A lua e as fogueiras, de Cesare Pavese
Por Pedro Fernandes
Todo aquele que saiu de sua terra
de origem carregará consigo, no mais íntimo, o desejo do retorno. Uns, talvez desavisados
porque seduzidos demais pelas artimanhas do saudosismo, cumprirão o caminho de
volta; outros, errarão continuamente, como quem perdeu alguma coisa e a cada
vez que dela se aproxima lhe escapa; outros ainda, céticos demais, preferirão
constituir suas raízes no lugar de destino. O narrador de A lua e as
fogueiras perfaz uma síntese dessas três maneiras de estreitamentos do
homem com seu lugar origial, ainda que não consiga precisar com rigor o ponto
do início de tudo.
Colocado em criança para a roda dos
enjeitados, é uma família camponesa dos arredores de Canelli que o toma como
cria da casa não pelo interesse de acrescentar ao ajuntamento um filho e sim a
renda de cinco liras pagas uma vez ao mês pelo Estado. O agravamento da miséria
se passa com a destruição da lavoura numa geada repentina; sem condições de
honrar com os compromissos financeiros da colheita, Padrino, Giulia e Angiolina
se arranjam como arrendatários noutra propriedade e, ainda sob os auspícios do
padre, o fatalismo que olha com garras famintas para o adotado é desfeito com a
integração do menino como trabalhador num ajuntamento rural de melhores posses.
Jovem, este narrador tomará as próprias rédeas da vida e parte para viver nos
Estados Unidos; anos depois da segunda grande guerra, retorna para a Itália,
fixa-se em Gênova e a cada ano visita os arredores da sua infância.
A narrativa começa a se
desenvolver a partir de quando este homem de meia-idade e com todos os
primeiros vínculos desfeitos (pereceu a família adotiva, mudou-se os povos e os
lugares de sua primeira juventude) começa a pensar na alternativa de readquirir
uma nesga de terra que seja, onde possa, agora sob uma novas condições, reaver
seus vínculos com a origem. Do passado entre Gaminella e Mora, o único conhecido
que resta ao nosso narrador é Nuto, espécie de seu Outro. Mesmo distante de seu
país, o acaso resolve manter, pelo menos de um lado os laços estabelecidos no
passado e agora mostrados como para um vida toda: o narrador sabe por
terceiros, numa das muitas andanças pelo interior dos Estados Unidos por
trabalhos dos mais variados, sobre a existência e as histórias de um músico
polivalente capaz de seduzir a todos com sua música.
O retorno aos lugares da infância
e o reencontro com Nuto são propícios para o trabalho de reanimar as memórias
que assim organizam a narrativa; são pelo menos três temporalidades que se
desenvolvem intercaladas ao presente da narração. A primeira, lança o narrador
em direção aos duros tempos da infância em Gaminella, alimentada pelo contato
com a propriedade original, pela imaginação, e, a real, pelo convívio que
desenvolve com a família do caseiro, constituída esta sob os mesmos alicerces
da miséria, com um agravante: o desfazimento da ordem da casa, o cinzelamento da
violência ora de um machismo que atinge as mulheres e destas se irriga para
todos do sítio, o cão e o menino coxo Cinto com quem o narrador desenvolve um
afeto porque nele encontra a imagem de sua infância deixada em alguma parte e
nunca superada e por isso sente-se motivado a oferecer novos sentidos capazes
de fazê-lo descobrir o mundo fora dos seus arredores e dos limites opressivos
aos quais está duplamente condenado ― os naturais e os familiares.
Esse tratamento entre o narrador e
Cinto é projetado ainda pelo convívio com Nuto; no passado, o então menino de
alguns anos mais à frente conseguiu oferecer as linhas para que fosse capaz de
deslindar seu entorno e o mundo. Se agora, este homem que traçou um caminho
inusual aos bastardos de seu tempo, em parte, é um mérito do amigo que, mesmo
ligado à terra e suas simples leis do trabalho brutal, manteve alguns privilégios
pelo talento artístico para a música. É bem verdade que, ao contrário do
narrador, este iniciador faz o caminho oposto do seu discípulo: a escassez de
oportunidades de melhor retorno, levam-no a deixar a música e as contínuas
viagens pelos lugares profundos da Itália para se agarrar ao ofício do pai na carpintaria.
