Vontade de ferro, de Nikolai Leskov
Por Joaquim Serra
Nikolai Leskov (1831 - 1895) foi um
escritor russo do século de ouro. O autor também ganhou espaço na Coleção Leste
da editora 34 com a publicação do seu fabuloso Lady Macbeth do Distrito de
Mtsensk. Não menos importantes são as duas coletâneas de contos, A fraude e
outras histórias e Homens interessantes e outras histórias. Leskov, que é “o
mais original dos escritores russos”, segundo Górki, também é reconhecido por
Thomas Mann como alguém igualável a Dostoiévski, mas não teve o mesmo destino
deste escritor. Como ressalta Elena Vássina no ensaio presente no primeiro
livro de contos citado aqui, Leskov, entre todos os escritores clássicos,
“talvez seja o único que, durante sua vida, não tenha ganhado o devido
reconhecimento nem dos leitores, nem dos críticos” (2012, p.203). O que nos
leva a supor, talvez, que o famigerado texto de Benjamin, O narrador, seja mais
lido que o próprio autor que ele considera um narrador distante dos outros pela
experiência vivida e ouvida ao narrar. Isso se dá, ainda segundo Benjamin, pela
formação de Leskov, “o emprego de agente russo de uma firma inglesa, que ocupou
durante muito tempo, foi provavelmente, de todos os empregos possíveis, o mais
útil para sua produção literária” (1987, p. 9). As viagens enriqueceram o autor
e permitiram colocar em prática essa experiência em sua literatura. É essa
experiência que o narrador de Vontade de ferro tenta transmitir a seus
ouvintes.
Vontade de ferro, de 1876, começa
com um tema costumeiro para os leitores familiarizados com a literatura russa: a
comparação ou disputa entre alemães e russos. “Era uma das mais corriqueiras
discussões de nosso tempo” (2020, p. 9) alerta o narrador. Fiódor Afanássievitch
Vótchniev, assim como Jacobina de O espelho, estava presente na discussão, mas
não participava dela. Porém, também como no conto machadiano, tem sua vez para
contar uma história que viveu e toma a palavra para ilustrar aos amigos
presentes o que seria a tal “vontade de ferro” dos alemães. Assim, esse
narrador testemunha começa a tragicômica história de Hugo Pektoralis.
A personagem Vótchniev, assim como
Leskov, trabalhava à época em uma companhia comercial inglesa e esperava a
chegada do novo engenheiro alemão Hugo Pektoralis, e também das máquinas que
foram despachadas com ele. Hugo vinha da cidadezinha de Doberan e seu
vocabulário se limitava a quatro palavras em russo, mas era um “especialista em
sua área e tinha vontade de ferro” (2020, p. 18). O viajante alemão não iria até
a companhia, por isso coube a Vótchniev, o narrador, o transporte das máquinas
e do alemão que chegaria logo em seguida. Começa então a saga de Vótchniev à
procura do alemão perdido e sem dinheiro para sobreviver. Hugo é encontrado em
uma situação quase deplorável, mas conserva em si e em seu diário – em que
marca cada passo seu – a sua vontade de ferro. O narrador o leva consigo e
rapidamente o alemão aprende o russo, em meio à troça dos companheiros de
trabalho pelos erros cometidos, e sua vontade, posta em prática no trabalho,
faz gerar cada vez mais ganhos. Ganhos que têm um destino definido: o
casamento.
Hugo consegue trazer a noiva da
Alemanha e, como as terras russas produzem para ele tanta riqueza, decide se
casar e ficar no país estrangeiro. A história é recheada de diálogos
interessantes que não deixam o leitor perdido, mas ajudam a desenhar mais
nitidamente o caráter de cada personagem – muito do próprio Hugo é definido por
essas conversas. Muitos desses diálogos são gogolianos, causam riso, e também o
é a descrição da noiva de Hugo. Acontece, porém, que o Hugo não para de pôr sua
“vontade de ferro” em prática, mas em terra russa. Depois de somado um bom
valor, o Tchítchkov alemão – é assim mesmo que o narrador se refere a ele –,
sai das Almas Mortas para tomar posse daquilo que o dinheiro pode comprar; uma
propriedade em que poderia trabalhar para si mesmo. Irredutível por sua
vontade, Hugo quer dificultar a vida do vizinho atrapalhado Safrênytch ao
impedir seu “acesso ao mundo”, trancando de vez o portão de saída. Numa rápida
batalha judicial, o alemão é condenado a pagar pela clausura de Safrênytch. Daí
então duas vontades são postas em jogo, a russa que quer se aproveitar do
evento para extrair dinheiro, e a do alemão, que não quer ceder para não perder
de vista sua vontade de ferro. Hugo é o estrangeiro que caiu numa trama
gogolina, e o cabo de força entre as duas existências, russa e alemã, é a força
principal da história de Leskov.
Vale lembrar como surge a história
do narrador testemunha (o narrador de Khadji-murat, de Tolstoi, evoca sua
história de forma parecida, mas, a partir disso, há diferenças significativas)
e o ato de narrar cumpre o papel da experiência para os ouvintes. Sobre essa
natureza da narrativa ainda conservada em Leskov, Benjamin comenta que “ela tem
sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária” (1987,
p. 200).
Elena Vássina comenta como era
difícil a posição de Leskov no meio literário; o autor tinha o poder de não
agradar a ninguém e – como aconteceu não só na autocracia, mas também no
período soviético – teve textos proibidos pela censura. Essa incompreensão da
crítica está intimamente ligada ao que há de mais moderno no escritor, que
“antecipou as experiências estéticas da modernidade ao criar uma nova dimensão
da linguagem literária, surpreendente e peculiar, rica e pitoresca, plena de
regionalismos, de jargão profissional, mesclando expressões do eslavo
eclesiástico e da fala popular” (1987, p. 204). Leskov encontraria em Víktor
Chklóvski, importante formalista russo, um leitor atento a essa
desautomatização da linguagem (grosso modo, a linguagem não cotidiana do texto
literário, segundo os formalistas) por conta de suas inovações literárias. Em Vontade
de ferro, encontra-se a expressão “rastejar” deslocada de seu sentido original,
o que gera no leitor e na trama, usando o recorrente termo de Chklóvksi, um
estranhamento.
No posfácio da edição brasileira
de Vontade de ferro, Francisco de Araújo comenta que, quando perguntavam a
Leskov de onde tirava suas histórias, ele respondia: “deste baú”. Por isso,
como era de se esperar do experiente narrador Leskov, ainda segundo o tradutor,
o alemão de fato existiu, como consta em sua biografia. Vontade de ferro, como
se disse acima, teve sua primeira publicação em 1876. Teria uma segunda edição
publicada em 1942, “quando corria o décimo terceiro mês do bloqueio militar
alemão à cidade de Leningrado” (1987, p. 159). Trata-se, pelo seu tema, de um
livro que falou e participou da história russa e que chega agora para os
leitores brasileiros.
Os livros citados neste texto são:
LESKOV, Nikolai. Vontade de
ferro. São Paulo: Edições Jabuticaba, 2020.
LESKOV, Nikolai. A fraude e
outras histórias. São Paulo: Editora 34, 2012.
LESKOV, Nikolai. Homens
interessantes e outras histórias. São Paulo: Editora 34, 2012.
BENJAMIN, Walter. Magia e
técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
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