Pequeno-burgueses, de Maksim Górki
Por Joaquim Serra
Quem construiu Tebas, a das sete
portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que
transportaram as pedras?
“Perguntas de um Operário
Letrado”, Bertolt Brecht.
Maksim Górki. Foto: General Photographic Agency / Getty |
Dois nomes, Anton Tchekhov e Maksim
Górki, marcariam de forma diversa a literatura russa da passagem do século. De
um lado, o escritor contido, já inovador do gênero conto e da dramaturgia, dono
de uma prosa concisa “também testemunha por excelência, sutil, e aparentemente
imparcial, de uma época sombria, a Rússia das duas últimas décadas do século
XIX” (Angelides, 2002, p. 27). Do outro lado, Górki surge com um evidente
sucesso nos fins dos anos 1890, com suas personagens saídas do submundo,
vigorosas e obstinadas, que marcariam definitivamente o imaginário russo e
abririam espaço para uma nova forma de realismo nos anos seguintes.
Os dois escritores mantiveram um
diálogo epistolar intenso. Górki mostra grande entusiasmo pela obra de Tchekhov
e revela a insegurança de um jovem escritor vindo da classe trabalhadora, com
leituras e formação desordenadas. Já Tchekhov mostra a sensibilidade de um
autor já consagrado que toma o jovem Gorki como aluno. Escreve Tchekhov com
relação à falta de contenção nas descrições de Górki: “um dos únicos defeitos:
falta de contenção, falta de graciosidade. Graciosidade é quando, numa
determinada ação, alguém utiliza o mínimo de movimentos” (Angelides, 2002, p. 31),
para o estilo prolixo de Górki, seria difícil chegar nessa fórmula. Apesar
disso, as descrições de Górki agradavam ao grande público. Tchekhov ainda recomenda
que o escritor saia de Níjni-Nóvgorod e vá para as grandes cidades, como um
exame, para receber o influxo das conversas das grandes cidades e de seus
trabalhadores.
A sua primeira peça, Pequeno-burgueses,
está “nitidamente marcada pela dramaturgia tchekhoviana. A pouca ação visível,
as longas pausas significativas, os monólogos paralelos, que no teatro de
Tchekhov refletem a estagnação da vida na província, na peça de Górki acentuam
a tragédia miúda do cotidiano pequeno burguês. Mas, nesse mundo estagnado,
surgem personagens tipicamente gorkianas, como o passarinheiro com sua fala
pitoresca, o cantor-filósofo, muito próximo dos vagabundos dos primeiros
contos, e algumas personagens “positivas”, cheias de vitalidade, entre as quais
se destaca Nil, o operário sadio, que exalta o trabalho e tem consciência de
sua força” (Angelides, 2002, p. 36).
Até 1905, não havia na Rússia
liberdade de organização política ou expressão. A oposição, a intelligentsia,
não era reconhecida como oposição política, mas dissidência que era perseguida
e, muitas vezes, exilada e morta. A elite se servia dos avanços e da entrada do
capitalismo como instrumento de manutenção de sua força, sem querer abrir mão
do que essa nova prática econômica exigia para a nova classe trabalhadora que
surgia. “Assim, o influxo do capitalismo na Rússia, apesar do progresso
proporcionado, não foi capaz de resolver os problemas acumulados e acentuou
contrastes no processo de desenvolvimento econômico em curso. Em espaços
contíguos, era comum constatar a existência do que havia de mais avançado e de
mais atrasado no mundo de então” (Reis Filho, 2003, p. 32).
A classe operaria aumentava
exponencialmente desde a década de 1890 e é sobre esses novos trabalhados que
Górki fala em sua peça Pequeno-burgueses. Influenciado pelas publicações
clandestinas distribuídas pelo grupo Emancipação do Trabalho, fundado em 1883,
Górki entra em contato com textos e ideias marxistas, muitas delas refletidas
em seu personagem Nil. Os dissidentes do regime incorporaram o marxismo
evolucionista-determinista que estava em voga no ambiente intelectual
internacional. Por isso, “o socialismo na Rússia não mais se basearia, como
pensavam os populistas, no campesinato, nas tradições rurais igualitárias e nas
comunas agrárias, mas no progresso urbano, na classe operária emergente, na
fábrica” (Reis Filho, 2003, p. 36). Nil é essa figura, o operário, filho adotivo
de Bessiêmenov, que se orgulha de sua função social através do trabalho.
Ao contrário das personagens
tchekhovianas, do seu Vânia sem perspectiva de mundo, do seu Trepliov
acentuadamente trágico, as personagens mais significativas de Górki têm um
ideal claro de ação e não têm discursos vazios. Isso contribuirá muito para a
criação do novo homem soviético, como é o caso da figura central de Pequeno-burgueses.
Nil é a antítese de todas as personagens tchekhovianas, ele se orgulha de sua
origem, e é muito diferente também das personagens de Gógol, que almejam cargos
dentro de um esquema evidente de troca de favores e corrupção.
