Para o meu coração num domingo, de Wisława Szymborska
Por Pedro Fernandes
Wislawa Szymborska. Foto: Judyta Papp |
Há uma variedade de possíveis ao
alcance do poeta e todos eles materiais para um poema. Todo poema, mesmo que
rarefeito, ainda é um acontecimento. Mas, a ruptura total com uma espécie de
sagração da poesia foi, sem dúvidas, a mais importante das revoluções criativas
colocada em curso desde sempre. Agora, se o mundo como um reino infinito, do
ínfimo ao transcendente, dos materiais visíveis aos imaginativos, pode
significar a grande conquista do poeta, ampliaram-se os desafios. Quer dizer,
nada se tornou mais fácil; quanto mais a criação se aproxima do mundo material
maior se revela a sua complexidade. Afinal, o poético nunca é pura
transferência de um mundo para outro.
Tudo pode resultar num poema, mas a
sua autonomia exige do criador certo domínio que consiste basicamente no
convívio ao natural com sua própria técnica. Não se trata de saber os temas
possíveis ao poema e sua organização formal e estrutural e sim de estabelecer o
domínio de uma voz capaz de, numa maneira singular, se fazer, ora integrada ora
dissonante com outras vozes, colocar em movimento este mundo outro feito dentro
e fora do mundo material acessado pelos nossos sentidos.
Em Para o meu coração num
domingo, antologia brasileira que reúne uma terceira parte da pequena e
robusta poesia de Wisława Szymborska, abriga-se um poema cujo título é também
seu primeiro verso e que seu movimento se aproxima de maneira similar ao que
dissemos até agora. “Na verdade, todo poema / poderia ser intitulado Instante”,
começa o eu-poético. A constatação se desenvolve para uma enumeração de coisas possíveis
num instante sucedida por outra série designativa e procedimental, esta interrompida
ao acaso, como se, abruptamente, a voz se calasse, arrastando-nos para um vazio
provocativo e mesmo suspeito, como se lançasse a interrogação fatal: qual a
técnica possível à feitura do poema?
A resposta consiste no grande
segredo que apenas o poeta é capaz de decifrá-lo. E decifrando, o enigma outra
vez se fecha, porque não se trata de uma resposta dominada pela estreiteza conceitual.
A poeta polonesa chamava que só é possível acessar a grande interrogação dessa
esfinge chamada poesia com talento ― um termo um tanto abstrato e vazio, mas
que contém no seu interior todo o mistério da criação. No sentido praticado por
Wisława Szymborska, bem poderíamos designá-lo como engenho, habilidade,
faculdade; os sentidos se ampliam até alcançar a situação segundo a qual
o talento é um apenas o sopro bafejado pelo destino na origem imemorial da
nossa existência; aquilo que Carlos Drummond de Andrade formulou tão bem no seu
“Poema de sete faces”: “Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na
sombra / disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.”
O talento da poeta Prêmio Nobel de
Literatura, bem conhecemos, consiste de uma habilidosa capacidade que diríamos fotográfica, de fazer
o poema objeto que tensiona o instante e o eterno, como se uma polaroide capturada
pelo olho sensível para ver e não apenas olhar; isto porque o trato poético se
manifesta como um processo de conhecimento do que se olha, nunca é puro registro.
Isso significa dizer que a poesia de Szymborska jamais se pode designar pela
expressão contemplativa. O ato de ver anula interior e exterior e o que se
manifesta é puramente o que diz o poema. O poema é a plenitude do sentido: “basta
que ao alcance do olhar / o autor coloque montanhas provisórias / e vales
efêmeros”, diz numa das séries no segundo conjunto numerativo de “Na verdade,
todo poema”.
