Paul Celan: poeta e personagem de ficção
Por José Aníbal Campos
Paul Celan. Foto: Michael Wolgensinger |
Não é incomum que um escritor
famoso se torne personagem de um romance. Mas o fato de se tornar parte de uma
obra de ficção quando ainda é um desconhecido do grande público e um punhado de
seus poemas circulam apenas entre um pequeno grupo de amigos e pequenos
editores, é um indício do fascínio que, independentemente de sua obra, emana de
sua personalidade.
Este é o caso de Paul Celan,
considerado por alguns o poeta de língua alemã mais influente do século XX.
Sobre essa personalidade cativante, especialmente em seus primeiros anos como
poeta na Romênia, o crítico literário romeno Ovid nos deu um primeiro
testemunho. Crohmălniceanu, conta que Celan fez sua aparição na cena literária
de Bucareste como um beau ténébreux. Uma figura luminosa e sombria, que
incita a paixão e, por vezes, mergulha em abismos aterradores, que seduz e ao
mesmo tempo assusta.
Com Celan, há um caso singular:
sua obra e sua figura foram monopolizadas por tanto tempo pelos estudos
filológicos ou filosóficos, que sua humanidade esteve um tanto cativa entre os
fólios de várias interpretações sisudas. Sua realidade palpável foi quase
ficcionalizada pelas teorias que cercam seu trabalho. Só há relativamente há pouco
tempo começam a se abrir arquivos e a se publicar compilações de material
biográfico (cartas, testemunhos, diários de terceiros), que sem dúvida
proporcionam (e ainda proporcionarão) uma imagem mais completa e fiável sobre
poeta e a sua obra.
Sua vida, por si só, tem muito de romanesco.
Por mais banal que possa parecer, quase se poderia dizer que nele há
experiências e acontecimentos concretos que o associam ao personagem ficcional
mais importante de nossa cultura: Dom Quixote. Só que, no caso de Celan, essa
relação é tão perturbadora e terrível quanto a história do século em que ele
viveu, o XX. Ele também, desde a mais tenra juventude, está imbuído de ideais
de justiça. Ele também é chamado a sair ao mundo, depois de uma catástrofe
vital, para colocar uma certa ordem (poética, no caso). Ele também fracassa.
Mas, além de comparar aqui um personagem fictício com um real, em uma relação
Celan-Quixote um investimento que deixa os cabelos em pé não pode ser
esquecido: enquanto um, o personagem fictício, perdeu a razão desde o início, e
no final, num piscar de olhos ao leitor, parece recuperá-la, a outra, a
verdadeira, sobrevive são à mais terrível catástrofe humana do século XX e
perde a cabeça no confronto com um mundo real implacável e mesquinho, do qual
ele se despede no mais sombrio anonimato.
Mas existe, com efeito, um Paul
Celan personagem de romance que chega até nós muito cedo, muito antes de seus
sucessos como poeta. Em outubro de 1948, em uma reunião internacional de
escritores realizada na Abadia de Royaumont, a escritora alemã Marie Luise
Kaschnitz conheceu o jovem recém-chegado da Romênia a Paris (após uma estada de
quase sete meses em Viena). Uma evocação desse encontro ficará num conto
intitulado “O jogo” (1950), em que fala de um forasteiro, um “apátrida de olhar
sereno e melancólico” que implora para que não saia ainda: “Espere que eu leia
em voz alta minha Fuga da morte!”, diz ele.
Esse apelo na ficção foi ouvido na
vida real: Marie Luise Kaschnitz não era apenas a encarregada de ler a Laudatorin
dez anos depois, quando Celan recebeu o Prêmio Büchner (o grande prêmio das
letras alemãs), mas ela manteve a relação com o poeta (não sem conflito) até o
fim de sua vida, quando muitos já o evitavam.
Um ano depois, em 1951, o romance Unvollendete
Symphonie, do escritor judeu austríaco Hans Weigel, apareceu em Viena.
Quando Paul Celan chegou a Viena em meados de dezembro de 1947, ele logo
começou a se relacionar com a então jovem cena literária e artística da cidade
no período do pós-guerra. Weigel é uma das figuras proeminentes nesses círculos
de intelectuais. Em março de 1948, em um encontro na casa do pintor surrealista
Edgar Jené, Celan conhece Weigel e sua amante na época: uma jovem estudante da
Caríntia que atende pelo nome de Ingeborg Bachmann.
