Sobre um retrato de Machado de Assis
Por Pedro Fernandes
Não faz muito tempo e passamos por uma
intervenção proposta pela Faculdade Zumbi dos Palmares que chamava a atenção
para um Machado de Assis preto. A ideia sob o título de “Machado de Assis real”
visava, segundo palavras do texto então divulgado, constituir uma “errata
histórica feita para impedir que o racismo na literatura seja perpetuado”. Os
manifestantes chamavam a atenção para um Machado de Assis negado pela
elite intelectual do país com tentativas de branqueamento dos registros
fotográficos sobre o escritor. O chamado apresentava uma revisão em cores (veja aqui) de
uma fototipia do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas realizada por
volta de 1892 de autoria atribuída a Juan Gutierrez (imagem).1
Passou-se um ano da ideia e se
considerarmos a sua repercussão parece que arrefeceu os ânimos de uma discussão
antiga. Como toda imagem de apelo emocional, o manifesto logo se converteu
viral nas redes sociais, depois alcançou projeção em vários jornais e mídias
dentro e fora do Brasil, mas, tirando uma ou outra manifestação aleatória e recusável, a
proposta pareceu ponto pacífico. Este certo silêncio em torno do projeto pode
apontar duas direções: dificilmente questionamos os conteúdos virais e tendemos
a aceitá-los como real, para empregar o termo título da campanha; pouco
importa se Machado de Assis era ou não era preto. Ou mesmo essas duas
possibilidades juntas. Mas, não é bem assim.
Um ano antes da campanha, em 2018, a
descoberta pelo pesquisador Felipe Rissato de uma fotografia do Bruxo do Cosme
Velho publicada na revista argentina Caras y caretas em janeiro de 1908
reabriu um debate de raízes ainda mais profundas. Os traços, todos repararam,
destoavam daqueles que chegaram até nós, incluindo os da fototipia de 1892. O
registro, além de ampliar o reduzido arquivo fotográfico do escritor, logo se juntou
a outro publicado por Raimundo Magalhães Jr. em Machado de Assis
desconhecido (Civilização Brasileira, 1957) no qual se vê, de perfil, um rosto
de cor mais fechada que nos retratos anteriores.
Nos anos quando o retrato dos irmãos
Berardinelli se tornou conhecido, o pesquisador francês Jean-Michel Massa,
autor de A juventude de Machado, já afirmava pelos registros encontrados
em arquivos particulares em Portugal que a cor da pele do escritor em muito se distinguia
do homem nas fotografias encontradas na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
E, enquanto a máscara mortuária do escritor apresenta, segundo alguns leitores,
claras feições afrodescendentes, o registro obituário trata, numa prática que
ainda não era recorrente no seu tempo, de discriminá-lo como de cor branca.
O atestado de óbito, convém lembrar, data do mesmo ano do retrato de Caras y
caretas. Machado morreu em setembro de 1908.
Ainda no século XXI, em 2011, uma
campanha publicitária de um banco público brasileiro levantou um debate: as
redes sociais ainda davam seus primeiros passos, mas a discussão ganhou forma acalorada
implicando uma modificação de atitude em relação aos autores da propaganda. E o
escritor que era representado por um ator branco foi substituído por um ator
preto. As coisas se acalmaram depois do reconhecimento e correção do deslize.
A recorrência desses episódios nos
colocam diante de duas situações: este é um tema ainda não superado e, por
isso, vez ou outra, ele reaparece; e pelas recorrências neste século, ao que
parece, a questão da cor da pele é tornada problema sempre que assunto é o
branqueamento e não certa evidenciação da verdadeira cor do
escritor. Essa segunda constatação encontra aproximação com a aceitabilidade da
campanha proposta pela Faculdade Zumbi dos Palmares, muito embora a validade
do chamativo termo real abra um debate de diretrizes talvez mais inquietantes
e complexas que a questão da raça ou da cor da pele.
