O verdadeiro criador de tudo, de Miguel Nicolelis
Por Davi Lopes Villaça
A ciência teve, nos tempos
modernos, um papel importante no processo de desmitologização e dessacralização
do mundo. Ela nos mostrou que o homem não ocupa o centro do universo e que a
natureza, essa entidade impessoal, se desenvolve de acordo com leis próprias,
insensível ao destino de suas crias. Foi um duro golpe para o nosso ego, que se
amparava na ideia de que éramos os protagonistas da história universal ou, pelo
menos, de que os astros não eram de todo indiferentes às nossas façanhas. A
perda dessas ilusões contribuiu também para a ruptura de um vínculo precioso
com o mundo exterior, outrora garantido pelo simbolismo de mitos e religiões,
que determinavam nossa interação com o que acreditávamos ser algum tipo de
ordem natural e divina ― mas que era, acima de tudo, uma ordem humana, engendrada
em nós mesmos para dar forma mais compreensível à realidade. Depois, quanto
mais passávamos a conhecer o mundo, menos familiar ele se tornava para nós.
Entre o interior e o exterior, subjetivo e objetivo, “imaginário” e “real”,
abriu-se um abismo difícil de transpor, que só loucos ou fanáticos seriam
capazes de ignorar. Mas a ciência não foi a única e, provavelmente, nem a
principal responsável por esse processo. Ela progrediu paralelamente ao
desenvolvimento da sociedade capitalista, na qual a adequação da vida ao ritmo
prosaico das relações econômicas parecia tornar a experiência humana cada vez
mais artificial e destituída de sentido. O homem, que já não era mais o centro
do universo, deixava também de ser o centro de sua própria existência,
convertendo-se em engrenagem de um mecanismo que ele mesmo criara.
Em seu novo livro, O verdadeiro
criador de tudo: como o cérebro humano esculpiu o universo como nós o conhecemos,
lançado em 2020 pela editora Crítica, o neurocientista Miguel Nicolelis
ressalta a importância do ponto de vista humano na compreensão do mundo em que
vivemos. Mais do que isso, enfatiza que não temos acesso a outra realidade que
não aquela concebida por nós mesmos ― ou antes, por nossos cérebros. Depois
de ter chutado o homem para longe do centro do universo, a ciência, ou pelo
menos um de seus ramos mais importantes na atualidade, reivindica para ele um
lugar muito mais fundamental ― na verdade um lugar não muito
diferente daquele que os filósofos e artistas da Renascença lhe haviam
conferido. Nicolelis parte da ideia de que, embora um universo geograficamente
antropocêntrico continue sendo uma inverossimilhança, uma cosmologia
“cerebrocêntrica” é o mais próximo que jamais poderemos chegar da realidade.
Enquanto concebemos fórmulas que se propõem a explicar as leis gerais do mundo
à nossa volta, frequentemente ignoramos que esse mesmo mundo, tal como o vemos,
escutamos e tocamos, já é no fundo uma representação, fabricada por nosso
cérebro para que nossos corpos possam navegar numa realidade que não conhecemos.
Em outras palavras: o mundo supostamente objetivo que as ciências tentam
explicar, de cuja observação extraímos a matemática e as leis da física, nada
mais é do que uma projeção daquele outro, do qual nosso cérebro absorve
“informação potencial”, produzindo a partir dela nossas experiências sensoriais
e nossas memórias. Platão estava certo ao afirmar que vivemos numa caverna,
tomando por verdades as sombras que o fogo projeta nas paredes; mas se enganava
quanto à possibilidade de nos libertarmos dessa prisão. No livro Nicolelis
reproduz um interessante diálogo entre o físico Albert Einstein e o poeta e
filósofo Rabindranath Tagore. Enquanto o primeiro defende a ideia de uma
verdade objetiva, extra-humana, o segundo afirma que nada do que existe para
nós pode ser concebido fora de nós. Nicolelis, outrora um defensor da posição
do físico, acaba por concordar com o poeta: para o bem e para o mal, estamos
fadados a viver num universo exclusivamente humano. Isso de modo algum
desqualifica a capacidade da ciência de interpretar os fenômenos naturais;
pois, se por um lado ela está fadada a lidar com um mundo de ilusões (como, aliás, já pensavam os
budistas), por outro, só ela consegue realmente prever como esses fenômenos
devem se comportar. Ao mesmo tempo, o autor supõe que, se por acaso
encontrássemos um ser alienígena, e por um milagre conseguíssemos nos fazer
entender, com toda a probabilidade descobriríamos que o universo está
organizado para ele de maneira muito diversa, simplesmente porque seu cérebro
evoluiu de forma diferente para interpretar os fenômenos da realidade: sua
percepção da matemática e da física seriam completamente distintas.