A partir desse momento, numa
rápida transição semelhante a um corte de montagem de um filme, Celan e
Bachmann iniciam uma relação vertiginosa com implicações importantes para o seu
trabalho, que continuará, com altos e baixos, até às respectivas mortes ocorridas
quase simultaneamente, com uma diferença de apenas três anos: a primeira em
1970, em Paris; a segunda em Roma, em 1973. Dos cinquenta e seis poemas
reunidos no primeiro livro de Celan publicado na Alemanha, Papoula e memória
(título retirado do poema “Corona”, que já contém todos os aspectos que
marcarão a relação conflituosa entre os dois ), vinte e quatro trazem a
epígrafe “f. d.” ou “u. F. d.” (für Dich ou Und für
Dich: “Para você”) e são dedicados à Bachmann. Mas seria ela quem ergueria
o maior monumento literário a Paul Celan ao longo de toda a sua obra. Quase não
existe uma linha sua onde o traço da passagem pela vida do poeta romeno não possa
ser descoberto. Ao ponto de, ao saber de sua morte, integrar em seu romance já
terminado Malina a passagem de um pesadelo em que escreve: “Minha vida
está terminando, porque ele se afogou no rio enquanto o transportavam, e ele era
minha vida. Eu o amava mais do que minha vida.” Esse “enquanto o transportavam”
(auf dem Transport) resume na ficção de uma forma magistral, com três
palavras, o pesadelo vital do sobrevivente do Holocausto. Es war Mord
(“Foi assassinato”), conclui, de forma graficamente lapidar e verdadeira, o
romance Malina.
Weigel, por sua vez, adota a
perspectiva do amante rejeitado em seu romance autobiográfico. Ele faz isso veladamente,
mas entre as muitas opções que precisava para recriar a irrupção de Paul Celan
na cena literária vienense, ele opta pela difamação. Ele se esconde pelas
costas agachando-se atrás de um narrador em primeira pessoa que o leitor
informado identifica imediatamente com Ingeborg Bachmann. Valeria a pena ―
se ainda não foi feito ― reunir em uma antologia as estratégias literárias com que
amantes descontentes de todos os sexos, épocas, línguas e lugares refletiram a
dor ou a raiva quando seus parceiros os enganaram ou os abandonaram por um novo
relacionamento. A verdade é que Weigel segue o caminho menos honrado.
Descrições negativas daquele “outro homem” que identificamos com Celan abundam
na Unvollendete Symphonie. “Desconsiderado”, diz em alguma passagem. Em
outro trecho, também ataca sua obra: “Um tipo meio maluco, uma ovelha negra, um
homem que causa rejeição por seu comportamento pouco convencional, extremista
em sua forma de contestar tudo o que existe e se reconhece, autor de uma poesia
e uma prosa muito pessoal e caprichosa que escreve com descuido, que lê em voz
alta num ou noutro lugar e sai por aí distribuindo páginas soltas.”
Há, porém, outro romance em que
dois amigos austríacos de Paul Celan (tão próximos quanto diferentes no
trabalho e na atitude vital) deixam boas recordações dos meses que o romeno
passou naquela capital, entre 17 de dezembro de 1947 e 26 ou 27 de junho de
1948. Em Internationale Zone (1953), Milo Dor e Reinhardt Federmann,
talvez em resposta velada à imagem distorcida oferecida por Weigel, criam o
personagem de Petre Margul (uma fusão dos nomes de dois amigos romenos do poeta,
Petre Solomon e Alfred Margul-Sperber) e o colocam no meio de uma trama que
recria a atmosfera que prevalecia na capital austríaca quando ainda estava sob
o controle das quatro forças de ocupação. Um ambiente dominado pela destruição,
fome e mercado negro, espionagem, sequestro de pessoas de interesse político
para os soviéticos e, sobretudo, o início da Guerra Fria. A atmosfera e Internationale
Zone é muito parecida com a de um clássico filme noir: O terceiro
homem, de um roteiro de Graham Greene e duas performances memoráveis de
Joseph Cotten e Orson Welles.
Com o passar dos anos, outros
textos em prosa retomaram a obra ou a figura de Celan e a integraram, de uma
forma ou de outra, em seus enredos. Autores como Rolf Schroers, Heinz Piontek
ou Hermann Lenz se apropriaram de sua figura ou de seus textos (ou ambos) e os
incorporaram em suas próprias obras. Por volta de 1948, quando Celan ainda
estava em Viena, já caminhava pelas ruas da cidade destruída, de mãos dadas com
sua mãe tirânica, uma menina de apenas dois anos que, com o tempo, ganharia o
Prêmio Nobel de Literatura. Sim, também Elfriede Jelinek dá um papel a Paul
Celan em uma de suas peças, Nos Alpes, onde o personagem que interpreta
o romeno declama fragmentos de Conversa na montanha.
Enquanto isso, Celan saltou para
as páginas de uma história em quadrinhos que recria literariamente sua vida: em
Fuga de la muerte, o artista espanhol Fidel Martínez Nadal fez um
trabalho pioneiro ao nos devolver, em ilustrações que muito devem as gravuras
do expressionismo alemão, toda a humanidade deste inesgotável poeta.
* Este texto é a tradução de “Paul
Celan: poeta y personaje de ficción” publicado aqui, em La Jornada.
Comentários