Sidarta, de Hermann Hesse
Por Pedro Belo Clara
Hermann Hesse, 1958. |
A certamente mais afamada obra do prêmio Nobel de 1946 é essencialmente o produto de uma viagem à Índia empreendida nos idos
anos 1920.
O impacto de toda uma atmosfera
rica e singular, com seus costumes, ideologias e modos de vida tão díspares dos
ocidentais, foi profundo em Hermann Hesse. De forma sublime, diga-se sem qualquer
vestígio de vassalagem intelectual, o autor conseguiu reproduzir em cada frase,
diálogo e ideia que compõem este livro as mais vincadas características de tão
exótico país – sob o ponto de vista europeu.
Por ter sido bem sucedida, esta
extraordinária obra traz em si o condão de transportar o leitor para esses
longínquos horizontes, contemplando-os sob a cristalina lente do seu autor. Sempre
bem doseada, bem alimentada num equilíbrio que poderá aparentar fragilidade,
não se demora por descrições que seriam desnecessárias ou, de exagero,
eventualmente fastidiosas.
Em termos de cenografia é isto
que, muito resumidamente, poderemos partilhar. Já no que toca ao teor, a obra
traz-nos a história, conforme era relatada na tradição oral, da mais proeminente
figura duma religião milenar: nada menos que o precursor do Budismo.
Centrada num inicialmente jovem de
nome Siddhartha, um brâmane¹ com uns anseios íntimos deveras peculiares, a obra relata
todo o percurso material e espiritual realizado por tal personagem ao longo da sua
existência. Ou, pelo menos, até ao clímax da mesma – já que os demais episódios
se depreendem na sua generalidade.
Dir-se-á, portanto, tratar-se de uma jornada alimentada
pelos apelos mais secretos do espírito. Senão, veja-se: "É necessário encontrar a Fonte
Primordial no fundo do Eu, possuí-la em nós mesmos! Tudo o resto era demanda,
era desvio, era erro."
Falamos, assim, de uma expedição
interior, tanto iniciática como transmutativa, que percorre também os mais amplos
caminhos do mundo material.
Levando o ser a vivenciar as mais diversas experiências, a amar e a sofrer com as mais distintas vivências, a cada etapa vencida o mesmo sai indelevelmente marcado, mas não mais pobre que antes – no que ao tipo de riqueza que para aqui importa diz respeito. Pois como rejeitar uma via que nunca foi percorrida? Se a sede existe e é intensa e honesta, todo o caminho deverá ser calcorreado, por mais pedras que ofereça aos descalços pés, temerários já por suas feridas acumuladas. E tudo para que, enfim, possa descobrir quem na realidade é.
Siddhartha, que muito humildemente
admite apenas saber pensar, esperar e jejuar, vai deixando para atrás não só a
companhia do amigo de sempre, Govinda, como a imagem de um religioso disciplinado,
chegando até, pelos sábios acasos de um caminho cheio de mistérios, a tornar-se
um notável homem de negócios, totalmente imerso na mundanidade dos prazeres. Se
primeiramente é conhecida a sua fome por algo mais que a realidade onde se
inseria, pela verdade única e absoluta, é certo considerar que, algures,
Siddhartha se perde em si mesmo, mas tal acontece apenas, como oportunamente se
verá, para que se possa de novo reencontrar. E então, nada será como dantes.
Ainda que a condição material não
se expurgue do seu cariz de efemeridade, depreende-se que a essência de cada
elemento, ao ser absorvida, detém uma importância vital para todos aqueles que
anseiam por descobrir a verdade de si próprios, e que a Unidade, portanto, não
se alcança pela rejeição de uma ou outra parte, mas por um abraço completo ao
que a experiência proporciona.
Esta descoberta é algo de uma
dimensão tremenda, e marca uma ruptura significativa com os preceitos básicos
de muitas correntes religiosas, que desde logo definem uma rejeição expressa da
matéria e, como tal, do corpo e os desejos latentes. Mas rejeitar significa
apenas reprimir, e com repressão não se atinge o principal: a liberdade. Sem
rumo definido, pelo menos em aparência, Siddhartha é levado a compreender tal
máxima a custo próprio.
A obra, dividida em duas partes, destaca-se
também pela peculiar forma da sua escrita, bem representativa do tipo de
narrativa que apresenta, pela imensa metáfora que é e pelas suas belíssimas
incidências, fazendo da mesma um longo e livre poema. A profundidade da
mensagem é latente e crescente, isto é, prolifera juntamente com a personagem central
da obra, enquanto este persevera no trilhar do seu caminho – como aqueles
sábios homens que, sem o saberem, se perdem na selva do mundo apenas para se
encontrarem a si próprios. Por isso mesmo se dirá que é uma obra marcadamente
filosófica, com nítidas intenções de índole espiritual. E dela se retira,
assim, uma longa e proveitosa reflexão sobre o que nos rodeia e sobre as nossas
existências e formas em que estas são vividas.
Termina, obviamente, como mais se
poderia esperar, e como sempre terminam as grandes odisseias deste género em
específico: com a esperada revelação e consequente ascensão. E para tal muito
Siddhartha fica a dever a um humilde barqueiro, que como conhecedor dos
segredos do rio, a sua companhia de sempre, os transmite ao destroçado
caminhante, até que este possa escutá-los, por si só, da própria boca do rio.
Então Siddhartha renasce naquele que ainda hoje o mundo conhece como Buda.
Mais do que o término de algo, que
somente marca o início de um outro ciclo, permita-se sublinhar como sobressaem
os entretantos da narrativa, as passagens que se dotam de dúvidas, dores,
sofrimentos, capitulações. Pois são esses sentires que impulsionam a
regeneração, a subida a um outro plano de entendimento. Por outras palavras,
são as marcas de um processo evolutivo. É esse um aspecto que pode muito bem
servir de inspiração a todos os leitores da obra, mesmo que impregnada de
filosofias nitidamente orientais. Contudo, no próprio dizer de Siddhartha, tudo
são "meras palavras", pelo que o mais importante a extrair de cada coisa é a
sua essência, a sua condição e sabedoria, algo que cada um de nós apenas de
forma muito particular e íntima o poderá fazer.
Emerge assim uma nova visão que
apenas instiga a visão do leitor, fazendo vibrar o carácter unitário que ambas
apresentam, apesar da ameaça da ilusão do separatismo. E nada mais será tão
revelador ou divino quanto isso: a consciencialização da unidade de todas as
coisas, muito para além da multiplicidade das mesmas. Definitivamente, em Sidarta,
a obra, também nós, atentos e receptivos leitores, nos perdemos em cada linha
desta jornada, somente para de novo nos encontrarmos com o divino de todas as
coisas.
"E assim o viu Govinda, o sorriso
da máscara, o sorriso da unidade sobre o fluxo das formas, este sorriso da
simultaneidade sobre os milhares de nascimentos e mortes, este sorriso de
Siddhartha era exactamente o mesmo, era exactamente igual ao sorriso uniforme
de Gotama, o Buda, sereno, fino, impenetrável, talvez bondoso, talvez irónico,
sábio, um sorriso que ele próprio observara mil vezes com veneração. Govinda
sabia que assim sorriam os seres perfeitos."
Notas
1 Um membro, por direito familiar,
da casta sacerdotal, a primeira na ordenação tradicional da sociedade hindu.
Comentários