O mais interessante, a meu ver, é
que não somente jamais teremos acesso a uma realidade que não aquela produzida
por nós mesmos, como também aquilo que está contido em nossos cérebros jamais
poderá ser plenamente expresso em termos racionais. É aí que tem início a briga
de Nicolelis com os entusiastas da inteligência artificial. Livros e filmes de
ficção científica ajudaram a popularizar a ideia de que nosso cérebro é algo
como um computador digital extremamente complexo. Isso significaria que entre o
aparelho que agora você está usando, herdeiro da máquina criada por Alan
Turing, e a nossa mente existiria apenas uma série de etapas evolutivas. O
neurocientista busca demonstrar, no entanto, que essa diferença está longe de
ser meramente de grau. Além de processar também informação digital, que os
computadores modernos registram na forma de bytes (unidade mínima de
informação, existindo apenas em dois tipos, representados pelos valores zero e
um) nosso cérebro se caracteriza, acima
de tudo, como um processador de informação analógica, ou seja, informação contínua,
que não pode ser traduzida para o código binário de que se valem os sistemas
digitais. O autor dá o exemplo de uma árvore, em cujo topo decepado se veriam
as marcas gradativa e continuamente deixadas na madeira ao longo do tempo, pelo
contato da superfície do tronco com a atmosfera, que nos permitem analisar, por
exemplo, quais anos foram mais secos e quais foram mais chuvosos. Nosso cérebro
pode ser entendido como um pedaço de matéria orgânica que aprendeu a ler a
informação nele inscrita, e isto sem o uso de qualquer código pré-estabelecido.
Esperar que um computador digital, por mais potente que seja, processe o tipo
de informação que acumulamos em nós seria mais ou menos como usar um leitor de
código de barras para analisar a casca de uma melancia.
Outra diferença importante com
relação ao aparelho digital é que em nosso cérebro não há realmente diferença
entre “hardware” e “software”, entre o aparelho e a informação contida nele.
Isso significa que a informação acaba por modificar o próprio aparelho ―
no caso, a rede neuronal. Nosso sistema de processamento é de tal modo maleável
que está continuamente se redefinindo e se ajustando às condições da natureza,
acumulando em si as marcas de seu próprio desenvolvimento. Seria um erro,
portanto, reduzir esse órgão a uma função específica ou mesmo a um conjunto
delas, como é o caso de qualquer computador digital. Ele não foi produzido para
fazer alguma coisa; na verdade, não foi sequer produzido, mas evoluiu, tal como
o resto de nosso corpo, moldando-se pelo contato com o meio. A singularidade do
homem estaria, dessa forma, afirmada pela singularidade de sua própria
experiência no mundo.
O tipo de informação com que
trabalha nosso computador analógico-digital é a razão pela qual encontramos
tanta dificuldade para expressar em palavras o que sentimos trazer dentro de
nós. Simplesmente não podemos. A linguagem ― sobretudo em seu nível mais
formal, aferrado a convenções gramaticais ― jamais será capaz de dar
conta da informação analógica contida em nosso cérebro. É por isso que desde o
seu surgimento o homem teve que se valer de outras formas de expressão, como a
pintura e a música, para elaborar o rico universo que continha dentro de si,
infinitamente mais amplo do que ele seria capaz de registrar qualquer linguagem
formal, com um número limitado de signos e com regras pré-estabelecidas.