No reencontro entre os dois, o
narrador se depara não apenas com uma reaprendizagem dos sentidos apreendidos
quando vivia nas terras de sua infância, mas com outro amigo, marcado pela
amargura de estar preso à terra, ao circuito de suas repetições, condição que o
desenraizado inveja e procura de alguma maneira restabelecer, como se isso fosse
mesmo a necessidade de ficar em paz com o mundo; esse retorno, por sua vez,
revelará ainda outra cara lição: só aos conformados com o espetáculo do mundo,
redizendo a síntese de Ricardo Reis, estão entregues à ordem de paz com seu
lugar. E isso não é o caso de Nuto.
A segunda temporalidade é a
adolescência e a primeira juventude na propriedade de Seu Matteo. Se na
primeira prevalece a nostalgia de uma infância miserável, corre certa certeza
do mundo ―
este é entre as fronteiras da Gaminella ― na segunda domina a curiosidade pela
descoberta e a angústia pela imposição de um mundo que se abre ilimitado mas é
agora fixado por seus patrões. Um episódio que esclarece esse instante é
quando, animado com a possibilidade de ir a Canelli para as festas do ano, o
jovem é impedido pelos da Mora simplesmente pela sua condição de miserável; esse
instante lhe favorece o apagamento de uma resignação com o nascimento de uma
fúria escavada pelas garras de um ressentimento: como é possível o trabalho
contínuo, o respeito à ordem e, na primeira (e possível única) oportunidade, não
se estabelecer um retorno dos patrões. Tem lugar aqui o estabelecimento dos
impulsos para uma independência do homem.
O que nosso narrador encontra de
memórias fora da sua angústia é o estabelecimento dos laços de amizade com Nuto
―
principiados casualmente ainda nos tempos de Gaminella, mas estreitados mesmo
nesse tempo. Antes de desenvolver seus impulsos fora dos limites de sujeito
ajustado aos limites que lhe são determinados, é Nuto quem o educa para pensar
sobre o círculo no qual o amigo se nota condenado; primeiro incita-o para a
arte e depois para as condições suas e alheias, levando-o a reparar o mundo com
olhos fora da mirada ingênua. É aqui que se estabelece os instantes mais
bonitos da narrativa pela prevalência de certa crença na libertação do homem
pelo homem. Ainda que mais tarde este narrador não encontre os resultados positivos
conseguidos com essa liberdade, ignore mesmo a melhor condição financeira dela
resultada, para quem ficou estreitado à terra, a ruptura com o lugar de origem significará
a única possibilidade de ruptura com a inalterabilidade do ritmo da existência.
No retorno do narrador aos
arredores de Canelli, vez ou outra a terra cospe os cadáveres sepultados nas
covas rasas durante os longos conflitos na guerra e nas guerrilhas. Há um
passado doloroso, violento, cruel, que simbolicamente irrompe às consciências e
aos convívios dos dessa região. Apesar dos longos tempos de luta, das várias
vidas ceifadas daqueles que ficaram e precisaram se somar nas trincheiras de
resistência ao nazismo e ao fascismo, cada retorno de um morto revela que as
ideologias do horror não foram superadas.
Nuto demonstra-se profundamente
incomodado que toda a luta e as mortes para uma possibilidade outra de vida
pareçam puro fracasso uma vez que os mesmos discursos de ódio são reavivados
com todas as cores brutas dos ideologemas do mal na maneira de pensar dos que
restaram ou dos que chegaram depois dos horrores. Quer dizer, incomoda-o essa
condena de que tudo precise mudar para permanecer como está, tal como
denunciado noutro escritor italiano, Giuseppe Tomasi de Lampedusa.
