17 livros de 2020 na opinião dos nossos colunistas
Minhas melhores leituras de 2020
Por Guilherme Mazzafera
Um estudo exemplar e definitivo, em seu entremeio de filologia e crítica literária, sobre as origens, a composição textual e o alcance estético de um clássico já muito devassado.
Dos mais divertidos, sinceros e pungentes relatos de viagem já escritos, mesclando a verve de um ensaísta e conteur nato com o indevassável de uma das personagens não humanas mais inesquecíveis da literatura, a jumentinha Modestine.
Uma verdadeira poética da forma, destilada com vagar e profundidade por um de seus mais notáveis praticantes.
O Manuel Bandeira dos EUA, cuja simplicidade esmeradamente construída alça voo ainda mais largo em verso.
Uma justa e farta homenagem a um dos mais importantes críticos e professores de nossas letras.
Daquelas histórias que não mais se escrevem, ideal para se ouvir ao pé do fogo em um ano pandêmico.
Os possíveis caminhos da crítica literária amplificada pela computação e pelos métodos das hard sciences, da pena de um dos mais instigantes críticos vivos.
Uma antologia de peso de um dos mais prolíficos e notáveis poetas brasileiros das últimas décadas.
Uma pequena joia que revitaliza a coroa de sonetos, elevando-a ao trágico cotidiano.
Um clássico esquecido que se dispõe a encarar o romance como arte, desvelando com esmero seus mecanismos construtivos.
As melhores leituras de 2020 (sem qualquer ordem particular)
Por Pedro Belo Clara
– Felicity, de Mary Oliver.
Uma autora norte-americana,
vencedora de um Pulitzer, que tarda em ter a sua obra traduzida para português.
Este livro em particular é o último de originais que a célebre poetisa
publicou. Decorria o ano de 2015, ainda quatro anos antes da sua morte. De linguagem leve e subtil, pleno
duma luminosidade muito própria, cada poema amiúde ergue-se como uma sentida
celebração do mundo e dos seus fenómenos, sendo que o principal destaque é
dado, como lhe é usual, aos animais e à natureza em geral. Ainda assim, elevando
sempre a vida e suas manifestações a patamares cintilantes, deparamo-nos com
certas reflexões sobre o quotidiano e o comportamento humano, seja na relação mais
íntima como na mais banal, num discurso poético entremeado por uma ironia inteligentemente
refinada. Um livro interessantíssimo para
quem se atrai por tais temáticas, nascido de um olhar atento e de um coração
aberto ao mundo, executado com leveza e rigor – combinação de frágil equilíbrio,
tão árdua de se conjugar habilmente.
– Uma Noite de Insónia, de Wislawa
Szymborska. (Antologia organizada por Teresa F. Swiatkiewicz.)
Uma louvável iniciativa da
Manufactura, que decidiu reunir em edição bilingue os poemas de índole
ecológica escritos pela famosa autora polaca. O volume é breve, mas intenso,
combinando em grande harmonia a arte escrita e a arte desenhada. Sobre os
poemas em si, observamos uma activa defesa dos direitos e da dignidade dos
animais por meio da denúncia do Homem, mais concretamente o modo como este
sempre os tratou, deixando implícita uma crítica à sua soberba enquanto ser que
se julga dono de um palco no qual também participa. Uma obra que permite, assim
de modo condensado, conhecer uma outra faceta da poetisa laureada com o Nobel
em 1996, talvez uma que amiúde tende a ficar esquecida no imaginário dos seus
leitores ou nas apreciações dos seus críticos mais habituais.
– Entre Céu e Terra, de Du Fu. (Versões
de Manuel Silva-Terra.)
Uma edição da Licorne, que já
brindou o leitor português, na sua colecção, com outros trabalhos de poetas
chineses de tempos remotos. A montra deste volume, apesar de
relativamente breve, é variada e permite sem qualquer sensação de falha ou
escassez entrar profundamente no universo deste talentoso poeta que viveu no
século VIII da nossa era, no seio de um período bastante conturbado
politicamente. Quanto à obra que deixou, versando sobre a vida na corte, as
crises políticas, as amizades, a natureza, o isolamento e a pobreza, a crítica
tem sido unânime: um dos maiores que a China já conheceu.
