Nossas noites, de Kent Haruf
Por Pedro Fernandes
O ponto de partida da narrativa de
Nossas noites é inusitado; seus desdobramentos nem tanto; seu desfecho,
inesperado. Para o lado que for, somos levados para observar sobre a vida
naquela pequena região, onde, se a alcançarmos, funciona como seu
prolongamento. Assim é que, por baixo da afirmativa suscitada por algumas das
personagens já não tenho mais nada a perder, circula a pergunta: uma vez
entrarmos no instante último das nossas existências, o que faríamos? É possível
que, entre a maioria das pessoas, essa pergunta sequer ocorra; e, se sim, seja apenas
acompanhada daqueles desejos de fim de ano, manifestados com todo fervor e
esquecidos no primeiro minuto de se cumpri-los. Como toda circunstância humana,
essa não é uma regra universal. E se as exceções não chegam a alterar a
superfície total das coisas não se deve ao caso de serem poucas.
Neste que foi o último romance publicado
de Kent Haruf ― o escritor nascido no Colorado em 1943 morreu em 2014 e o
livro apareceu menos de um ano depois ― a figura que ocupa a exceção é Addie
Moore, uma viúva entrada nos setenta anos. Ela decide certo dia ir ter com o
vizinho Louis Waters para uma proposta: que ele passe a lhe fazer companhia à
noite. A ideia, apesar da formalidade como é proposta e como começa a ser
praticada, não é em nada planejada. Faz-se desses arroubos naturais que vez ou
outra chega nós e, como as promessas de fim de ano por uma vida, geralmente
costumamos ignorá-los. O episódio, obviamente, inaugura outro sentido para a
vida dessas duas personagens e os efeitos se estendem a todos que, direta ou
indiretamente, se relacionam com elas.
As primeiras alterações são
percebidas pelos habitantes do condado de Holt. Profundamente integrados à vida
alheia, como é comum em todo pequeno ajuntamento de pessoas, a notícia sobre
esses encontros e as variantes ampliadas adquiridas em todas as suposições logo
se faz assunto comum, capaz de oferecer novas conciliações e intrigas. Mas,
simpática às boas transformações, a narrativa não concentra seus olhos para o
incipiente debate moral, suscitado por todos que mantêm um convívio mais
próximo com Addie e Louis ainda que este, mais tarde, finde por se impor. Isso
porque o interesse parece ser o de apresentar que entre o instante de fechamento
e desengano pela vida e o seu oposto o que mais falta é uma atitude.
Falamos sobre duas existências que
mergulhadas num isolamento e profunda solidão, pelo individualismo de toda uma
vida, decidem, por sua própria conta, se deixarem permitir às novas forças de sentido
proveniente da união e do convívio. Esse contrato verbal nada tem do
enovelamento amoroso, tal como alcançam os habitantes de Holt e por isso mesmo
incapazes de compreender as decisões tomadas pelas duas personagens; ou seja,
não é o sentido comum estabelecido socialmente para as relações de sexo oposto.
Addie e Louis mostram-se motivados por um incomum envolvimento de afetos e isso
fica visível nos modos de partilha que se estabelecem entre os dois e no
contraste com outros núcleos familiares.
Esses contrastes findam
problematizando certo modelo de vida urbana que, radicalmente centrado nos
modos de produção, começa a influir e determinar negativamente na ordem dos
convívios individuais. Os dois viúvos são exemplos disso: a solidão e o
isolamento findam os arrastando para uma variedade de problemas de saúde. Em Nossas
noites também se testemunha como esses novos modos de vida principiados de maneira
visível com os da geração de Addie e Louis se ampliaram sobre os que vieram
depois. O exemplo mais notável se oferece no registro da dupla crise enfrentada
pelo filho de Addie: o abandono da relação pela companheira e a ruína nos
negócios forçam Gene a enviar para o colo da mãe, o filho. Jamie chega à pacata
Holt e, de imediato, a avó e seu conviva descobrem uma criança privada dos
afetos e mesmo da própria condição infante.
Esse instante é um dos mais reveladores
da narrativa. É quando os envolvidos no restabelecimento de uma força original encontram
uma atividade significativa aos dois e Louis, quem aposta com certo receio na
atitude de Addie, se vê disposto a continuar com o projeto. Não só. A ideia se
converte em prática natural, sem os efeitos artificiais que se demonstram no
primeiro instante quando se vê na casa da vizinha. Engendram-se novos laços
familiares, preocupações em comum, atividades que devolvem para os dois quais
os sentidos da vida no último estamento de suas existências. Quer dizer, é
simbólica a chegada do pequeno Jamie.
Também a criança descobrirá outros
significados para a vida, possivelmente mais autênticas. O instante de
aprendizagem desenvolvido entre eles ― principalmente a transformação da
criança ―
aparece metaforizado nos instantes de transição de uma ninhada de camundongos
no quintal da casa de Louis, do nascimento à independência dos bichos. Entre um
tempo e outro, o garoto adquire segurança de si, a necessária para fazê-lo melhor
integrado socialmente e possa melhor observar como reagir às crises como as
enfrentadas no seu núcleo familiar.
