Onze romances recomendados por Mario Vargas Llosa
Mario Vargas Llosa. Foto: Ximena Garrigues e Sergio Moya. |
Mario Vargas Llosa é um desses
autores integrados ainda em vida ao círculo dos grandes nomes da literatura
universal. Autor de uma obra excepcional ― termo que pode se estender em
várias dimensões, em quantidade e em qualidades criativa e literária, é também
um grande leitor; talvez essa segunda constatação em relação à primeira ofereça
alguma redundância, tendo em vista que a qualidade de um escritor mede-se pelo
seu convívio com os livros.
Quando ingressamos no isolamento social
devido à pandemia do Corona vírus, o escritor peruano disse que estar em casa o
permitia se dedicar melhor à leitura e pelo menos dez das vinte e quatro horas
do dia passava diante de um livro. Quer dizer, um privilégio invejado por
qualquer um que, ativo para o ato de ler, precise ocupar o dia com coisas desenxabidas:
a burocracia do trabalho, a repetição cansativa do serviço doméstico, o stress
da vida fora de casa, agora mais perigosa etc.
O trabalho de leitor exercido por
Mario Vargas Llosa resultou em ensaios iluminadores. Um exemplo é A tentação
do impossível, um mergulho sensível e apaixonado sobre um dos mais
importantes romances do romantismo francês, Os miseráveis, de Victor
Hugo. Este livro foi resultado de um curso lecionado por ele na Universidade
Oxford, entre abril e maio de 2004. Outro
é A orgia perpétua, que discorre sobre Madame Bovary, de Gustave
Flaubert. E, a estes dois, podemos acrescentar o brilhante A verdade das
mentiras, uma compilação de textos críticos sobre alguns dos clássicos da
literatura universal e fonte para a composição desta lista.
1. O coração das trevas, de
Joseph Conrad. O escritor britânico escreveu este romance depois de sua
experiência no Congo. A narrativa trata da luta do homem contra a natureza e é
uma feroz crítica à história de povo submetido aos excessos da colonização. Para
Llosa, “a dialética entre a civilização e a barbárie é o tema nevrálgico” do
romance. “Do relato se desprende uma visão muito pessimista, para dizer o
mínimo, dessa civilização europeia”; “se essa civilização existe, ela tem, como
o deus Jano, duas caras: uma para a Europa e outra para a África, onde reaparece
toda a violência e crueldade nas relações humanas, que se acreditavam abolidas
no velho continente.” O livro deu origem ao clássico do cinema Apocalipse
Now, dirigido por Francis Ford Coppola.
2. Mrs. Dalloway, de Virginia
Woolf. Publicado em maio de 1925, este é o quarto romance de uma das mais importantes
figuras da literatura modernista e do século XX. A narrativa acompanha um dia
na vida de Clarissa Dalloway numa Inglaterra posterior à Primeira Guerra
Mundial. “O embelezamento sistemático da vida graças a sua refração em sensibilidades
deliciosas, capazes de libar, em todos os objetos e em todas as circunstâncias,
a secreta formosura que encerram, é o que confere ao mundo de Mrs. Dalloway
sua milagrosa originalidade”, explica Mario Vargas Llosa para quem este romance,
juntamente com Ulysses de James Joyce, inauguram uma nova época na
maneira de narrar.
3. O lobo da estepe, de
Hermann Hesse. Este é um dos livros sempre considerado dos mais geniais da
literatura sob o ponto de vista de vários outros escritores, entre eles podemos
citar Thomas Mann, para quem este era tão grandioso quanto o Ulysses, de
James Joyce, ou Clarice Lispector, para quem o livro revolucionou sua maneira
de conceber a criação literária. A narrativa acompanha a história de Harry Haller,
um homem de 50 anos que acredita que sua integridade depende da vida solitária
que leva em meio às palavras de Goethe e às partituras de Mozart. O livro
apareceu em 1927 e, segundo Llosa, “talvez não seja o romance que represente
melhor, na obra de Hesse, aqueles traços que o conectaram tão intimamente com o
sentimento dos jovens inconformados da Europa ocidental e dos Estados Unidos
nos anos de 1960”. “Mas trata-se do romance que melhor mostra a densa
singularidade do mundo que criou no curso de sua longa vida.” Para o escritor
peruano este é “um livro expressionista , que por momentos lembra a dissolução e
os excessos dessas caricaturas ferozes contra os burgueses, que George Groz
pintava naqueles anos em Berlim, e também os pesadelos e delírios ― o
triunfo do irracional ― que, a partir dessa década, a da proliferação dos ismos,
inundariam a literatura.”
