Billy Budd, de Herman Melville
Por Pedro Fernandes
É verdade que o trabalho da literatura,
por mais que se acuse do contrário, não se estabelece pela alteração das coisas
ou dos destinos sociais. No entanto, nela se manifesta o espaço privilegiado
para o aceso debate sobre aspectos que atuam nessas modificações. E, talvez por
isso, toda vez que as sociedades recrudescem seus limites de liberdade, logo se
encontre na literatura o papel de bode expiatório e, consequentemente lhe
imprimam a censura. Exemplos sobre o tratamento questionador exercido por
algumas obras estão em toda parte e este pequeno texto de Herman Melville é um
deles.
Ainda nos instantes iniciais da
narrativa, o narrador de Billy Budd recorre ao discurso de verdade para
justificar o que conta. Diz estar fora do grupo de ficcionistas que ignoram o
fatual e se deixam seduzir pelo fabular; as provas, apressa-se em mostrá-las,
se oferecem por uma variedade de atalhos que adiam o acontecimento principal e
ao mesmo tempo demonstram que é alguém versado nos acontecimentos da história e
familiarizado com os detalhes de natureza variada, da arte da marinhagem, às
fisionomias das personagens e o ambiente de uma embarcação de guerra. E é numa
dessas circunstâncias, agora passado o episódio principal da narrativa, que
este narrador cioso de sua atividade de contar, se refere a um acontecimento
passado em 1842 na Marinha dos Estados Unidos:
“Não é inverossímil supor que o
ânimo deles tenha assumido feições mais ou menos semelhantes às da atormentada
disposição de espírito que, no ano de 1842, incitou o comandante do brigue Somers,
da Marinha dos Estados Unidos, a decidir-se, à luz do chamado Código de Justiça
Militar, código este que fora baseado na legislação antimotim inglesa, pela
execução de um aspirante de marinha e dois marujos, acusados de planejar um
motim para assumir o controle do brigue. A resolução foi aplicada não obstante
os tempos serem de paz e não faltaram muitos dias de viagem para o retorno à
pátria. E o ato foi vindicado por um tribunal de sindicância posteriormente
instalado em terra firme. Trata-se de fato histórico, aqui mencionado sem comentários.
É bem verdade que havia diferenças entre as circunstâncias a bordo do brigue Somers
e da nau Belipotente. Mas o sentimento de urgência, justificado ou não,
era o mesmo.”
O deles referido na primeira
linha do excerto é o grupo de autoridades formado às pressas por ordem do
comando do HMS Belipotente para decidir sobre a morte repentina do capitão de
armas, depois que este confessa ao comandante saber sobre a liderança de um motim
em curso no navio idealizado pelo recém-recrutado Billy Budd, um rapaz cuja
aparência física e comportamental desperta os primeiros olhares de todos e o
interesse cobiçoso de outros tantos. O pequeno desvio assumido pelo narrador
finda por ressaltar as diferenças entre o caso narrado e o acontecimento
histórico, o que, à primeira vista parece se revestir de um efeito
contraditório sobre o tratamento de verdade que este mesmo narrador diz assumir
para com o que conta.
Ora, vigora uma perspicácia nem um
pouco discreta. O narrador associa os dois episódios, mas prefere não se comprometer
em levantar acusações; espera apenas que o seu narratário acompanhe o relato e
se decida por leitura própria sobre os dois acontecimentos que, conforme ele
próprio diz, se diferem em circunstância, mas não em sentido: o uso de um
tribunal de exceção com o efeito de condenar homens por uma lei totalmente
adversa aos contextos em que estão submetidos. Isto é, Billy Budd, se
mostra como um libelo contra a chamada lei antimotim, utilizada de forma
recorrente e variada por uma corporação que, apesar de constituída de
identidades das mais diversas, se mostra aferrada ainda aos instintos mais
bárbaros. É por através do olhar do marinheiro que adiante será acusado da
revolta que logo compreendemos esses impasses: Budd é um jovem destituído de
família, integrado à marinha mercante e recrutado por força alheia para a
marinha de guerra da Coroa Britânica. Ao chegar no Belipotente, logo se depara
com um homem castigado ao açoite público à plena força, para o regozijo do
capataz e dos espectadores, um caso que lhe favorece desde então um excesso de
zelo a fim de que nunca passar por semelhante humilhação.