Atentamente reparamos nestas
“montanhas provisórias e vales efêmeros” que a poeta se situa no interregno das
dimensões que habitamos e nos habita: a realidade e o sonho. O eu-poético do
intuito “A realidade” tece suas conjecturas sobre o termo título do poema; segundo
ele, “A realidade não esvanece / como esvanecem os sonhos.”, “A realidade
significa realidade / e isso é um mistério maior.”, “A realidade se abre
sozinha / e não se deixa fechar.”, “A realidade não precisa temer o esquecimento.”,
“Dela não há como fugir / porque em toda fuga ela nos acompanha.” A realidade é
assim força indelével, natureza autônoma, restrita, de certo modo fatalista.
Mas, “Não são os sonhos que são loucos / louca é a realidade”.
O sonho, expressão que
curiosamente domina extensa parte do poema, o sonho pode ser interrompido por
qualquer coisa, é vago, ambíguo, por isso passível de múltiplas explicações,
“Para os sonhos há chaves.”, “Nos sonhos ainda vive / o nosso recém-falecido. /
Até goza de boa saúde / e recupera a juventude.”, efêmeros, “permitem / que a
memória os descarte facilmente.” Nesse impasse, as duas dimensões se
interpenetram e são fundamentais para nossa condição, mesmo que uma parta de
nós e a outra se determine fora de nós. Quando a realidade predomina sobre o
sonho ―
como se verifica em “O sonho horrível do poeta” ― o que resta é um pesadelo
contínuo, o mundo pobre da técnica, cujo tempo “é sempre como o do relógio” e
não há poesia, filosofia, religião: “Admita que nada pior / pode suceder a um
poeta. / E depois, nada melhor / do que acordar depressa.”
Nesta antologia, o que se verifica
são poemas que privilegiam um diálogo entre sonho e realidade, intercalando-se,
os temas conhecidos da poesia de Wisława Szymborska: a memória, o cotidiano
íntimo feito de pequenas epifanias, do anedotário popular e de uma consciência
vigorosa sobre a história e o desconcerto do mundo. Se em alguns poemas predominam
certo riso extraído do tratamento com a própria linguagem ―
feita em modo de colagem ―, noutros é a expressão soturna e impiedosa sobre a
fragilidade da nossa memória, capaz de apenas olhar para o passado com uma cruel
displicência e a relativização faceira e descarada, tão em moda nesse tempo.
Noutro poema em que reavalia o
império da realidade ― “A realidade exige” ―, o eu-poético observa como a humanidade
se renova em toda parte do mundo, seguindo certo curso natural da vida e do
qual a natureza e muitas vezes nós mesmos não alcançamos escapar; a este
movimento, o eu-poético imprime toda nossa facilidade para o esquecimento mesmo
quando pisamos os lugares um dia desfeitos em profunda dor: “No lugar de
Hiroshima, / de novo Hiroshima / produzindo muitas coisas / de uso cotidiano”.
O imperativo da “vida continua” encontra
um vigoroso sentido nos tempos soturnos, quando as mortes são pura estatística e
é preciso pensar no trabalho, na economia, que o país não pare: “O que escorre
é sangue, que seca rápido / e o que corre são alguns rios, algumas nuvens.”
Mas, se ronda um fatalismo, este é humano, e outra vez ainda, o eu-poético
retorna à ordem natural do tempo para confirmar que “Não é desprovido de charme
este mundo terrível, / nem de manhãs / pelas quais vale a pena acordar.”
É certeira a escolha dos antologistas
Regina Przybycien e Gabriel Borwski do poema-título desta reunião de poemas de
Wisława Szymborska. É esta uma ocasião, quando o eu-poético volta-se para o
milagre da existência e confirma a singularidade do poder e da força de estar
vivos, afinal, apenas assim, é possível buscar compreender os variados sentidos
do mundo, incluindo o próprio ato de viver. Essa confirmação, aliás, pode ser
tomada como uma síntese da poética de Szymborska. “Para o meu coração num
domingo” guarda uma força excepcional; o eu-poético, despido de quaisquer
transcendências, celebra a pulsão biológica da vida, esta que tanto se esforça
para que possamos gozar os prazeres mais simples, como o descanso de domingo. Quer
dizer, este livro amplia nosso contato com uma poeta que soube matizar as
pequenas coisas no interior de uma complexidade própria e nada simples.
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