Em todos os casos lidamos com
registros de confiabilidade questionáveis para o testemunho do real
enquanto verdade, como parece ser o sentido empregado na campanha. O que
resulta curioso é como a utilização de um registro claramente manipulado ganha
o estatuto de verdadeiro enquanto o registro referido é acusado do mesmo
tratamento de falseamento da imagem verdadeira. Isto é, como se
justifica uma ideia pela utilização do mesmo argumento de condena. Os
consumidores da imagem são manipulados no interior de um complexo simulacro
porque tanto a fotografia branqueada pode ter acentuada o branqueamento
pelos recursos digitais como estes recursos revigoram a camada do preto na
fotografia colorizada; quer dizer, pratica-se, assim, triplo falseamento, o do
registro de origem já falseado conforme acusação e o do registro para a
campanha.
Quando o reino da imagem começou a
tomar forma, o filósofo alemão Walter Benjamin chamava atenção para o rosto
humano como a última das manifestações do valor de culto. Os primeiros retratos
de Machado de Assis datam possivelmente da década de 1860 e a grande maioria estão
de acordo com a moda recorrente então, “a carte de visite, fotografia
copiada sobre papel albuminado e colada sobre um suporte de papel mais grosso
de aproximadamente 10.5 x 6.3cm, algo entre um cartão de visita e um
cartão-postal”, conforme Hélio de Seixas Guimarães e Vladimir Sacchetta pontuam
no texto de apresentação da iconografia sobre o Bruxo do Cosme Velho organizada
por eles. Nosso escritor integra a transição entre o retrato tal como concebido
por Benjamin e o registro fotográfico, quando, já perto de sua meia-idade e fim
da vida (caso do registro de Caras y caretas). Nesse segundo instante
não apenas o valor de culto se atenua; a fotografia passa a ser, nos dizeres de
Susan Sontag, em Sobre a fotografia (Companhia das Letras, 2004),
“experiência capturada”.
A diferença entre o primeiro e o
segundo instante cobra, para este momento, rápido esclarecimento. Naquele, pode
se manifestar tratamentos variados ― ainda que os recursos tecnológicos sejam
limitados os criativos nunca são: qual uma obra de arte, o retrato deve atender
determinados padrões de bom gosto à apreciação. A pose, a vestimenta, o
cenário, tudo compõe a sua elaboração. Na fotografia, prevalece a
espontaneidade, ainda que o registro se refira a um acontecimento de
importância. Por isso que resulta notória o branqueamento verificado
nos retratos de Machado de Assis. Essa questão parece ser ponto pacífico na
discussão, visto que, a ideologia dominante se recusava a enxergar qualquer
atividade intelectual entre os pretos. O assunto, entretanto, não encerra aqui.
A sociedade de Machado de Assis não se
mostra apenas cindida pela questão racial; neste Brasil resultado de violências
das mais variadas formas, há a variante de classe. No caso do escritor, para
que esta, mais que aquela, foi-lhe determinante. Resulta impossível acreditar
que apenas o retrato de um carte de visite tenha constituído em abertura
dos caminhos para o escritor; esta foi feita de duas atribuições: as pequenas oportunidades
franqueadas pelos que guardavam qualquer afeição pelo determinado menino do
Morro do Livramento e a transformação, por sua vez, dessas oportunidades em mobilidade
social. A afirmativa não é gratuita, porque com melhor precisão que a cor, são
as suas origens: nascido na periferia do Rio de Janeiro, filho de um pintor de
paredes de família de escravos alforriados e de uma lavadeira açoriana. As
determinações biológicas, portanto, resultam indefensável que fosse branco,
qual o registro de óbito realça, e que fosse preto, como se quer determinar
agora.