Curiosamente, Nicolelis mal toca
no exemplo da literatura, essa arte que se constitui justamente a partir das
palavras. Parece-me não haver melhor exemplo de revolta humana contra as
tentativas de “formatação” de sua experiência do que os procedimentos
encontrados nas obras literárias. A invenção da linguagem organizada aprimorou
não só nossa comunicação com outros seres humanos, mas também a sistematização
de nossos modos de ver e de pensar, facilitando nossa interação com o ambiente
e potencializando nosso domínio sobre ele. Mas quando se tornam demasiado
reguladoras as normas com que organizamos a vida, sobrepondo-se a ela e ao seu
fluxo dinâmico, sentimo-nos às vezes limitados pela própria forma como falamos,
escrevemos e pensamos. Em oposição a isso, a literatura tem o poder de
subverter as normas pré-estabelecidas da linguagem formal e do próprio
pensamento, permitindo-nos experimentar o mundo de uma forma diferente. A arte
que se faz pelas palavras, procurando nelas novas possibilidades de sentido,
combinações inusitadas, explorando sua musicalidade e, por fim, reorganizando
toda uma realidade que se concebe a partir delas, promove uma libertação, ainda
que momentânea, dos ritmos mecânicos arbitrariamente impostos à vida.
Para Nicolelis, o cérebro humano,
como criador de nosso universo, ocupa também o centro de seu mistério ―
um mistério que a própria consciência humana talvez jamais possa elucidar, pois
ela mesma nada mais é do que uma das faculdades possibilitadas pelo cérebro,
incapaz alcançar a mesma complexidade de seu criador. O autor nos adverte,
porém, que se por um lado nossas invenções ― como, por exemplo, os
computadores digitais e a inteligência artificial ― jamais atingirão nível de
sofisticação do cérebro humano, existe o sério risco de nosso cérebro
reduzir-se às limitações dos sistemas mecânicos. Isso devido, ironicamente,
àquela qualidade tão fundamental: sua maleabilidade. Graças ao poder adaptativo
do cérebro, estamos sempre sujeitos a nos tornar escravos de nossas próprias
abstrações.
Quem leu os livros de Yuval Noah
Harari certamente encontrará ecos deles nos argumentos de Nicolelis. Foram
abstrações mentais como nação, pátria e religião que permitiram a pequenos
bandos humanos organizarem-se em comunidades cada vez mais amplas, unificadas
sob a égide de uma mesma simbologia. Mas desses processos resultaram também
inúmeras catástrofes, frequentemente estimuladas por interesses mesquinhos.
Além do exemplo óbvio da atuação da Igreja Católica durante a Idade Média,
dominando corpos e mentes de seus súditos, Nicolelis cita a história da batalha
de Somme, durante a Primeira Guerra Mundial, em que centenas de milhares de
soldados ingleses e franceses, por uma noção abstrata de honra e dever,
abandonaram a relativa segurança de suas trincheiras para encontrar a morte
certa sob a mira das metralhadoras alemãs, tudo para servir aos projetos de
governos imperialistas. O surpreendente em ambas as situações é que nosso
cérebro, de modo a facilitar o próprio trabalho, mostra-se disposto a perceber
como verdades absolutas as ideologias que ele mesmo produziu.
Além do perigo dessas abstrações
imaginárias (mas nem por isso menos reais), existe o daquelas que acabam assumindo
forma física: as tecnologias digitais, das quais, por uma questão de
comodidade, vamos nos tornando cada vez mais dependentes. Nosso contato
contínuo com esses aparelhos que regulam e padronizam o ritmo de nossas vidas, e
que o próprio cérebro passa a reconhecer como uma extensão de nossos corpos,
pode incentivá-lo a se comportar como uma máquina, transformando-se, talvez
definitivamente, numa espécie sistema digital orgânico. Contra os possíveis
efeitos nocivos das novas tecnologias e das ideologias, Nicolelis enfatiza a
importância de uma educação crítica e humanista, que estimule a reflexão e coloque
em primeiro plano o “verdadeiro criador de tudo”.
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