Mecanosfera/Monoambiente e os desafios da escrita

Por Paula Luersen




Criticar até mesmo aquilo que está em risco. Sabemos que não é tarefa do escritor zelar por instituições. Afinal, na maioria das vezes, escritores têm pouca influência prática e imediata sobre o rumo dos eventos que definirão a permanência ou extinção daquilo que está posto. É um grande desafio, contudo, revelar contradições e injustiças de situações sob o alvo de ataques políticos que não preveem qualquer crítica construtiva, apenas o escárnio. Falo da situação atual do mundo acadêmico no Brasil, transformado por instâncias governamentais, através de um olhar infantilizado, em uma espécie de inimigo a ser combatido. Longe de ser aquilo que pintam as tintas de uma postura ideológica e mal intencionada, esse mesmo mundo acadêmico também não está isento de críticas. Ao performar os vícios do sistema no qual se inscreve, ele promove assimetrias entre produção de conhecimento e seus modos de circulação e mensuração.

O livro de Fabrício Silveira Mecanosfera/Monoambiente sabe se colocar no intervalo entre essas duas lógicas: ao mesmo tempo que deixa claro o absurdo dos ataques atuais às esferas de conhecimento e, consequentemente, às universidades, também sabe mirar o meio acadêmico de um ponto de vista arguto, sem poupá-lo do exame que lhe cabe, demonstrando grande conhecimento de causa. A narrativa traz reflexos práticos da intensa ofensiva que vem assolando as universidades com os cortes de recursos sem justificativa plausível, responsável por destruir o trabalho de diversos profissionais comprometidos com ensino e pesquisa; mas acerta, também, no tom da crítica aos trâmites de uma vida acadêmica definida por normas e sistemas de avaliação que carecem de revisões. Afinal, por que publicar um texto em uma revista acadêmica seria considerado de maior valor do que o mesmo texto publicado em livro, se este atinge, inclusive, maior número de leitores? Pesos e medidas precisam ser reavaliados.

Sistemas de avaliação gerais e objetivos produzem, por certo, generalizações que não contemplam a diversidade dos modos de conhecimento compreendidos pelas academias. O problema maior é que esses sistemas, longe de funcionarem como meros parâmetros, acabam por impactar diretamente as vidas e carreiras daqueles que escolhem trilhar esse caminho. E é de dentro do impacto que surge a escrita de Fabrício Silveira.

O personagem principal do livro, Fabiano – um claro alterego do autor –, professor há mais de 20 anos em uma respeitada universidade particular, é subitamente chamado para a reunião que definirá sumariamente a sua demissão. Alega-se como motivo para tal parâmetros de produtividade acadêmica, mas isso pouco interfere na situação narrada que se caracteriza muito mais pelo embate de um profissional com índices que nada dizem sobre o seu trabalho e por um senso de praticidade quase insuportável por parte da instituição: “Me preocupo não só com as questões trabalhistas, viu? Me preocupo, no primeiro plano, com aquilo que vou deixar incompleto: as minhas orientações [de alunos], por exemplo” – clama Fabiano, ao ouvir a notícia da demissão. Ouve em resposta: “Trataremos com a coordenação do curso, com teus colegas e superiores imediatos. É preciso fazer o exame médico no ambulatório (...) Você pode sair daqui e fazê-lo agora mesmo. Pode encaminhar ao RH as outras necessidades que tiver”. Uma reunião de quinze minutos, movida pela dureza dos processos burocráticos, dá fim a trajetória de vinte anos como professor e pesquisador ligado àquela instituição.

Para uma história que inicia demarcada por esse tipo de evento, se esperaria uma continuidade um tanto calamitosa. Mas a proposta do escritor vai muito mais além do que dar a ver um drama pessoal e profissional. A cena é apenas o ponto de partida para um pensamento que se expande e coloca em análise o sistema que governa nossas vidas, sendo a precarização do trabalho apenas uma de suas frentes: o realismo capitalista, conforme Mark Fisher. O conceito é trazido e desenvolvido no livro e a narrativa vai se construindo como uma ficção teórica de peso, diretamente conectada à atmosfera ruidosa recente que se estabeleceu na vida política brasileira.

Ao associar o trabalho universitário à competitividade de um call center e ligar o currículo Lattes à promoção pessoal no Instagram, o enredo demonstra como o contexto de sobressaturação, imediatismo e esvaziamento do desejo se alastra para todos os outros âmbitos, compondo um quadro maior. Os problemas que o personagem enfrenta durante o livro são, de fato, sistêmicos: “É mais fácil imaginar o fim do mundo e a extinção do planeta do que o fim do sistema capitalista, adverte Mark Fisher”. 