4. Trópico de câncer, de Henry
Miller. O romance que se destacou pelas descrições sexuais detalhadas e francas
foi publicado pela primeira vez em 1934 e designa o que Mario Vargas Llosa
conceitua como niilismo feliz. “O ‘Henry’ do Trópico de câncer é
uma invenção que ganha nossa simpatia ou nossa repulsa por uma idiossincrasia
que vai se desdobrando diante dos olhos do leitor de maneira autônoma, dentro
dos confins da ficção, sem que para crer nele ― vê-lo, senti-lo e, sobretudo,
ouvi-lo ― tenhamos que cotejá-lo com o modelo vivo que supostamente serviu para
criá-lo.” Para Llosa, o narrador-personagem forjado aqui “é a grande criação do
romance, o êxito supremo de Miller como romancista. Esse ‘Henry’, obsceno e
narcisista, depreciativo do mundo, solícito somente com seu falo e com suas
tripas, tem, antes de tudo, um verbo inconfundível, uma vitalidade
rabelaisiana, para transmutar o vulgar e sujo em arte, para espiritualizar, com
seu grande vozeirão poético, as funções fisiológicas, a mesquinharia, o sórdido,
para dar uma dignidade estética à grosseria.”
5. Auto de fé, de Elias
Canetti. Este é o único romance do escritor; publicado em Viena em 1935 e mais
tarde censurado pelos nazistas, a obra relata a vida de Peter Kien, um sinólogo
(pessoa que se dedica ao estudo da China, seu idioma e cultura) que não conhece
a vida exterior à que lhe chega pelos livros e teme qualquer contato social e
físico. Descrita por Vargas Llosa como um pesadelo realista, esta é uma das
obras de ficção, ainda segundo o autor, mais ambiciosas da narrativa moderna e,
como A morte de Virgílio, de Hermann Broch e O homem sem qualidades,
de Musil, “exige um esforço intelectual e boa dose de perseverança antes de revelar
ao leitor seu sentido profundo”. “A falta de sentimentalismo é um traço central
em Auto de fé”, diz. “Ao mesmo tempo que os demônios de sua sociedade e
de sua época, Canetti se serviu também dos que habitavam somente nele mesmo. Emblema
barroco de um mundo a ponto de explodir, seu romance é assim mesmo uma
fantasmagórica criação soberana, na qual o artista fundiu suas fobias e seus
apetites mais íntimos com os sobressaltos e as crises que rachavam o mundo.”
6. A fazenda dos animais, de
George Orwell. Publicado em 1945, quando o mundo entrava em contato outra vez
com os horrores do extremismo ideológico, este romance se destaca entre os mais
importantes das chamadas ficções distópicas, com uma lição sobre os destinos da
comunidade humana sob os auspícios de poder que é atemporal: este livro “questiona
não uma revolução em particular, mas todas as revoluções, a revolução
em abstrato, quer dizer, a solução total e definitiva do problema da injustiça econômica
e social, mediante a remoção violenta dos exploradores do poder por parte dos
explorados”. Apesar de lido como uma visão fatalista do homem e da história, para
Vargas Llosa, este livro “não mostra que não existem soluções. Mas, talvez, que
não existem soluções definitivas, e sim provisórias e precárias que,
pelo menos, devem ser defendidas, revisadas e renovadas incessantemente.”
7. O leopardo, de Giuseppi Tomasi de Lampedusa. Escrito entre os finais
de 1954 e 1956, este romance é dos mais significativos da literatura italiana;
narram-se as vivências de Don Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina e sua
família na Sicília. “O que nos mostra a ficção com seus oito quadros fulgurantes
é a encarnação daquela teoria que nos propõem, de total acordo, o narrador e o príncipe
Fabrizio: a história não existe. Não há história porque não há causalidade nem,
portanto, progresso. Acontecem coisas, sim, porém no fundo nada se conecta nem
muda.” Para Llosa, Lampedusa ― como Lezama Lima e Alejo Carpentier ― faz
triunfar a linguagem, o grande valor da ficção. “É uma linguagem de soberba delicadeza,
capaz de matizar uma percepção visual, tátil ou auditiva até a evanescência, e
de modelar um sentimento com uma riqueza de detalhes que confere consistência
de objeto.”
