O Odu de Waldo Motta
Por Wagner Silva Gomes
Com poemas em redondilha maior,
redondilha menor, decassílabos e poesia visual, percebe-se que a métrica e a
forma poética na poesia de Waldo Motta são usadas para revelar o conteúdo
oracular. O poeta, descendente de negros praticantes da cabula, evoca
poeticamente a ancestralidade dos elementos secretos muçulmanos malês, os quais
a religiosidade insere sincreticamente a este o candomblé e cultos indígenas;
Waldo insere para além um viés judaico-cristão de interpretação da Bíblia e
numerologia.
Como deuses do candomblé que tiveram a descoberta de seu poder na
vivência com elementos da natureza, Waldo revela em uma entrevista concedida ao
programa ViceVerso, da rádio universitária da UFES, que na infância, ao tomar
um banho de assento banhado com ervas medicinais que lhe curaram os males que
sofria, descobriu que, o seu poder, elemento de visão, um tipo de terceiro olho
(fazendo aproximação com a tradição hinduísta), estava em como iria lidar a
partir daí com o Cu em sua vivência. O que faz lembrar os versos da música “Mufete”, do rapper Emicida: “Dizem que o diabo veio nos barcos dos europeus/
Desde então o povo esqueceu/ Que entre os meus todo o mundo era deus”. Assim,
ter nascido negro em São Mateus, uma região de resistência histórica
quilombola, fez do poeta um deus. E ele confirma isso quando diz em um de seus
poemas do livro Bundo e outros poemas (1996):
Boa Esperança do Espírito Santo
Boa Esperança, dom
que me coube e partilho.
Embutido em teu nome,
descobri o meu destino:
combater a própria morte
e o reino de mentiras.
Norte espírito-santense,
Boa Esperança, aqui
meu segredo te desvenda:
quem eu sou e a que vim.
Se José de Anchieta em sua poesia catequista
associava a hóstia, o corpo de Cristo, ao alimento, a poesia de Waldo alimenta
o corpo e o espírito com intenções de erradicar a miséria homofóbica e
neopentecostal da interpretação bíblica heteropatriarcalista. Na mitologia
grega, Orfeu, na Bíblia, Davi, ambos tiveram a missão de amansar as ferozes
bestas heteropatriarcalistas. Para isso utilizaram seus instrumentos musicais.
Assim também faz o poeta aqui analisado, que usa da musicalidade dos versos
em redondilha maior (com a ampliação simbólica do trocadilho – sem perdão) para
assim matar a fome de corpo e espírito também das feras políticas e
empresariais ruralistas BBB (ou Fazenda) – bíblia, bala e boi –, mostrando para
eles que não basta apenas gostar de pasto e mugidos mas, para uma comunhão
feliz e satisfatória com o espírito santo, se precisa entender quais seriam os
pastos a se plantar e se alimentar pra se matar essa fome que paira sobre os
signos que estão na cultura ruralista. Revela então o poeta em poema de Transpaixão
(2008):
Entre Lavra e Ceifa
O fruto que nos abranda
a fome que não se mata
nem na mesa, nem na cama
custa bem a madurar.
Do plantio à colheita
desse fruto que aplaca
a fome de liberdade,
comeremos muita grama
e repastos adversos.
Entre o verde e o sanguíneo
da madureza do fruto
existem muitos matizes,
inclusive, claro, o turvo. (p.
24).
O universo de seu Odu, ou seja,
sua história em forma de poema que revela o seus ensinamentos a partir de sua
vivência, parte daí. O gesto que representa o que foi falado é que nascido
Edivaldo Motta, Waldo não omite o edy, gíria gay para ânus, ele o ressignifica,
assumindo assim o seu cume simbólico (o Cu, presente na bunda) na base formal
da letra W, como os concretistas (1950) fizeram e ainda fazem (ao menos o
Augusto de Campos ainda cria poemas do tipo) dando valores contextuais aos
signos linguísticos que remetem a outras linguagens (desenho, sons de objetos,
publicidade etc.). Diz o poeta em poema do livro já citado (1996):
Anunciação
Eu sou a Nossa Senhora do Buraco
Negro,
Sujo e Fedorento da Rocha Dorsal,
mãe dos nove céus, a tetéia do
caralhudo.
Sou a dona de todo o universo.
Estou injuriada com este povo
atolado em minhas pragas, em
desgraças
que o louvor a Deus evitaria.
Ai de quem esqueceu a pedra santa
e o caminho da casa do Senhor!
(p. 33).
