Fisionomia afetiva das estantes
Por Guilherme Mazzafera
A estante é o homem: eis a máxima
imperecível. Não se trata de apostasia pelas verdades transcendentes, mas
daquela devassa ao material que nos define como seres históricos, enraizados
nas palavras de romances que nos levam... às verdades transcendentes. Ou ao
Japão feudal, à Samoa do tísico Stevenson, e, quem sabe, a algum lugar em La
Mancha de cujo nome não me quero lembrar.
Todo leitor se depara com aquele
momento crucial de adquirir (ou mandar fazer) uma ou mais estantes. Quando
perguntados sobre o sentido de estocar material já lido (falarei dos não lidos
adiante), não há melhor resposta que a do cético George Costanza ― o
mesmo que, perenemente corrompido pelos hábitos televisivos, não conseguiu
encarar mais de duas páginas de Breakfast at Tiffany’s ―
diante do esgar prático de seu amigo Jerry Seinfeld: it’s a book! Há
todo um universo vocabular próprio para o armazenamento sentimental de livros.
Estoque é coisa de livraria; nós, leitores, somos book hoarders, entesouramos
nossos livros como herança, legado e, como sói ser com toda boa palavra, peso.
Parte do fascínio que temos ao
adentrar a cornucópia de estantes chamada biblioteca é a multiplicidade ainda
suspensa de rotas a traçar, só requerendo nosso tempo e desejo. O anseio pelo
entesouramento de livros não lidos, que se multiplicam como praga e, em pouco
tempo, almejam substituir as vigas e colunas da casa (como na bela imagem
estrutural de O irmão alemão), decorre de um anseio mais profundo, o
desejo de uma biblioteca particular, capaz de repor, ao mais curto alcance, as
infinitas possiblidades de alumbramento.
Um dos mais perspicazes leitores
das últimas décadas e colecionador assumido, Umberto Eco nos diz que a
biblioteca representa, mais do que um estoque de lembranças, uma vasta pletora
de possiblidades de encontro com a “memória universal”:
“a biblioteca não é apenas o lugar
da sua memória, onde mantém aquilo que leu, mas o lugar da memória universal,
onde um dia, no momento fatal, poderá encontrar aqueles que outros leram antes
de você. É um repositório onde no limite tudo se confunde e gera uma vertigem,
um coquetel da memória erudita.”1
Cabe ressalvar, no entanto, que o
acesso à “memória universal” que a biblioteca pessoal permite é sempre afetivo.
Trata-se de um compósito complexo de afinidades eletivas, promoções da Amazon,
encontros fortuitos no sebo da esquina, alguns regalos, indicações de amigos,
lançamentos de conhecidos e, inevitavelmente, respeito e desrespeito ao cânone.
As estantes ofertam uma espécie de
microcosmo pessoal de seu dono. Nesse âmbito, o peso dos livros lidos e não
lidos se equivalem. É na mistura, na decantação entre o que se lê e o que se
coloca como possibilidade ad eternum que a personalidade se gesta:
prevaricar a leitura de um livro, por mais que se queira disfarçar, é gesto
ativo, escolha. Ainda não subi A montanha mágica. Mas vaguei em duplo
périplo linguístico por Dublin com Leopold Bloom.
Estantes são herança. Nascemos com
uma, mesmo que imaterial. Parte de nossa formação de leitores é identificar
essas leituras sem rastro que nos formam e, assim, decidir o que fazer com
elas. Pode ser uma Bíblia sempre aberta nos Salmos na casa da avó, um Manifesto
comunista oculto entre os travesseiros ou a proliferação invariável de
hebdomadários (Seleções? Veja? Turma da Mônica?), sobejamente consumidos sem
lastro.
Talvez a maior contribuição de Eco
seja a da desculpa perfeita: quanto mais conhecemos, mais queremos conhecer,
logo, mais acumulamos livros não lidos. Afinal, um repositório de livros não
lidos é uma importante ferramenta de pesquisa. Mas no caso de alguém que mora
em uma grande cidade, com fácil acesso a internet e boas bibliotecas e
livrarias, faz sentido construir para si tal empreitada?2
Seja como for, subjacente a toda
empresa bibliográfica que se preze, faz-se sentir seu inevitável senso agônico
de incompletude: “toda biblioteca instalada em um lugar privado, formada por
obras bem reais, dispostas para consulta e a leitura, não poderia ser, malgrado
suas riquezas, nada mais que uma imagem truncada da totalidade do saber
acumulável”.3
*
Eu sou daqueles que crê no tempo
do livro. Não se trata de vida útil ou taxa de decomposição da celuloide, mas de
um descompasso quase inevitável entre a compra e a fruição. Já tentei diversos
métodos para me forçar a avançar no cipoal de páginas não viradas: manter os
livros no plástico, como colecionadores de action figures (e digo que
não vejo sentido em privá-las da primeira parte de seu nome); empilhá-los em
lugar visível e obstrutivo; deslocá-los alguns centímetros à frente dos demais
na estante, causando incômodo visual que me obrigaria a lê-los de pronto para
manter minha sanidade organizacional. Mas meus caprichos de leitor, sôfrego e
volúvel, espanam qualquer logística.