8. O tambor, de Günter Grass. Este
é considerado por muitos, incluindo Mario Vargas Llosa um dos romances mais
importantes sobre o dilaceramento do mundo alemão no pós-guerra. O livro conta
a história de um anão que, ao tocar seu tambor, ressuscita suas lembranças, as
de sua família e de seu país, agitando um universo grotesco e maravilhoso cuja lógica
não é deste mundo. Foi publicado em 1959 e é o livro de estreia do escritor
Prêmio Nobel de Literatura de 1999; seu impacto entre os leitores é medido por “sua
desmedida ambição, essa voracidade com que pretende tragar o mundo, a história
presente e passada, as mais dissímeis experiências do circo humano”. Ainda segundo,
Llosa, o romance “fornece um ponto de vista original que banha de originalidade
e de ironia tudo aquilo que descreve ― independentizando assim a realidade fictícia
de seu modelo histórico ― ao mesmo tempo que encarna, em sua impossível natureza,
em sua condição de criatura anômala, a cavalo entre a fantasia e o real, uma
metáfora do que é, em si mesmo, todo romance: um mundo à parte, soberano, no qual,
no entanto, refrata-se essencialmente o mundo concreto; uma mentira em cujas
dobras transparece uma profunda verdade.”
9. A casa das belas adormecidas,
de Yasunari Kawabata. O romance aqui listado aparece nas preferências de outros
nomes importantes da literatura, como o do desafeto de Llosa, Gabriel García
Márquez. Escrita em 1961, sua grande virtude está no tratamento descritivo que
acompanha a história de um senhor de 67 anos que frequenta uma espécie de
bordel onde as mulheres encontram-se envoltas num sono profundo, sob efeito de
narcóticos. “Breve, belo e profundo”, assim designa Vargas Llosa, A casa das
belas adormecidas “deixa no ânimo do leitor a sensação de uma metáfora,
cujos termos não são fáceis de desentranhar. O que esconde essa história que,
obviamente, não se esgota em si mesma? O paradoxo de que o sexo, a fonte mais
rica do prazer humano, seja também um poço tétrico de frustrações, sofrimentos
e violências? Como, nesse domínio, a civilização não pode se desprender da barbárie?
Um romance não tem por que dar resposta a essas perguntas; se ele sabe suscitá-las,
como transpiração natural e inevitável de uma fantasia que nos mantém subjugados
durante a leitura, e se depois sobrevive e se enriquece na lembrança, cumpriu
sobejamente sua função e devemos agradecê-lo.”
10. O carnê dourado, de Doris
Lessing. “Depois de seus respectivos divórcios, Molly e Anna se liberaram da
família, essa grande besta de certo feminismo, segundo a qual essa instituição
sempre reduziria a mulher a papéis passivos e inferiores. Ambas têm amantes à
vontade, porém essas relações, sobretudo no caso de Anna, são amargas:
deixam-na ferida, com uma crescente sensação de que tanto Anna quanto seu alter
ego nos diários, Ella, instintivamente aspiram a que cada uma de suas
aventuras sexuais se torne uma relação permanente, um casamento. As duas parecem
incapazes de fazer do sexo um mero passatempo dos sentidos, um prazer físico no
qual não interviria para nada o coração.” A síntese oferecida por Mario Vargas
Llosa visa desconstruir a ideia redutora que transformou este romance de Doris
Lessing publicado em 1962 numa bíblia feminista; para ele, este é, sim, “uma
severa autópsia das alienações políticas e culturais da intelligentsia
europeia de vanguarda. Com esse livro, Doris Lessing se adiantou à sua época,
pois, no resto da Europa, a exaltação do progresso somente se atreveria a fazer
sua autocrítica em relação às mistificações ideológicas ou ao poder revolucionário
da literatura e da arte na década de 1970.”
11. Pontos de vista de um palhaço,
de Heinrich Böll. O romance que narra a história de um palhaço de profissão
cuja felicidade lhe é interrompida é um dos mais célebres do escritor Prêmio
Nobel de Literatura de 1972. Trata-se de uma obra que oferece um retrato minucioso
de uma época difícil na Alemanha: os tempos do pós-guerra. Böll não deixa de
aprofundar sua crítica severa a uma sociedade presa nos ideologemas religiosos.
Para Vargas Llosa, este romance sem ação e marcado por certo grau de deprimente
se mostra, como a revolução de maio, uma gota de ácido que veio aguar a festa
da bonança num país que havia se tornado o mais rico da Europa, e para mostrar
a seus cidadãos que nem tudo que brilhava ao redor deles era ouro; que, se
observassem com atenção crítica em torno, perceberiam que aquela prosperidade
material tinha sido atingida, em muitos casos, às expensas do espiritual, e
que, nesse campo, havia ainda, por baixo das vestimentas luxuosas, andrajos
para cerzir e chagas para curar.”
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