Sobre sua poética, Górki diz:
“chegou o tempo em que o heroísmo é necessário: todos querem algo estimulante,
luminoso [...], algo que não se pareça com a vida, mas que lhe seja superior,
melhor e mais belo. É absolutamente necessário que a literatura atual comece a
embelezar um pouco a vida e, quando isto acontecer, a vida se tornará bela
[...]” (ANGELIDES, 2002, p.41) Mas há um problema apontado pela crítica com
relação a essa tentativa de superação do realismo. Isso se acentua até tornar
sua literatura “muitas vezes tendenciosa e panfletária, pois nem sempre a
mensagem do autor consegue ser perfeitamente fundida no desenvolvimento da
narrativa”. (ANGELIDES, 2002, p. 42). É interessante notar que o discurso de Górki,
muitas vezes (e acontece também com as falas de Nil), se descola da trama
interna da peça, gerando uma voz solta, a voz do autor. Nil é tão correto e
desejoso que soa por vezes artificial, ao contrário de Tatiana, personagem mais
tchekhoviana, deslocada e sofrida. Já nas falas iniciais de Tatiana se percebe
um incômodo com a representação literária da época: “Eu fico é irritada com
essa história toda! Essa moça não existiu! Nem essa fazenda, nem o rio, nem a
lua, nada disso existiu! É tudo invenção. Nos livros, nunca descrevem a vida
como ela realmente é… A minha ou a sua, por exemplo…” (Górki, 2015, p. 15).
A faceta irônica da peça fica para
o vendedor de pássaros Pertchíkhin e o corrosivo cantor-filósofo Tiêteriev. A
briga de gerações está clara desde as primeiras cenas, e é evidente também para
qual lado a peça se encaminha. A certa altura, assistindo a uma briga entre
Bessiêmenov, Tatiana e Piôtr, diz o pequeno comerciante Pertchíkhin: “Eu
acredito no seguinte: se não houvesse gente velha, não haveria estupidez… Um
velho pensando é como madeira molhada queimando: mais fumaça do que fogo…” (Górki,
2015, p. 34).
Já o pensionista Tiêteriev encarna
uma ironia que também dá tragicidade à sua própria personalidade, como se ele
mesmo tivesse um dia pensado diferente da maioria, mas, sem sucesso, tivesse de
se recolher numa vida não desejada. Com sua disposição a sempre perturbar o
ambiente, o enfant terrible não cansa de beber, chamar de pequeno-burguesa as
atitudes mesquinhas, e expor os mecanismos internos das relações de dentro da
casa. Tiêteriev não só comenta as cenas, mas deixa a peça mais leve, já que as
cenas (a peça é feita de cortes) são por vezes repetitivas dentro do ambiente
doméstico e, em seu conjunto, subjaz uma tese gorkiana.
A busca de identidade, nessa fase
de transição da economia na Rússia, é posta na peça através de Piôtr: “Eu acho
que quando um francês ou um inglês diz “França” ou “Inglaterra”, ele
necessariamente quer dizer com estas palavras algo real, tangível… algo que lhe
é compreensível… Já eu digo ‘Rússia’ e sinto que para mim esse é um som vazio.
E eu não tenho nenhuma possibilidade de atribuir a esta palavra qualquer conteúdo
preciso que seja” (Górki, 2015, p. 34). A peça de Górki constrói um painel da
vida russa de então. De um lado as questões sociais pulsam, mas não encontram
vácuo na atmosfera autocrática exercida pelo tsar e reforçadas pela figura do
pai, Bessiêmenov.
O final da peça parece dar uma
resposta à pergunta há muito buscada pelos russos: Que fazer?1 É preciso se
desvencilhar do passado: “A vida segue em frente, velho. Quem não consegue
acompanhá-la acaba ficando sozinho…” (Górki, 2015, p. 151). A fala anunciaria o
mito do novo homem pós-revolucionário, ao mesmo tempo, vê-se nela uma das
questões apontadas por Tchekhov em sua correspondência acerca da poética de
Górki: o moralismo prolixo existente nas personagens de Pequeno-burgueses.
Górki seria tão influente que
abriria uma nova fase no Teatro de Arte de Moscou, o drama social, e sua
memória perduraria no imaginário soviético a ponto de a cidade de Níjni-Nóvgorod
ter seu nome alterado para Górki durante a URSS. No polifônico O fim do homem
soviético, de Svetlana Aleksiévitch, uma das entrevistadas revela, já depois do
fim da União Soviética: “Quem foi que fez a revolução de 1917? Eu me lembro
daquele brilho nos olhos das pessoas no início da perestroika, nunca vou me
esquecer daquilo. Estavam dispostos a linchar os comunistas, deportar...
Largavam nos contêineres de lixo livros de Maiakóvski, de Górki... Mandavam
para reciclagem as obras de Lênin. Eu recolhia... pois é! Isso mesmo! Eu não
vou renegar nada! Não vou me envergonhar de nada! Eu não troquei a cor vermelha
pela cinza” (Aleksiévitch, 2013, p. 62).
Vale um breve comentário acerca da
estética do realismo socialista que viria depois da Revolução de 1917. A URSS
seria movida pelo cientificismo e positivismo do século XIX e, agora, não só o
novo mundo, mas também o novo homem deveria vir à luz. O homem de ação, assim
como Nil, seria o protagonista de várias histórias, mas, no mesmo espaço,
conjugaria também um outro formato narrativo que criticava a impossibilidade
desse homem e a impossibilidade desse mundo. Essa literatura dissidente,
surgida muitas vezes do exílio, provou-se ser muito maior em atributos
artísticos e alegorias. Das diferenças entre elas se falará num próximo texto.
Notas:
¹ Что делать?, título do romance
de Nikolai Tchernichevski, de 1862, e que serviria de inspiração para o livro
de Lênin de mesmo nome publicado em 1902.
Referências
ANGELIDES, Sophia. Carta e literatura: Correspondência entre Tchekhov e Górki. São Paulo: Edusp, 2002.
ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Fim do
Homem Soviético. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
GÓRKI, Maksim. Pequeno-burgueses.
São Paulo: Hedra, 2015
REIS FILHO, Daniel Aarão. As
revoluções russas e o socialismo soviético. São Paulo: Unesp, 2003.
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