A ausência de ideais coletivos e a interpassividade – a vontade exagerada de interação, sendo poucas dessas trocas realmente relevantes – são outras características desse sistema, que gera descompasso entre a saúde física e psíquica e a exigência de produtividade, acompanhada da desaparição do tempo livre. Em um dos capítulos do livro, quando analisa essa e outras ideias de Mark Fisher, a voz narrativa destaca: “Não se trata de propor, em oposição a esse regime (...), uma “crítica moral”, muito menos um “utopismo ingênuo”. Importa destacar o “irrealismo” do realismo capitalista, expor suas contradições e sua incoerência sistêmicas”. Fabiano confessa, logo após essa análise, a alternativa que lhe resta: “’A história que eu invento...’, resmunguei comigo mesmo, ‘é a única arma que eu tenho’”. 

O livro se coloca, dessa forma, como a construção de uma alternativa. O autor não está focado em entregar ao leitor uma resposta que possa aplacar as incoerências manifestas em sua história. A ideia é escrever de dentro delas, envolto por contradições. Deixar o emprego depois de vinte anos de docência parece ter a função de desencaixe e acompanhamos o personagem principal construindo um novo entendimento de si, entre narração e teoria. Um novo entendimento do próprio corpo e do próprio tempo, que deixaram de ser apenas parte do fluxo geral. As teorias trazidas por Fabiano, mais do que mediar as relações da personagem com as situações do mundo, perpassam o corpo, passam a ser experimentadas em um outro nível de apreensão – “de repente isso tudo [o realismo capitalista] ganhou um sentido especial para mim. Tornou-se algo próximo e visceralmente concreto”.

Mas gostaria de destacar também como a vivência do corpo trazida pelo livro não é somente aquela demarcada pelas dimensões e consequências de um sistema opressor. Nos encontros diários entre os dois personagens principais, Fabiano e Raíssa, percebe-se um outro tipo de registro. Há uma candura na descrição de pequenos gestos que revelam a cumplicidade do casal: “sorriu e pisou de leve nos meus pés descalços”; “adormeceu em silêncio, como se estivesse rindo”; “Raíssa sai do banho enrolada em uma toalha felpuda. Eu já conheço essa imagem. É uma cena que agora, com o rosto voltado às páginas de um livro em cima do teclado do computador mais presumo do que vejo”. Há um convívio baseado em parceria mútua, o saber um do outro que passa ao largo da desconexão afirmada pelos pressupostos teóricos do realismo capitalista ou de outras teorias que preconizam a ruína dos laços afetivos.

Destaco o fato para mostrar como, no livro, as personagens também sabem transbordar o contexto definido e explorado teoricamente. É uma qualidade do texto que os próprios fenômenos não assumam um contorno que os imobilize enquanto única realidade possível. O contexto acadêmico, por exemplo, retorna no livro de diferentes maneiras e, mesmo criticado em suas assimetrias, insiste como lugar de interesse. Afinal, assim como demonstrado em Mecanosfera, ele continua a ser um caminho para aqueles que sustentam pretensões intelectuais no Brasil, país que conta com uma malha muito rarefeita de institutos de pesquisa e outras instituições que recebam e remunerem o trabalho de profissionais do ensino e da pesquisa. Sendo assim, conforme a carreira acadêmica de Fabiano se desdobra, passam a conviver com as justas críticas, as trocas, os compartilhamentos, as parecerias, os modos de trabalho. Ressalta-se o teor do trabalho de pesquisa e o rigor científico que a academia é capaz de engendrar. E é justamente nisso que as universidades têm de melhor que elas são atingidas sob o ataque do governo Bolsonaro, desmantelando conquistas, como o livro não deixa de pontuar.

Voltando, porém, à construção de alternativas outras, a ficcionalização vem se mostrar dentro do texto não só como horizonte para Fabiano, mas como caminho de interesse para a própria produção de conhecimento acadêmico. As fabricações da história e mesmo as teorias da conspiração que têm ganhado fôlego nos últimos anos já provaram que a lógica ficcional vem mobilizando mentes e ações com uma força que ignora, inclusive, a comprovação dos fatos. Quem sabe seja, então, através da ficção que tenhamos que encontrar outros nexos, indo além das análises teóricas e da linguagem puramente científica. Ao construir como alternativa uma ficção teórica, informada da realidade e por ela perpassada, Mecanosfera/Monoambiente tenta anunciar mais essa arena de embate. Afinal, como afirmado no livro, escrever é às vezes a nossa única arma.

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