– Memórias De Um Gato Viajante,
de Hiro Arikawa.
Um romance enternecedor que tem
tido um sucesso assinalável um pouco por todo o mundo, para espanto da sua
autora. A obra tem a particularidade de
inverter as posições de um tema algo recorrente: a relação dos animais com os
Homens, no caso um gato de rua e o rapaz que o adopta. O mesmo é dizer: embora
os capítulos alternem de narrador, onde o próprio gato também tem a sua vez,
todo o enredo leva-nos mais para o contacto com os sentimentos do animal do que
propriamente do seu amigo humano. Afinal, os Homens tendem a viver mais tempo,
a reunir mais vivências, até a partilhar a vida com mais animais ao longo das
suas existências. Mas para o que para aqui importa, basta saber que juntos irão
realizar uma viagem por quase todo o Japão, por pontos importantes na história
de vida do seu dono, que oculta um segredo difícil de contar. É um trabalho muito bem
conseguido, de grande sensibilidade e beleza, que tanto nos oferece gargalhadas
como nos comove no seu final – embora se vá tornando óbvio, página a página – ;
um livro de sentimentos, de memória e de relações. Em suma, um livro de vida.
– Poemas de Bai Juyi. (Selecção e
tradução de António Graça de Abreu.)
Uma excelente edição levada a cabo
pelo Instituto Cultural de Macau em 1991, apresentando com grande propriedade
ao leitor português um dos maiores poetas chineses de sempre. Pessoalmente,
apenas conhecia os seus trabalhos de antologias ou das versões inglesas, que
efectivamente são variadas – e das quais tantas vezes me servi nas traduções
que já realizei. Assim, compreender-se-á como a descoberta deste volume,
composto por alguém bastante competente na matéria, foi uma daquelas pequenas
grandes coisas capazes de despertar um sorriso no coração de quem estima tal
literatura. Bai Juyi desempenhou papéis
políticos de renome, mas nunca virou as costas aos mais necessitados. Um poeta,
assim, bastante crítico do seu tempo. O trabalho que deixou, pautado por tal
característica, recebeu influências das filosofias budistas e confucianas, pelo
que não se estranha o isolamento em que mergulhou nos últimos anos de vida, em
comunhão com a simplicidade do mundo natural. Conta a lenda que tinha a
particularidade de ler os seus poemas à sua cozinheira, gente do povo, sem
qualquer instrução, e de pronto os rasgar se estes não fossem pela sua ouvinte
devidamente compreendidos. Prova, portanto, da sua intenção em produzir uma
poesia simples e directa – desejo ao qual estas traduções são seguramente
fiéis.
– I Heard God Laughing – Poemas
de Hafiz. (Selecção e tradução por Daniel Ladinsky.)
Mais um autor que, infelizmente,
tarda em aparecer traduzido para português. Hafiz é dos maiores poetas
místicos que a humanidade já conheceu. De origem persa, terá certamente sido
aquilo a que no oriente chamam de “homem iluminado”. Os seus poemas destacam-se
pelo humor, leveza e profundidade das suas mensagens, auxiliando os leitores a
mergulhar em si mesmos e a reconhecer a verdade que os habita. A obra é uma mera antologia, e
muito breve até, mas oferece com propriedade o principal da luminosa sabedoria de
um peculiar poeta do século XIV, ainda hoje muito amado no Irão.
– Fahrenheit 451, de Ray
Bradbury.
Deixo para o fim o revisitar dum
dos maiores clássicos do universo da ficção científica. Obra de cariz distópico, tem
atravessado e marcado gerações. Impressionando desde logo pela actualidade da
sua mensagem, constitui acima de tudo um aviso sério aos nossos comportamentos
como uma sociedade cada vez mais entregue aos devaneios das suas próprias
distrações, um veneno capaz de adormecer a humanidade latente em cada um de
nós. (No tempo em que foi escrita, veja-se, as redes sociais não passavam duma
mera miragem.) Centrada num tempo futuro onde,
imagine-se, os livros são proibidos, deixa-nos com diversas questões que
qualquer cidadão preocupado e comprometido com o desejo dum futuro mais
luminoso deverá de boamente considerar. Assim sendo, dir-se-á um título
indispensável em qualquer biblioteca.
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