Curzio Malaparte
Por Álvaro Corazón Rural
Curzio Malaparte. Foto: Kitti Bolognesi |
Eu poderia procurar mil desculpas
para elogiar a figura do escritor italiano Curzio Malaparte, mas não vou enganar
você. Este homem não entrou na minha vida por causa de seu talento e sim por
causa de seu sobrenome.
Quando criança, não conseguia
acreditar que na biblioteca dos meus pais tivesse um nome tão duvidoso.
Ma-la-part-te. E o que me perturbou muito, ao entrar na adolescência, foi que
um de seus livros se intitulava Técnicas de golpe de Estado. Parecia-me
um manual sobre algo ruim, muito ruim, que as democracias inocentes e boas sofriam.
Eu não podia acreditar. Que tipo de pessoa tinha que ser, me perguntava, para publicar
tal coisa. Então, um dia dei uma longa olhada na capa de sua obra-prima, Kaputt,
com os soldados da Wehrmacht passando por maus bocados, em vez de aparecer como
vilões desafiadores como meus esquemas morais exigiam. Isso fez o resto. Fui
seduzido pela incorreção, que é muito atraente quando você é jovem, e comecei a
ler. O que mais acrescentar... me diverti muito.
Na verdade, ele não se chamava
Malaparte. Ele colocou esse sobrenome ― já abraçou nosso querido pseudonimato
―
no lugar de Suckert, de origem alemã, a nacionalidade de seu pai, e em
homenagem a Napoleão. Dizem que ele disse: “Bonaparte já teve um”, embora
sempre tenha se sentido italiano e voluntário que foi para a Primeira Guerra
Mundial aos dezenove anos. Mais tarde, abraçou o fascismo de Mussolini para
então dar uma guinada muito característica dessas latitudes e se converter
depois da guerra à causa aliada. Não satisfeito com isso, no período
pós-guerra, ele pode até mesmo dar uma freada na inconstância quando se tornou
um entusiasta da China de Mao. Tanto é que à própria China Popular legou em
testamento a sua casa de Capri, uma joia arquitetônica, na qual Godard filmou O
desprezo, depois entregue ao vandalismo durante anos já que ninguém podia desfrutá-la
por um impasse no processo da herança entre os parentes rancorosos do escritor.
Imagine-os: “O que foi deixado para os chineses, para o governo chinês?”
Tudo já foi dito sobre sua
extravagância. Que usava espartilhos, que pintava as unhas, que depilava as
mãos, os braços e o peito. Que tingia o cabelo e se maquiava. Também que se
esforçava por seduzir as mulheres com o mesmo cuidado com que não colocaria a
mão nelas depois. Diziam que era muito narcisista, além de muito machista e
muito ciumento. Observe o título de sua primeira obra: As mulheres também
perderam a guerra. E que ninguém se poderia ser atrever a tocá-la. Chegou em
mais de uma dezena de vezes a se envolver em confusões. Em alguma ocasião,
apenas por causa de uma crítica negativa a uma de suas obras.
O que ele gostava era de dinheiro.
Nunca se cansava de persegui-lo, ganhando a reputação de um cata-vento que se
aproxima do sol mais quente o tempo todo. Embora a última biografia publicada
sobre ele ―
Malaparte, vidas e lendas, de Maurizio Serra ― destaque sua modernidade,
cosmopolitismo e que ele teria sido pouco simpático, na realidade, das
ideologias de massa e totalitárias. Em 1931, na já mencionada, Técnicas de
golpe de Estado, Hitler já era ridicularizado por ser chamado de “Júlio
César com vestido tirolês”. Este biógrafo o chama de “anarquista de direita”.
Muito contrário ao clericalismo e muito mais ao racismo. Quando seu país entrou
em guerra com a Etiópia, seu louvor foi dirigido à coragem do inimigo. Não
surpreende, diz Serra, ele era “capaz de arriscar uma amizade por uma piada”.