Aos olhos do narrador, por
exemplo, o passado que não viveu e sobre o qual não guarda qualquer dimensão,
está sepultado mesmo que o acaso trate de fazê-lo irromper e os resquícios que
persiste em consciências como as do amigo precisam se resolver no presente, sem
silenciamentos ante os ataques dos ancorados nas sementes do mal. Tem algum fundamento,
mas quaisquer enfrentamentos com o histórico é doloroso o suficiente para
favorecer as alternativas de tocá-lo sob pena de outra vez reacender o conflito
de morte. De toda maneira, Cesare Pavese denuncia a certeza vã que se estabelecia
com o fim da segunda guerra: as ideologias, quaisquer que sejam, não morrem. Cedo
ou tarde, elas naturalmente irrompem, como esses cadáveres cuspidos pela terra.
E a terceira temporalidade que
organiza as memórias desse narrador são as do período vivido nos Estados Unidos,
circunstância simbólica que, no âmbito de formação do herói, significa a
errância, o instante entre a aprendizagem e o alcance de uma integridade do ser
no mundo. O itinerário, no entanto, se remonta as circunstâncias do clássico é
porque a errância de toda personagem tem sua origem no périplo do herói e não
porque se ofereça uma restituição do tipo pela narrativa. Esse tempo não é
avivado com a mesma distinção dos outros dois; através dele, o narrador ressalta
uma conduta que o constitui desde sua incerta aparição no mundo: a busca pela
ligação à terra acentuada pela condição de distanciado do país de sua infância.
É isto o que podemos designar como a imaginada reconciliação com o lar e consigo.
Imaginada porque esse alcance do mundo reside exclusivamente nas possibilidades:
o cruzamento entre as vidas do narrador e do seu amigo, cada uma marcada pelo
desejo contrário dos dois (um preferia não ter saído de seu lugar, o outro sim)
demonstra claramente os impasses possíveis entre o homem e a terra.
Este romance de Cesare Pavese toca
ainda em várias outras questões que perpassam o ideal de pertença e os impasses
entre a memória com o passado; ressaltamos a violência, a miséria e o prevalecimento
dos resquícios mais danosos da ideologia. Mas poderíamos acrescentar a
subserviência do homem aos poderes de mando, isto é, as explorações gratuitas
do homem pelo homem, o fatalismo dos fixados à terra e incapazes de olhar para
fora dos seus limites ou na via contrária dos que dela saem mas não encontram o
desfazimento do fatalismo; o valor inestimável da amizade, possivelmente a
alternativa mais viva que nos anima os sentimentos de à-vontade no mundo; o
impasse entre o urbano e o rural, este percebido como parte de um sistema de
leis em embate com aquele; os conflitos ideológicos que cindiram profundamente
toda a Itália; e as aprendizagens que continuamente nos modificam para com o
lugar de pertença para com os nossos convívios. Estes são outros dos muitos caminhos
sugeridos em A lua e as fogueiras.
O próprio escritor parece motivado
a acreditar com o seu narrador e portanto inclinado a defendê-lo na sua
nostalgia de um paraíso perdido e por preferir um tempo marcado pela inocência
do homem, que, mesmo com suas dores, sentia-se feliz porque integrado ao seu
lugar de pertença. A perda dessa ligação, manifesta com certa reprodução do
episódio de expulsão do casal genesíaco, inaugura um tempo de errância, deserção
e desfazimento das vidas, tudo testemunhado por esse último dos sobreviventes.
O fim disso tudo é a contínua tentativa de retorno; tentativa, porque é impossível
concretizar esse desejo ― estas, apesar de vivas pela memória, são frias e são
outras; e, contínua, justamente porque se é impossível de readquirir o passado
na sua inteireza. Há um vasto campo na literatura sobre esse impasse e nele este
romance de Cesare Pavese figura entre os mais interessantes.
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