De volta ao argumento de Eco, o
cercar-se de livros como meio de afastar qualquer saciedade intelectual tem seu
valor, mas e quanto aos livros já lidos, cabe mantê-los? O quanto a preservação
de livros em nossas estantes não é apenas um ato reflexo de acumulação? Ou,
pior, apenas um jeito de justificar nossos gastos? Enquanto permanece na
estante, o livro é útil, paga seu investimento. Mas ao doá-lo, perdemos
dinheiro.
Parte da tensão se deve a
imbricação entre mercadoria e antimercadoria que o livro representa. Embora
pressuponha, idealmente, o “desocupado leitor” instado por Cervantes em seu
prólogo, o livro também pertence ao tempo do negócio. Se para roupas podemos
adotar métodos bastante práticos, vinculados ao uso efetivo das peças (como o
famoso método 333), com livros a coisa é um pouco diferente. Talvez eu não tenha
usado nenhum DeLillo desde o último verão, mas certamente não quero abrir mão
de sua companhia em eventuais serões de primavera.
Um método que já adotei foi o de
expor meus livros trocáveis ao vilipêndio dos sebos. Nessa interação, 40 livros
variados convertem-se em R$50-60,00 disponíveis para troca (na qual se inclui o
lucro do sebista). Vali-me deste requinte de crueldade quando precisei mudar de
apartamento, e, após algumas visitas, mais de 100 livros foram permutados por
pouco mais de uma dezena, abrindo considerável espaço nas estantes para livros
que efetivamente queria ler. Mas ainda permanece, em tal gesto, algo do homo
economicus e seu anseio por não se sentir completamente lesado.
A solução seguinte, e que é por
ora minha favorita, é o desapego direto. Se não consigo encontrar pessoas
específicas a quem entregar os livros, posso ofertá-los a bibliotecas, embora
algum entrave burocrático não seja raro. Meu método consistia em levar, após
árdua seleção, um ou dois livros por vez (e eventualmente jornais e revistas) e
deixá-los na estante de doação do Parque da Água Branca (SP), que possuía um
incrível espaço de leitura ― uso verbos no passado tanto por uma
mudança recente de cidade quando pela lamentável atitude da prefeitura de SP em
decretar o fechamento, em plena pandemia, de um espaço tão vital. Para além
qualquer meneio filantrópico, a idade e um espaço físico limitado têm me
tornado um pouco mais criterioso com os livros que compro, leio e sobretudo
guardo.
O esvaziamento das estantes, naturalmente,
é sempre parcial e melindroso, e a construção de uma “antibiblioteca” que, a
rigor, deveria ser composta apenas de livros não lidos, é uma utopia ―
ou apocalipse, pois implicaria o apagamento da memória física do leitor. A solução
conciliatória: let it be. O entremeio de livros lidos e não lidos traz
uma imagem mais completa de quem somos, de nossos sucessos, anseios e
fracassos. Estipula também uma visão de um futuro possível, não teleológico, em
que a estante permanece mutável, mantendo algumas figuras-chave, mas sempre abrindo
espaço a novos ocupantes.
*
Para Dante, como lembra Eco, Deus é
a biblioteca das bibliotecas, o um-só-volume, fac-símile do Universo. Borges,
em “A biblioteca de Babel”, especula sobre um “grande livro circular de lombada
contínua. [...] Este livro cíclico é Deus”.4 Acho um pouco
presunçoso clamar por direitos iguais para minhas brancas estantes em
barafunda, mas creio que, para o observador certo, elas garatujam um incerto
atlas de afetos e aflições, suspiros e saudades, conquistas e comiserações.
Recuperando um uso obsoleto,
‘estante’, enquanto adjetivo de dois gêneros, refere-se a alguém que “está ou
esteve, que vive ou vivia, residente” (Houaiss) em determinado lugar. Dê-se a
toda palavra o peso que lhe cabe. Símiles do rosto humano, estantes têm
fisionomia, uma feição característica que as distingue, mas não as aparta da
história. Reverberando o lema montaigniano, elas compõem um retrato não do ser,
mas da passagem. Pois estantes são herança ativa, profusamente cultivadas à
imagem e semelhança de seus donos.
Notas
1 Ver o documentário Sulla memoria,
disponível no YouTube. O trecho encontra-se aqui.
2 Penso aqui exclusivamente na
acumulação de livros físicos. Os livros digitais, por sua aparente
invisibilidade, constituem outro tipo de problema que merece ser analisado em um
texto à parte.
3 CHARTIER, Roger. “Bibliotecas sem muros”. In: A ordem dos
livros: Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII.
Tradução de Mary Del Priore. Brasília: Editora UnB, 1998, p. 87.
4 BORGES, Jorge Luis. “A
biblioteca de Babel”. In: Ficções. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 70. Como bem lembra Roger Chartier, a
pertinência da recorrente imagem do livro como representação de Deus, do cosmo
ou mesmo do corpo humano depende intimamente da materialidade do livro enquanto
códex, ou seja, um livro “composto de cadernos, formado de folhas e de páginas,
protegido pelo encadernamento”. A emergência do livro digital e da textualidade
eletrônica certamente terá impacto sobre essas representações imagéticas,
afinal “Nenhuma ordem de discursos é, de fato, apartável da ordem dos livros
que lhe é contemporânea.” CHARTIER, Roger.
“Post scriptum – Do códex à teça: as trajetórias do escrito”. In:
A ordem dos livros, cit., p. 106.
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