Destaques em projetos editoriais de 2020
Uma peça no trabalho contra o
esquecimento
Há muito da nossa literatura preso
nos escombros da memória ― do que dela restou. Nos últimos anos, assistimos algumas
pequenas atividades de recuperação que são muito valiosas. Essas atividades se
fazem pelo empenho silencioso e individual entre leitores valiosos que
conseguem entre a vida acadêmica, o zelo pelo coletivo e uma responsabilidade nascida
de uma aposta no melhor de nós contribuir para uma redução dos esquecimentos. A
antologia O sino e o relógio é parte desse trabalho; organizada por
Hélio de Seixas Guimarães e Vagner Camilo ao longo de mais de uma década, a publicação
da editora Carambaia reúne raríssimos textos de autores também raros entre os
leitores brasileiros, seja porque esquecidos, seja porque conhecidos noutras
searas criativas. O conjunto de 25 textos abrange entre os anos de 1836 e 1879
e é apresentado em quatro seções: os contos de vertente fantástica, histórica,
de intriga e aqueles com narrativas bem próximas ao teor da crônica. São obras
que findam por oferecer uma releitura sobre um dos períodos mais importantes da
nossa literatura, desde a sua consolidação como um sistema próprio à grande
efervescência criativa.
Uma descoberta sobre como Machado
de Assis foi lido por seus pares
É também de Hélio Seixas Guimarães
o livro Escritor por Escritor. Machado de Assis segundo seus pares. Um
projeto conduzido agora em parceria com Ieda Lebensztayn. O primeiro volume foi
publicado ainda no ano passado; reunia textos de recepção crítica da obra e da
figura de Machado de Assis entre o ano da morte e o do centenário do escritor. Artigos
e crônicas, poemas e cartas recolhidos numa extensa pesquisa realizada em
arquivos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Mais tarde, o trabalho se amplia com
a publicação do segundo volume e os dois livros formam parte numa caixa
organizada pela editora Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Na continuação
do trabalho, os autores recolhem textos escritos entre 1939 e 2008. O vasto conjunto
de peças oferece ao leitor uma visão multifacetada ou um retrato feito de
múltiplas peças sobre um dos nomes da nossa literatura que continuamente tem
sido descoberto e redescoberto.
Visita à catedral poética de João Cabral de Melo
Neto
Este ano foi o do centenário do
poeta e fugindo da timidez das celebrações em torno da efeméride, a editora Alfaguara,
já no apagar das luzes de 2020, conseguiu trazer para os leitores toda a
biblioteca do poeta. Um projeto primoroso conduzido pelo mais importante
especialista na obra de Melo Neto, o também poeta Antonio Carlos Secchin. Além
da compilação de todos os livros de poesia do autor de Morte e vida severina,
esta antologia recolhe mais de meia centena de textos ainda inéditos e livro ― trabalho
conduzido aqui por outra especialista, Edneia Ribeiro. Numa recensão crítica
sobre este livro publicada aqui no blog, Pedro Fernandes destaca o quanto a
editora poderia ter caprichado no aspecto gráfico visual para uma edição dessa
magnitude. Mas, o trabalho criterioso dos organizadores e a própria existência
do livro estão em consonância com a presença numa lista como esta.
Um romance conhecido com um título
desconhecido
Agora que a obra de George Orwell
entra em domínio público, as editoras têm brigado nas apostas de novas edições dos
livros mais conhecidos do escritor: 1984 e A revolução dos
bichos. A revolução dos bichos não, A fazenda dos animais.
O novo título é da nova tradução de Paulo Henriques Britto apresentada pela
Companhia das Letras. A casa editorial que há muito controlava a publicação da
obra de Orwell no Brasil investiu em duas robustas edições dos dois clássicos:
além de nova tradução, ilustrações e vasto material de apoio crítico. E muito
antes da condena pelas chamadas edições de luxo (que de luxo só têm uma capa forrada
em tecido), apressou-se em publicar também nas edições econômicas (e sempre
interessantes) do selo Penguin. Além da ousadia nas apostas, o trabalho é um
exemplo de quando, com dinheiro, é sempre possível reinventar o mais óbvio. A editora deve preparar uma caixa para reunir as duas edições de luxo. Agora,
todo esforço a mais, principalmente das outras casas editoriais bem que poderia
ser investido para nos proporcionar conhecer a ainda parte muito desconhecida da
obra do George Orwell. Esperamos.