Waldo para efetuar a revelação
divina também combina elementos do tupi-guarani, do hebraico e gírias, formando
uma vivência oracular de crônica do dia, criando um ambiente de encantamento,
ou de um encantado, escapando assim à lógica “Deus / Estado, humanos / herdeiros de
Deus e natureza / recursos a serem transformados em prol do desenvolvimento
humano” (“Rufino, Simas”, p. 5-6). Ele é o seu próprio Deus humano que é o próprio
Estado, considerando o que é criado pelo homem na vida cidadã um anseio de seu
corpo e seu espírito enquanto autoconhecimento do sujeito e sobretudo do
coletivo (cada vez que se conhece mais e se vive mais se revelam novos
conhecimentos, novas leis, novos materiais) estando o desenvolvimento humano
integrado a natureza e não a subjugando. É esse encantamento que evoca o poeta
no livro Terra Sem Mal (2015):
Assim disse o Trovão
E assim fala Tupã,
sendo esta a resposta:
as montanhas do poente
acham-se em tuas costas.
Buscais a Terra Sem Mal,
Quereis a Terra Sem Mal,
a terra dos ancestrais,
de vossos pais e avós,
o reino celestial
da alegria e da paz?
Buscai-o dentro de vós.
Ó meu caro Kwaí,
solitária é a jornada,
e não há aonde ir.
A terra Sem Mal que buscas,
o paraíso que sonhas
sempre esteve em ti mesmo,
está em tuas entranhas
O lugar que tanto almejas
e buscas com tanto afã
encontra-se no poente:
a montanha semovente
é a pátria de Tupã,
e toda procura, além
desse território, é vã.
(p. 31-32).
Sobre os conceitos de encantamento
e encantado dizem Luiz Antônio Simas e Luiz Rufino no livro Encantamento –
sobre política de vida (2020):
“O encantado é aquele que obteve a
experiência de atravessar o tempo e se transmutar em diferentes expressões da
natureza. A encantaria, no Brasil, plasmada na virada dos tambores, das matas e
no transe de sua gente cruza inúmeros referenciais para desenhar nas margens do
Novo Mundo uma política de vida firmada em princípios cósmicos e cosmopolitas.
A noção de encantamento traz para
nós o princípio da integração entre todas as formas que habitam a biosfera, a
integração entre visível e o invisível (materialidade e espiritualidade) e a
conexão e relação responsiva/responsável entre diferentes espaços-tempos
(ancestralidade). Dessa maneira, o encantado e a prática do encantamento nada
mais são que uma inscrição que comunga desses princípios. Para nós, é muito importante
tratar a problemática colonial na interlocução com essa orientação. Entendemos
que a matriz colonial é uma das chaves para pensarmos a guerra de dominação que
se instaura entre mundos diferentes. Se de um lado temos a integração dos
sistemas vivos, a conexão entre as dimensões materiais e imateriais e a ética
ancestral, do outro lado está a separação e a hierarquização Deus/Estado,
humanos/herdeiros de Deus e natureza/recursos a serem transformados em prol do
desenvolvimento humano.” (p. 5-6).
Waldo nasceu em 27 do 10, de 1959,
portanto já passou pelos 10 anos, pelos 19 anos, pelos 27 anos, e passou pelos
59 anos, completando a circularidade de vida, o que remete aos feitos
ancestrais de consagração de realidades. Já fez sessenta (o que intensifica
ainda mais a conclusão da circularidade). Esse número remete, com o trocadilho
(cê senta – pra não deixar dúvidas), ao banho de assento, seu gesto revelador
na infância, à Penha, à terra sem mal, lugar onde este poeta é louvado por reis
(se se considera que há outros cidadãos brasileiros com a verve parecida com a
dele – herança ancestral, e poder visível de realização e influência ligados ao
contexto de reis e orixás) e pelo povo por
revelar as fórmulas poéticos de cura, como um orixá revela em seu Odu. Sem o
perdão do trocadilho e com o perdão, porque sua poesia almeja toda a maturidade
se levada a sério, mas no seu modo lúdico, pois parafraseando o Caetano Veloso
no que poderia se efetivar em vivência sociocultural, as pessoas fazem com todas
essas revelações um carnaval mas fazem tudo ainda muito mal, pois há sim uma
intuição de tudo o que envolve a poética do Waldo, porém há pouca reverência. E
então com Caetano, Waldo pode nos perguntar:
“Será que nunca faremos senão
confirmar
A incompetência da América
católica [acrescento protestante, neopentecostal, heteropatriarcalista]
Que sempre precisará de ridículos
tiranos?
Será, será que será que será que
será
Será que essa minha estúpida
retórica
Terá que soar, terá que se ouvir
Por mais zil anos [acrescento ânus]?”
Caetano Veloso, “Podres Poderes”
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