra mesmo em seus largos
voos de historiador literário, cujos melhores momentos, sobretudo no caso da História
da literatura ocidental, são os breves lampejos ensaísticos que, reordenando as
situações, articulam uma nova presença de determinado autor ou obra.
Ao compor a divisa essencial da
crítica literária – “Distinguir e ligar as situações, as presenças e a vida é a
tarefa interminável, o fim supremo do crítico” – Carpeaux não deixa de apontar
para seu próprio método, em que o ensaio surge, nas palavras de outro grande
praticante da forma, como “atividade do espírito que tenta conferir contorno
preciso a um objeto, dar-lhe realidade e ser” (BENSE, 2018, p. 115), modo
alternativo de indicar a necessidade de conjugar situação (“contorno preciso”)
e presença (“realidade e ser”). A delimitação dos contornos, porém, não implica
seu exaurimento, posto se tratar de objeto efetivamente criado pela escrita. Se
ao ensaísta compete o gesto compósito que produz “incansavelmente novas
combinações ao redor do objeto” (p. 121), o Carpeaux crítico literário, sem
abrir mão de certo rigor metodológico, desabona a severidade de uma
aparentemente inexorável filiação texto-contexto, promovida tanto por uma
leitura exclusivamente nacional, que enlaça autor, obra e realidade
histórico-social, como por outra, pretensamente internacionalizante, refém da
localização e comprovação angustiada de influências.
Como propõe Dominick LaCapra (1983, p. 55-56), pensando no processo de carnavalização conceituado por Bakhtin, a
obra de um escritor pode ser desmembrada criativamente, permitindo a
recorrência de processos de renovação e impedindo que os textos se fechem
hermeticamente sobre si mesmos. A leitura que Carpeaux empreende da literatura
brasileira – da qual sua contínua interpretação da obra de Machado de Assis é
caso emblemático2 –, a despeito de certa oscilação entre
lugares-comuns já postulados pela crítica majoritária, traz como marca precípua
um contínuo deslocar-se que, a cada novo texto, parece reconfigurar autor e
obra em novos contextos e vieses interpretativos, levando a cabo uma ideia que
nos parece central na reflexão de Max Bense sobre a forma do ensaio: “a razão
de ser do ensaio consiste menos em encontrar uma definição reveladora do objeto
e mais em adicionar contextos e configurações em que ele possa se inserir”
(BENSE, 2018, p. 121).
Esse modo de proceder, marcado por
um pendor universalista que preza um sentido profundo de unidade cultural, não
refuga o gesto historicizante, reencenado a cada passo, tendo em mente que os
objetos sob análise são inacessíveis enquanto constructos históricos puros, mas
perscrutáveis por uma atitude indagadora que congregue “a mais ampla
informação, atitude desinteressada, método seguro, e uma certa dose de força
criadora” (CARPEAUX, “O crítico Augusto Meyer”, 1999, p. 849) . Pela soma de
tais instâncias, o grande crítico sempre (re)cria seu objeto, e a verdadeira
prova de fogo, para Carpeaux, não é o debruçar-se sobre os contemporâneos, cujo
juízo será sempre precário, mas o confronto contínuo com as obras de qualquer
época, “inclusive e especialmente as publicadas no passado”.
A obra de Carpeaux dá testemunho
deste confronto com as obras e suas difusas temporalidades, testemunho este
atravessado por uma tensão constitutiva, reposta em sucessivos pares
dialéticos, agônicos: situação e presença; origens e fins; retratos e leituras;
respostas e perguntas. Há, nestes pares, certa caracterização do método de
Carpeaux em seus ensaios, que oscilam entre a apresentação, consideravelmente
sintética, de um amplo escopo informativo sobre o objeto em questão, resvalando
por vezes em certos generalismos (seja pela organização de respostas
cristalizadas pela crítica precedente ou pela composição de um retrato pouco
original), e o salto crítico mais ostensivo, também ele sintético, presente nas
perguntas com que escrutiniza a tradição ou na proficuidade autoral de suas
leituras mais analíticas. Embora haja considerável verdade na observação de
Antonio Candido (1944) de que Carpeaux é menos dialético do que alardeia, penso
que seu ímpeto crítico reside no posicionamento adequado dos problemas e em
certos rompantes iluminadores que carregam em si algo do elã poético na
“audácia de exprimir suas próprias verdades pessoais” (“Baudelaire e a
liberdade”, 1999, p. 578). É graças a isso que o crítico é capaz de atiçar, em
um ensaio aparentemente despretensioso sobre a cena do porteiro em Macbeth, no
qual brevemente evoca a já clássica leitura de Thomas De Quincey para
transcendê-la, uma insuspeitada centelha hermenêutica, apontando que, a
despeito de um portentoso monólogo sobre som e fúria feito pelo protagonista,
ressoa “a vida comum, a do homem comum – grosseira, plebeia sem barulho nem
fúria, mas cheia da significação das coisas elementares, primitivas” (“As
bruxas e o porteiro”, 1999, pp. 549-550). Eis a presença de Shakespeare.
Notas
1 Este texto é derivado de uma
longa apresentação da vida e obra de Carpeaux, intitulada “Situação de presença
de um crítico austríaco-brasileiro”, publicado no n. 20 da revista Teresa, aqui.
2 Sobre as leituras de Machado
feitas por Carpeaux, ver nosso texto “Encontros machadianos: Carpeaux e seu
companheiro de bordo”, publicado aqui no Letras.
Referências
BENSE, Max. “O ensaio e sua
prosa”. Tradução de Samuel Titan Jr. In: PIRES, Paulo Roberto (Org.). Doze
ensaios sobre o ensaio. São Paulo: IMS, 2018, p. 115.
CANDIDO, Antonio. “Última nota”. Folha
da Manhã. São Paulo, 28 maio 1944. Disponível aqui.
CARPEAUX, Otto Maria. “Situação
e presença: algumas reflexões sobre a crítica literária”. Correio da Manhã,
nº 14.442, Ano XLI, Rio de Janeiro, 30 de Novembro de 1941. (Suplemento, págs.
1–2).
CARPEAUX, Otto Maria. “As bruxas e o
porteiro”, “Baudelaire e a liberdade” e “O crítico Augusto Meyer”. In: Ensaios
reunidos – Vol. I (1942-1978). Organização, introdução e notas de Olavo de
Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks; UniverCidade, 1999.
LA CAPRA, Dominick. Rethinking
Intellectual History: Texts, Contexts, Language. Ithaca. London: Cornell
University Press, 1983.
VENTURA, Mauro Souza. De Karpfen a
Carpeaux: Formação política e interpretação literária na obra do crítico
austríaco-brasileiro. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002.
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