De suas duas obras mais
emblemáticas, Kaputt e A pele, a primeira sobre a Europa ocupada
pelo Eixo e a segunda sobre o sul da Itália que os Aliados encontraram ao
desembarcar em Nápoles, muito também foi dito. São livros que se venderam como
pão e mais viciantes do que a heroína. Mas também consta que não coincidem as datas
e os lugares de suas histórias maravilhosas com o que ele disse quando e onde
aconteceram. Parece haver exageros grosseiros e falsificações de eventos, e até
mesmo anedotas famosas sobre a Primeira Guerra Mundial metidas na Segunda. Um
exemplo, a história de um menino partisan capturado pelos alemães; quando o
oficial caolho verifica sua idade, ele decide libertá-lo com a condição de que
adivinhe qual é seu olho de vidro. O garoto, diz ele, respondeu sem hesitar que
era o direito. Então alemão, surpreso, perguntou de novo como ele sabia com
tanta certeza. E o pequeno soldado soltou: “Porque era ele que tinha a
expressão humana”.
Demasiadas dúvidas para um
trabalho jornalístico, diriam vocês, pessoas de hoje, que o colocam muito alto
num ranking. Na verdade, esses livros foram escritos como um
correspondente de guerra. Mas nada disso importa atualmente, honestamente. Pelo
menos para mim. Meu problema com Malaparte é que desde que li esses dois catataus
de 400 páginas, todos os filmes sobre a Segunda Guerra Mundial começaram a
parecer quase melosos. Contos leves de heroísmo barato com o final do
protagonista beijando uma gostosa. No entanto, o que ele reproduziu em suas
páginas, emprestado ou distorcido, quem sabe se não foi inventado diretamente,
são as imagens mais chocantes dessa crucial contenda que já vi ou li. Palavras
que se ficam gravadas no córtex.
As primeiras páginas de Kaputt
já são aterrorizantes. O leitor caminha de mãos dadas com Malaparte pelas
estradas da frente oriental com uma visão macabra. Em cada curva ―
não há placas ― há soldados com os braços erguidos indicando a direção. São
corpos de soldados russos congelados que os alemães plantaram na neve como
postes. Eles têm, detalha, “olhos bem abertos e boca bem fechada”.
No campo de concentração de
Smolensk, ele continua, os soldados soviéticos sobreviventes comem seus
camaradas mortos sob o olhar indiferente dos oficiais alemães. Um deles, no
cerco de Leningrado, foi pego em um buraco com carne humana escondida no capote.
Pior sorte são seus animais. Na
Finlândia, na floresta de Raikkola, os cavalos da artilharia soviética, fugindo
das chamas que destroem as árvores no meio da batalha, correm a entrar num
lago. Vejam, leitores, o princípio físico que explica o seguinte: as águas
daquele lago são tão frias e tão calmas que com apenas um pequeno contato
congelam de repente. Os cavalos ficam presos. Congeladas. Na manhã seguinte,
suas cabeças, a única coisa saindo do gelo, também estão congeladas. Os soldados
finlandeses, acostumados com sua presença, acabam servindo-se deles como carrosséis.
Divertem-se tolamente. Mas na primavera a festa termina quando eles apodrecem.
Detritos aquosos devido ao degelo. O fedor é insuportável. A cena não é linda
ou o quê?
Páginas mais tarde, na Ucrânia,
soldados romenos, seguindo os passos do avanço do exército alemão, procuram
judeus entre os juncos gritando “Ratos, ratos!” A Wehrmacht, em seu rastro,
deixou apenas judeus furtivos e esqueletos de ferro, cadáveres de máquinas.
Esses soldados, quando olham para seus prisioneiros de cima a baixo, ficam
surpresos porque no exército da URSS eles têm botas melhores do que eles. Fazem
perguntas, discutem com Malaparte, até que um bombardeiro soviético cai perto
deles. A tripulação é composta por seis mulheres. Elas sobreviveram. Os
fascistas romenos tateiam-nas, vão desnudando-as aos poucos...
Nos pogroms nas aldeias, os
burgueses ucranianos ajudam os nazistas romenos a perseguir os judeus, até
então seus vizinhos, com facas e barras de ferro. Soldados esmagam um homem com
a coronha de seu rifle e contra uma parede de sua casa. Hebreus são enforcados
em qualquer lugar. Qualquer parte é boa. Quando mais tarde o exército alemão
está de volta, ele também passa pela corda os camponeses ucranianos. Na estepe
não sobra nada. Nada.