Se formos à definição proposta pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o entrelaçamento de negros
e outras raças constitui os pardos, pessoas que se declaram mulatas, caboclas,
cafuzas, mestiças. É verdade que não sobraram, até o presente, quaisquer registros
do próprio Machado sobre sua condição na complexa teia de tipos raciais
no Brasil, mas a iconografia, mesmo pequena, ressalta essa possibilidade. Seus
registros se avaliados desde as fotografias olhadas pelo olho do francês
Jean-Michel Massa ― três retratos da década de 1860 dedicados ao amigo português
António Moutinho de Sousa ― atestam um jovem franzino, de barba rala, vasta
cabeleira cacheada e lábios vistosos. Essa expressão se repete em outros
retratos da época, estes tomados pelo mesmo estúdio do fotógrafo Joaquim Insley
Pacheco, de quem foi próximo, como sugere numa crônica de 1864 no Diário do
Rio de Janeiro2. “Nos retratos assinados por Insley Pacheco, o
escritor aparece exatamente no mesmo cenário, sentado na mesma cadeira, ao lado
da mesma escrivaninha e praticamente na mesma pose de outros ilustres desconhecidos”,
destaca Hélio de Seixas Guimarães. “Esses retratos, montados em forma de
cartões, eram item obrigatório de sociabilidade chique daquela altura do século
XIX. Costumavam ser trocados entre homens e mulheres bem colocados na
hierarquia social ou em busca de ascensão social. Eram o retrato burguês por
excelência, e, calcula-se, correspondiam a 90% das fotografias produzidas na
segunda metade do século XIX, sempre em composições muito parecidas e redundantes”,
acrescenta.
São do estúdio do “fotógrafo da Casa
Imperial” os retratos em carte de visite de 1874 (aprox.), 1885 (aprox.)
e 1900 (aprox.); em 1876 (aprox.) está um registro realizado no estúdio do
fotógrafo Alberto Henschel; o famoso retrato feito por Marc Ferrez, talvez o
mais espontâneo, data de 18903; um carte de visite de 1891 pelo estúdio
Pacheco & Filho e outro, por Luiz Musso, 1900 (aprox.) completam
parte de uma linha que nos permite atravessar toda a vida de Machado de Assis. É
possível que em todas se observem as mesmas técnicas de manipulação da imagem
pelo uso criativo da luz, mas, comparadas ao retrato revelado por Raimundo
Magalhães Jr. que foi realizado pelo estúdio Henrique e Rodolfo Bernardelli em
1904 o que notamos é a variação das intervenções do tempo que naturalmente
acentuam as feições físicas dos primeiros retratos. Nas fotografias espontâneas
― muito poucas, há três registros com amigos no Hotel do Minho, de 1901, três
fotos de um almoço oferecido pelo ministro plenipotenciário da Colômbia Rafael
Uribe ao prefeito do Rio de Janeiro em 1906, e a referida da revista argentina4 ― repete-se o mesmo caso.
O que tudo isso atesta é sobre a impossibilidade
de se determinar pelos registros fotográficos um Machado de Assis preto e, da
mesma, maneira continuar a insistir com um branqueamento proposital da cor da
pele nessas imagens, como ingenuamente determinou a campanha “Machado de Assis
real”. Até se atesta, como percebemos com a variação das feições físicas, uma
variação da sua elegance; o cabelo aparado, a barba penteada e os ternos
mais afeitos ao corpo parecem atestar a transformação de uma condição social. A
repetição quase invariável da pose parece se constituir com um propósito em que
as marcas originais datam do retrato oferecido ao amigo português. Essa
continuidade é a de um escritor que caminha para a construção de sua efígie, a
sombra que determinará suas feições para a eternidade.