Este caso não está submetido apenas
ao trato histórico. A narrativa investe continuamente numa investigação sobre a
natureza e o confronto entre os instintos humanos. Assim, a denúncia que se
oferece contra o jovem Billy Budd é produto de uma aguçada antipatia, mais que
isso, uma força sombria que se instaura repentina e ocasionalmente entre o acusador
para com o novo homem da corporação. O impasse é simbólico e recupera parte de
suas feições no mito genesíaco do anjo caído. Budd é uma figura ingenuamente
boa, um jovem que de imediato desperta os sentimentos de reconhecimento, uma
criatura bem-quista por todos que com ele convivem ― daí este seu tratamento carinhoso
―,
mas, incapaz de administrar seus instintos, vê-se, por um golpe de insanidade,
passado, de um minuto a outro, ao lugar semelhante do seu detrator.
Numa de suas reflexões, o narrador
de Billy Budd, assim diz: “Quem saberia traçar no arco-íris uma linha
demarcando o fim do matiz violeta e o início do laranja? Percebemos com clareza
a diferença entre as cores, mas qual é o ponto exato em que uma penetra a outra
e se mescla com ela? O mesmo acontece com a razão e a insanidade.” Está explícito,
desse modo, qual o tema principal dessa narrativa: uma parábola sobre a natureza
humana e suas vicissitudes.
O homem em Herman Melville,
atravessa um impasse que não se restringe à camada física da realidade, mas em
constante dilema com sua dimensão simbólica. Isso justifica que o conflito
entre essas duas personagens, o capitão de armas e Billy, embora se realize no
plano material se processa num âmbito do imaginário: são os fantasmas que
dominam os sentidos daquele e a impossibilidade deste de alcançá-los e
compreendê-los em sua integridade. Enquanto Claggart age ativamente para atender
seus interesses sórdidos, o jovem grumete, talvez cegado por uma ingênua
vaidade que só o permite ver o mundo à sua semelhança, acredita que o capitão se
nada lhe tem contra, ao menos o ignora respeitosamente.
É possível ler a história desta queda
e os desenvolvimentos a partir dela suscitados, também entre os limites da
inocência e da culpa. Nesse embate, fica mais ou menos visível, que embora o
narrador exerça o papel de denunciador de uma excrecência da ordem, não se
compromete por uma ou outra determinante; ao invés disso, prefere assumir o
impasse entre esses lugares até o fim com a execução do disparate e as
situações dele desencadeadas ― sempre em crescendo até
culminar no absurdo. Seu interesse é o de demonstrar que o homem, capturado pelos
limites da razão pura, está reduzido a uma abstração. Assume-se, desse modo, um
trânsito entre a racional e o simbólico, interstícios da civilização.
O desenlace desse jogo de forças
que invoca o embate entre razão e barbárie é provocador. Por mais que Herman
Melville capture pelas lentes do literário toda a riqueza do mártir, o absurdo
do fim se oferece como uma radical tentativa de questionar os sentidos da pena
capital ou ressaltá-la enquanto perduração do bárbaro numa sociedade
administrada pelas rédeas da razoabilidade. O efeito é semelhante ao utilizado na
literatura de um Victor Hugo ou de um Charles Dickens, sem quaisquer afetações
emocionais recorrentes nestes dois. Recuperar um episódio dos mais recorrentes
no seu tempo com o intuito ― o mesmo neles todos ― de
suscitar o debate que pode assumir várias frentes, nesse caso, mesmo as da jurisprudência,
centrada entre os polos da culpa e da inocência e nos valores da justiça.
Esta novela é um puro exemplo de
que uma qualidade fundamental da literatura é o equilíbrio entre o ético e
estético; se o aspecto histórico foi ou não superado, não importa e nem existe
uma constância do literário para um ou outro lado. No entanto, o texto permanece
ora reverberando as marcas negativas desse instante na pequena história social ora
reafirmando um interesse em denunciá-las ora ainda interessado em perscrutar o
que em nós habita e não alcançamos nomear.
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