Um dia, Malaparte se depara com um
trem parado nos trilhos. Um cavalheiro curioso que o acompanha abre as portas
de um vagão e os cadáveres de judeus caem sobre ele como cachos. Assim que ele
fica de pé, ele ouve um grito atrás dele. Os camponeses e ciganos locais estão
lutando para despir os mortos. Logo vão vender suas roupas.
As tropas alemãs assassinas,
quando voltam do front, estão exaustas, taciturnas, sim, como em todos os
textos sobre esta guerra, mas Malaparte aponta um detalhe difícil de esquecer: todos
estão mais calvos. Até os jovens. E quando alguém que estava na linha de fogo é
saudado com um “Heil Hitler!”, ele responde “Ein Liter!”.
Esses soldados, criminosos
experientes, quando entram nas aldeias, agora dão uma folga aos judeus. Primeiro
vão atrás dos cachorros. Sim, aos cães de cada povoado. Eles os perseguem com
raiva. Disparam suas metralhadoras contra os cães. Não importa o desperdício de
munição. Até jogam granadas contra eles. Estão loucos para exterminá-los.
Aprenderam, à custa de sangue, que os soviéticos, quando atacados pelos
Panzers, treinaram cães que, carregando uma bomba com uma pequena antena presa
às costas, correm de suas trincheiras em direção a cada tanque e ao menor
contato eles os fazem voar pelo ar. Hitler os martelava com propaganda contra
os cães judeus e, quando chegava o momento da verdade, eles tinham mais medo
dos cães comuns.
Os felinos também não estão em melhor
condição. O autor se inteira conversando com os chefes nazistas que os jovens das
SS para ingressar na corporação, devem passar na chamada “prova do gato”. É
simples. Com uma faca, arranque os olhos de um gatinho. É assim que um
verdadeiro assassino é forjado.
A viagem termina na Grande Croácia
de Ante Pavelic. Malaparte vai encontrá-lo em seu escritório. Um balde do que
parecem ser ostras da Dalmácia chama sua atenção. Ele pergunta se é seu
desjejum e o ditador croata diz que não, que são vinte quilos de olhos humanos
que seus fiéis soldados ustashe lhe deram de presente. Esse diálogo,
aliás, acabou até em alguns manuais de história. Para colocá-lo em mais dúvida,
é necessário mencionar que no jornal Madrid de 29 de setembro de 1969, numa
reportagem sobre a Iugoslávia intitulada “Aquí se dispara”, referindo-se ao
fato de que em Praga em 68 cidadãos tchecoslovacos não enfrentaram os tanques soviéticos,
um italiano entrevistado garantiu que Malaparte lhe confessara que aquele
detalhe era mentira. Mas as atrocidades dos fascistas croatas foram de tal
magnitude que hoje as pessoas mais diligentes e conhecedoras da história dos
Bálcãs não se surpreendem com tal nível de abjeção. Leia sobre o campo de
concentração de Jasenovac. Como Malaparte, com os olhos, ele só queria falar
pouco para contar tudo.
Seja como for, no final de Kaputt
há pelo menos um lugar para o riso. E claro, este momento vem da mão de um
espanhol. É quando o diplomata Agustín de Foxá, amigo íntimo de Malaparte, lhe
revela que um dia, junto com César González Ruano, embriagados, exumam o
cadáver de um marinheiro em um cemitério de Madrid. Ao descobri-lo, eles se benzeram
diante dele como acreditaram ser mais coerente: “Pelo norte, pelo sul, pelo
leste e pelo oeste”. É o único momento mais leve da obra, um sacrilégio.
Porém, na segunda parte, no livro A pele, também é possível se rir. Por exemplo, quando os napolitanos, em
conluio com os negros do exército americano, roubam caminhões inteiros de suprimentos.
Havia fome nas famílias locais. Mas, já a postos, eles também assaltam um
Sherman, um tanque inteiro, que desmontam e desmembram em um pátio interno em
apenas duas horas. Em nenhum filme nos disseram que os estadunidenses que libertavam
os povoados estavam tão pobres a ponto de roubar seus tanques.