Mas, por mais que possamos recorrer à
prática de um branqueamento dos registros, que sabemos eram comuns nesse tempo,
é suspeito afirmar categoricamente como sendo pura validação de um estamento
ideológico. E isso é um tanto óbvio: há implicações desde as maneiras de
impressão às de conservação dos arquivos; há as técnicas de fabrico do
retrato; e ainda que avançadas para o seu tempo, a baixa resolução das imagens
cobrava dos fotógrafos (como até hoje mesmo nos casos das potentes lentes) técnicas
que valorizassem a luminosidade a fim de garantir a melhor nitidez possível da
imagem. É o que se vislumbra, por exemplo, noutro registro de 1905 realizado no
ateliê Henrique e Rodolfo Bernardelli e que serviu à famosa tela feita pelo
primeiro por encomenda dos amigos do escritor para a Academia de Letras. Sobre o
rosto do escritor incide uma claridade que invade o estúdio por uma janela ou
por uma luz artificial dessas utilizadas no intuito de ressaltar as feições do
fotografado e que, nesse caso específico parecem evidenciar certo aspecto do
homem ilustrado. Mas, nem a pintura resultada daí, embora se acrescente
adornos de composição cenográfica (livros um ramo do carvalho de Tasso enviado
a Machado pelo amigo Joaquim Nabuco) se utiliza de disfarces sobre a cor
da pele. Logo, como, então, é possível atestar, tão expressamente, dos
registros, que isso seja puramente um tratamento ideológico, a
proposital formulação de um embuste de homem branco?
Caberia uma discussão sobre a ilusão
de real fabricada pela fotografia. Não estenderemos esse debate, mas,
sejam acrescentadas três coisas, ainda motivados por Susan Sontag: as fotos dão
às pessoas a posse imaginária de um passado irreal; a fotografia é uma
interpretação do mundo, portanto, ela se torna mundo independente;
a fotografia não reproduz o real, renova-o. E seus usos são destinados a novos
significados. Destinados a carte de visite, os registros de Machado de
Assis, transformam-no em objeto a ser possuído: reproduzem valores
burgueses, mas sobretudo, valores esperados de um modelo do intelectual, homme
de letres. Nesse sentido, é mais adequado compreender que toda sua
preocupação ― admitindo que as escolhas fotográficas tenham sido propositadas e
a hipótese de que na velhice teria o próprio Machado se desfeito de variada
papelada do seu arquivo íntimo num gesto de perpetuação do embuste ― restava em
não misturar a imagem pública com a imagem íntima. Basta compreendermos que
estamos num tempo de manutenção de uma unidade pessoal. O escritor, assim, bem
poderia assumir-se figura ciosa de seu posto e integrado aos costumes de então,
quando as fronteiras entre o público e privado não eram ainda a indeterminação de
agora, tratou de zelar por esses limites: a nós, contentemo-nos com o escritor.
A origem racial e social de Machado de
Assis certamente teve um grande peso na sua colocação entre os estratos pelos
quais passou a circular aquando de seu reconhecimento intelectual. Num país
cujas distinções de raça e de classe eram visivelmente evidentes e exercidas,
em muitos casos, a ferro e fogo, chega a ser piegas acreditar que a pura
falsificação de um retrato pudesse servir para invalidar os tratamentos então determinados.
Os meios de ascensão do autor de Dom Casmurro são questionáveis, as
evidências muitas, mas reduzi-los pura e simplesmente a um artifício de fabricação
de uma imagem pelo seu falso não é um caminho coerente e chega a ser
contraditório quando olhamos para a dedicação de uma vida devotada ao trabalho
incansável com a escrita. Durante todo o seu tempo de vida, Machado foi figura
onipresente nos jornais do Rio de Janeiro (e no ponto alto de valor dessa
mídia), mas agora deixaremos de reparar no trabalho para correr atrás de
fantasmas?
Outra questão a se levantar é sobre esse
lugar ocupado pelo escritor na escala social do Brasil, sobretudo, porque neste
país pouco ou quase nunca se valorizou o trabalho intelectual, sempre
constituído um apêndice da vida profissional. Machado escapa do destino de
muitos outros de seu tempo, o do esquecimento ou da total miséria pelo trabalho
e pelos laços que se determinaram a partir desse empenho. Esse espaço nunca foi
o paraíso de privilégios pintado costumeiramente com as tintas de certa
idealização romântica que se infiltrou entre nós e que ainda hoje quer dispor
um mundo santificado, imagem, aliás, muitas vezes mantida entre os próprios
escritores. Isso significa que a imagem pública não é (nunca é) a imagem real.