Mas, a principal modificação dos
sentidos se oferece por uma educação dos sentidos e dos afetos. Jamie logo participa
de alguma maneira do intercâmbio de memórias iniciado entre Addie e Louis e que
se estende pela vizinha em comum dos dois, Ruth. Os dois velhos descobrem a si
e os interstícios que durante a vida os separaram, conseguem dividir o peso das
contravenções que praticaram e dos acontecimentos traumáticos pelos quais
passaram ―
repisam a vida com seus acertos, interesses negados, decisões administradas, seus
erros. O pequeno Jamie adquire os traços familiares que o integram
simbolicamente numa genealogia familiar, uma vez que esta não se compõe apenas
das trocas biológicas, mas sobretudo, das histórias, dos afetos, dos
comportamentos, enfim, daquilo que compõe uma tradição.
É singular, nesse sentido, uma
reunião de jantar na casa de Ruth entre o pequeno, Addie, Louis e a cadela
Bonny, recém adotada; esta foi a última integração da anfitriã a esse pequeno
grupo formado da decisão casual de Addie e é a amiga quem conta para Jamie
sobre como se organizava a rua onde vivem, qual a relação dos primeiros da sua
família com o lugar, isto é, trocas que uma vez absorvidas e reanimadas pela
memória da criança prolongarão as existências alheias, principalmente porque
nela esses sentidos se encontram em apuração. Vigoram, assim, os interesses da
narrativa em contrapor um modo de vida baseado no imediatismo e no
artificialismo dos vínculos centrados na simplicidade e numa economia dos
afetos. São os pequenos valores que neutralizam os distanciamentos da vida
capital e a doentia solidão provinda do isolamento e do individualismo.
O romance também evidencia o tema
da velhice e algumas de suas implicações, tais como, os vazios sociais impostos
ou mesmo autoimpostos por uma sociedade educada para a juventude e a maturidade
e a derrocada física dos corpos, incluindo a impotência para o sexo. Ao se
aproximar do tema do amor romântico, Kent Haruf encontra uma possibilidade nem
sempre engendrada pela prosa romanesca, uma vez que esta, à maneira dos valores
sociais dominantes sempre terá se negado tratar de histórias de amor na
velhice. Nesse sentido, o escritor ressignifica o fator da impossibilidade
amorosa ―
motivada esta por um decoro moral da comunidade social que prevê o amor e o
exercício dos corpos como uma atividade indecente entre velhos. No mesmo
itinerário do romance de amor romântico, Addie e Louis contornam as diatribes
que se oferecem como impeditivos não para provarem socialmente um feito mas se
acreditarem no fulgor de estarem vivos e dispostos um para o outro.
Nossas noites é um romance delicado,
simples, desinteressado nos efeitos de reviravoltas; prefere substitui-los pela
serenidade objetiva das descrições e no diálogo que se oferece como circuitos
de reaprendizagens da alteridade. Se algo do tipo se apresenta a essas
personagens, a decisão objetiva parece ser a alternativa mais coerente, mesmo
que não deixem de padecer ― nem poderia ser diferente ― das marcas trazidas por seu
impacto. Mas, o espaço para um dramatismo é dispensado. Ou seja, a dose de racionalidade
utilizada para equilibrar os episódios da narrativa predomina do começo ao fim.
O grosso da vida dessas duas
personagens está no passado, como tratam de recordar uma e o outra vez; assim,
se algo de interessante ainda se mostra nesse ponto final das existências é o
de se perceberem entregues aos pequenos prazeres que reanimam nos dois o valor
de estar vivos. Quando o presente se interpõe entre eles, é preferível tomar seguir
uma decisão capaz de não arrastá-los para um radicalismo que manter a aposta nos
desejos que os envolvem profundamente neste encontro casual e planejado ―
ao menos de uma das partes envolvidas.
Kent Haruf não aposta numa
substituição de modos de vida. Embora não deixe de pintar com cores
leves o fim inevitável ― e por isso às vezes incompreensível e irracional ―,
aposta no retorno do homem à paz dos tempos imemoriais, quando os pequenos
valores que de alguma maneira nos definem ou constituem algum sentido para o
ato de viver é viver. Simplesmente. Viver para si e para os que nos elegem
parte de seu grupo de pertença. Nesses tempos de escravidão da imagem de si
para o outro, a lição se reveste de uma sabedoria profunda e indispensável.
Ligações a esta post:
>>> Nossas noites foi adaptado para o cinema e o filme comentado aqui
>>> Nossas noites foi adaptado para o cinema e o filme comentado aqui
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Nossas noites
Kent Haruf
Sonia Moreira (Trad.)
Companhia das Letras, 2017
Companhia das Letras, 2017
160p.
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