A poesia completa de Emily
Dickinson
A obra da poeta estadunidense não é
desconhecida entre nós, nem tem circulação restrita. Mas, sua continuidade só agora
demonstra novos valores: um projeto que reúna o trabalho de uma figura que só
depois da sua morte, a partir de 1886, começou a ser descoberta para o mundo; até
então, Dickinson só publicara uma dezena de poemas em jornais. O trabalho que
começa a despontar agora com a aparição do primeiro volume é do professor
Adalberto Müller. Publicado pelas editoras Unicamp e da UnB, a Poesia
completa traz os poemas também na língua de origem com uma variedade de
notas explicativas sobre palavras ou expressões e mesmo as versões outras
pensadas por Dickinson para alguns de seus trabalhos. Embora o segundo volume
ainda esteja no plano virtual é importante destacar o feito de sua aparição
como um dos mais interessantes projetos editoriais deste 2020.
Todo capricho por uma capa que é o espírito de um livro
Em 2020, Anna Muylaert voltou às estantes com um novo livro; desta vez, não um de poesia, mas de contos. Quando o sangue sobe à cabeça saiu pela editora Lote 42, casa especializada na subversão das formas tradicionais do livro. Este trabalho da cineasta é composto por seis narrativas escritas ao longo dos anos noventa e que exploram o universo feminino. Para oferecer ao leitor uma exposição do espírito da obra, o projeto gráfico conduzido pelo multicriativo Gustavo Piqueira e por Samia Jacintho da Casa Rex se fundamenta na criação de uma capa impressa em serigrafia branca com sobrecapa com dobras irregulares que formam um pôster colorido com detalhes do corpo humano. Dos livros citados nesta lista ― marcadamente simples num ano sem grandes surpresas ― este é o que melhor diz o espírito do que chamamos projetos editoriais. A individualidade de cada peça, a de n.42 da editora, se completa com a dedicatória carimbada manualmente em tinha vermelha.
A biblioteca completa de
Henriqueta Lisboa
Um trabalho editorial e
intelectual de peso e valia na literatura brasileira ― talvez o mais importante
deste ano de poucas peças do gênero ― foi a reunião da obra completa de
Henriqueta Lisboa conduzida por Wander de Melo Miranda e Reinaldo Marques. Uma
caixa reúne três livros: a poesia, a poesia traduzida e textos em prosa. São
mais de duas mil páginas de material que se apresenta como cartão postal para
um projeto ainda mais amplo a assinalar as celebrações pelos 120 anos de poeta
celebrados em 2021. Neste ano a ideia é acessar a um site com versão digital da
obra e uma variedade de conteúdos extras. Além desses dois trabalhos, os
organizadores pretendem, também pela editora Peirópolis, editar alguns títulos
avulsos, como Flor da morte, Alvo humano e Pousada do ser.
O projeto que agora tomou forma começou a ser elaborado em 2003 pela
sobrinha de Henriqueta e responsável pelo espólio da poeta, Abigail Lisboa de
Oliveira Carvalho.
A forma conhecida para uma obra desconhecida
As Edições 100/Cabeças são novas. Seus interesses, antigos: oferecer aos leitores brasileiros o contato com a vasto universo criativo dos surrealistas. Entre suas primeiras publicações está Carta à vidente, de Antonin Artaud. Neste texto, o escritor se revela para uma cartomante, compondo uma declaração enviesada a esta mulher. Para dar forma a uma escrita, bem sabemos, em nada usual, o projeto gráfico de Flávia Castanheira opta por desconstruir a forma livro, substituindo a separação pela continuidade da página. O chamado livro-sanfona, acondicionado numa caixa-envelope, é ilustrado caprichosamente pelo artista português António Gonçalves.
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