Nenhuma imagem é o real. E que a figura sóbria e respeitável que se desprende
dos retratos de Machado em sintonia com os padrões de culto situa-se
anos-luz da imagem que querem lhe impor do preto branqueado e esnobe,
esquecido das origens, quando estas estão manifestadas ponta a ponta de sua
obra.
O branqueamento de Machado de Assis não
se determina na fotografia. Determina-se entre aqueles que, dentro ou fora do
seu tempo, ilusoriamente, acreditaram na raça como influenciadora e determinante
para a criatividade; determina-se na leitura que impõe apenas um só critério,
por vezes, o mais superficial, o que arrasa ou simplifica por baixo todo um
complexo feito de variado aspecto e questões necessariamente discutíveis a fim
de compreendermos implicações e variantes, algumas bastante sutis.
Assim, não é a partir dos registros
fotográficos e sim do interior da crítica que a questão precisa ser discutida. É
nela que se instaura a reprovação ou justificação de certos lugares
ideológicos; nela se antevê desde a possível atitude controversa que o escritor
(como todos os demais) possa ter assumido a fim de galgar o espaço entre a
elite intelectual e política de seu tempo à acusação sobre sua postura de silenciar
acerca dos males sociais do seu tempo, que não eram poucos. Supondo esses dois
lugares da crítica machadiana, há entre o primeiro e o segundo algumas
diferenças. Se no primeiro, prevalece uma criteriosa interrogação sobre fatores
da mais diversa ordem, no segundo, composto por questionáveis leitores com tom radicalmente
inquisitorial, condenatório e simplista se pratica a conduta de a fórceps
determinar o lugar real do escritor como sendo este em oposição a
aquele, quando, na verdade, entre esses dois limites há zonas de
conflito bastante ardilosas e que Machado, pelo trânsito por elas, conhecia melhor
que nós. Assim, foi sempre um homem no entre-lugar. E parece indispensável
pensá-lo nesse não-espaço.
Em “O jogo de máscaras abolicionistas
nas crônicas de Machado”, publicado na revista Pessoa, Cristhiano Aguiar
estabelece uma imagem fundamental para se recuperar aqui ― “Um Machado distante
tanto do topo da pirâmide quanto de sua base”; segundo o autor, é essa posição
“que o faz apontar os desmandos da elite, mas também as eventuais contradições
dos mais humildes e das minorias”. Sabemos bem que entre a denúncia pura e
simples sempre capaz de se transformar num panfleto, o escritor, preferiu
transformar os muitos dilemas de contradições de seu tempo em parte interior
dos dilemas universais que colocam homens contra homens desde a origem dos
tempos. Esta é uma lição que Machado reconheceu nas obras que o acompanharam
desde sempre nossa história, da Bíblia a Shakespeare, de Edgar Allan Poe a
Stendhal etc.4 e que justificam a atualidade permanente de suas
criações. E é isso que tem sido, muitas vezes, negligenciado no debate atual, o
que resulta, claramente, num empobrecimento no jogo proposto no-pelo
literário.