Isso indica o quão desesperador
deveria ter sido colocar um pouco de comida na boca ao explicar outros
comportamentos humanos menos jocosos. A prostituição também estava na ordem do
dia, além do roubo. Mas não só de mulheres, também de crianças. Suas mães as
vendiam a soldados marroquinos, hindus e argelinos, que aparentemente gostavam dessas
mercadorias infantis para satisfazer seus apetites sexuais. Dois dólares por um
menino, três por uma menina. Barato. Dez vezes menos que um quilo de carne de
cordeiro, os moradores se queixam com Malaparte.
Porque as oscilações dos preços de
acordo com as leis da oferta e da demanda eram trágicas para o povo humilde do
sul da Itália. Quando as camponesas chegaram das cidades vizinhas com a
intenção de se prostituir de maneira stakhanovista, o preço da carne humana caía
e o da comida aumentava. Uma garota de vinte anos, diz o autor, passou de dez
dólares para quatro dólares em apenas uma semana.
E também, é claro, havia prostituição
masculina. Algo que o cinema nunca quis saber. Eram os soldados humilhados e
derrotados do exército fascista italiano. Eles não tinham sido admitidos para
lutar ao lado dos aliados do general Badoglio e não tinham escolha a não ser
colocar-se à mercê das centenas de homossexuais que vinham de toda a Itália em
busca deles. Era agora ou nunca. Um aqui e agora para esses que ele os chama de
“invertidos” ricos.
No entanto, o autor tem a
particularidade de agradecer aos homossexuais de todo o mundo por seu
inestimável trabalho no serviço secreto ao lado dos aliados. Segundo ele, os
gays eram os agentes mais procurados. “É impossível saber quantas vidas humanas
foram salvas graças às carícias secretas dos mignons”, relata o jornalista.
O fato de o exército alemão em retirada não ter destruído a indústria do norte
da Itália, explica ele, foi porque Dolmann, da SS, foi persuadido a não o fazer
por seu amante romano. E atenção, nestas páginas não faltam as cenas lésbicas
entre senhoritas nacional-socialistas. Realismo e paridade.
Foi uma luta de todas as pessoas.
No sul da Itália, a população civil lutou contra os alemães em sangrentas
guerrilhas urbanas. Era a primeira coisa que via ao entrar em Nápoles
libertada, descreveu Malaparte, e eu nunca vi na grande tela: cadáveres alemães
com rostos desfigurados por tesouras, as gargantas dos mortos roídas. Alguns
foram apreendidos e imobilizados por grupos de vinte crianças e, uma vez
jogados no chão, tinham pregos cravados em seus crânios. Lá estavam eles, com a
cabeça como Hellraiser, mas sério.
Essas crianças napolitanas eram
capazes de explodir tanques. Muitos delas, ao estilo kamikaze, se jogavam com
cestos de palha em chamas nas mãos para incendiá-los. Outros, mais ousados, no
calor terrível do sul da Itália, ofereciam cachos de uvas ao passarem por eles
nas estradas. A execução era simples. No exato momento em que começavam a
levantar a portinhola do tanque, jogavam dentro granadas de mão roubadas dos
mortos. Nada mais horrível que a morte do tanquista.
No entanto, a cena mais marcante
de ambos os livros se passa novamente na Ucrânia, em Yampil, no Dnister. Um
homem estava caído na estrada esmagado por um carro blindado. Um grupo de civis
lutou para tirá-lo do caminho. Suavemente. Eles fizeram isso usando uma pá sob
os contornos do cadáver. “Como se levantavam as bordas de um tapete”, diz.
Aquele “tapete de pele humana” tinha “verdadeira estrutura óssea fina”,
descreve, era “uma verdadeira teia de aranha feita de ossos esmagados”, parecia
“um vestido engomado”. Quando finalmente o tiraram do chão, um deles enfiou a
ponta na lateral de sua cabeça e começou a andar agitando essa bandeira. Era a
mesma coisa.
Malaparte deixa essa cena para o
final da segunda parte. Isso lhe serve de sentença. “Aquela pele balançava com
o vento como um verdadeiro estandarte. Disse a Lino Pellegrini: ‘Aqui está a
bandeira da Europa, a nossa bandeira.’” Quão pouco os símbolos mudaram. Nisso,
Curzio Malaparte não exagerou.
Ligações a esta post:
* Este texto é a tradução de “Malaparte”, publicado aqui em Jot Down. Todas as citações são traduzidas
a partir do original em espanhol.
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