Se há algo a se questionar nessa
história de um retrato a substituir o registro sépia por um mal colorido é a
redução, a limitação, a imposição político-ideológica; este gesto é pura e
simplesmente o avesso da fabricação do intelectual branco, com as mesmas armas,
inclusive, logo, tão grave quanto aquilo que acusa. E há acusações e gestos praticados
dos dois lados que em nada contribuem para a discussão sobre um escritor e uma obra que nunca estiveram a mero serviço disso ou daquilo. A simplificação diz muito
de um tempo marcado pelo debate raso, se o há. Devotada ao apelo emocional
que significa falar obrigatoriamente o que eu quero ouvir desfaz-se,
cada vez mais, do papel da literatura enquanto interrogação e problematização
do mundo. Não se corrige a história com apagamentos e substituições. Aliás, não se corrige o passado. Este existirá para sempre com o que há de aceitável e condenável pelas gerações do presente. E é preciso sabê-lo integralmente para não esquecê-lo, nem apagá-lo, sob pena de cairmos nas mesmas armadilhas que nos sequestraram. Dos gestos, o mais grave é o que visa simplesmente corrigir uma vigarice da história por outra, enquanto o debate sobre as implicações de variada ordem fica assentado como se a literatura ou sua história fosse um perfeito tabuleiro de disfarces e substituições.
Quer dizer, a campanha não é só válida, é necessária. O que se questiona são os meios. É válido incitar o debate, mas vestir-se
do mesmo determinismo diminuto do tempo das dicotomias, só contribui para
escamotear questões caras e de raízes mais amplas, sutis e profundas que o simples efeito de cor de uma fotografia. 6
Ligações a esta post:
2 Cito a partir do texto “A composição de uma figura. Anotações sobre as fotografias de Machado de Assis”, de A olhos vistos. Uma iconografia de Machado de Assis (Instituto Moreira Salles, 2008): “Fui ver duas coisas novas do Pacheco. A casa do Pacheco é o mais luxuoso templo de Delos da nossa capital. Visitá-la de semana em semana é gozar por dois motivos: admira-se a perfeição crescente dos trabalhos fotográficos e de miniatura, e veem-se reunidos, no mesmo salão ou no mesmo álbum, os rostos mais belos do Rio de Janeiro ― falo dos rostos femininos.” Nesta crônica, o escritor descreve parte do estúdio, composto por cerca de trinta oficinas fotográficas e por “um aparelho fotográfico, chegado ultimamente, destinado a reproduzir em ponto grande as fotografias de cartão.”
3 Desde quando este retrato de Machado de Assis integrou o catálogo da exposição O Brasil de Marc Ferrez que passou a ser publicado como sendo do fotógrafo brasileiro. Mas a fotografia seria, na verdade, também de Joaquim Insley Pacheco e data, possivelmente, de 1880. Ferrez adquiriu o negativo e o imprimiu em platinotipia. Esse recurso pioneiro no universo das imagens no Brasil constituía o que de melhor existia então na fotografia, pela estabilidade e permanência do registro e pela grande variedade tonal e riqueza de detalhes. Sobre isso, recomendo o texto “A criatura e o espelho: o retrato de Machado de Assis por Marc Ferrez”, de Maria Inez Turazzi, publicado na revista Aletria (n.2, vol.24, mai.-ago. 2014, p.13-29).
4 Além dessas, a outras, mas de péssima
resolução, como a em que preside uma seção na Academia Brasileira de Letras em
1905, num piquenique oferecido ministro da indústria, viação e obras públicas
Lauro Müller ao secretário de estado estadunidense Elihu Root em 1906, no
terraço da Confeitaria Castelões em companhia de Euclides da Cunha, José
Veríssimo e Walfrido Ribeiro em 1907.
5 Há vários livros que tratam sobre as
leituras ou a formação leitora de Machado de Assis. Entre eles, é
interessante considerar: Machado de Assis: por uma poética da emulação,
de João Cezar de Castro Rocha (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013); Machado
de Assis leitor. Uma viagem à roda de livros, de Ruth Silviano Brandão e
José Marcos Resende Oliveira (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011); A
biblioteca de Machado de Assis, organizado por José Luís Jobim (Rio de
Janeiro: Topbooks, 2002).
6 O melhor estudo não sobre o retrato
de Machado de Assis, mas sobre sua descendência afrodescendente e as implicações
destas na sua obra, é o excelente Machado de Assis Afrodescendente, de
Eduardo de Assis Duarte, recentemente reeditado pela Editora Malê.
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