O dia em que meu pai foi poeta. A partir de “Receita de domingo”, de Paulo Mendes Campos
Por Paula
Luersen
Ilustração: Julie Bernard |
Nunca soube ao certo quem foi
que disse que até os três anos de idade nossa mente não é feita para guardar
lembranças. Só sei que despertei, aos poucos, pensando naquela matéria de
jornal já sem data, sem nome ou qualquer referência, presa por uma ou outra
letra nas teias da minha memória. Ela dizia que muito do que achávamos recordar
era puramente inventado, feito de rabiscos e garranchos das nossas mais fortes
impressões, prontas a encenar em nossa mente detalhadas cenas de um passado
falso.
Teria eu fabulado o cantar de um
canário belga e o cacarejo agoniado das galinhas, que antecediam os almoços de
domingo? Com que rabiscos compunha aquele homem que na minha infância gritava
aos corvos um sonoro e profético Never more? Existiu algum dia esse sujeito rendendo
homenagens à poesia de Allan Poe, em pleno anoitecer de domingo? Ainda na cama,
olhei desconfiado para minha estante de livros. Poderiam ser eles os rabiscos a
compor o absurdo de tal lembrança. Tentar dar contorno as memórias é perder-se no
suave degrade que conduz aos tons alvos da imaginação pura.
Eu só tinha algumas certezas que
costumavam reviver em minha mente na preguiça alastrada do amanhecer de
domingo. O domingo na casa da minha infância era o único dia da semana em que
eu não sentia a rejeição de ser criança. Das segundas até os sábados nada podia
ser assunto nosso. Quase tudo era mistério. Não sabíamos do ofício dos adultos
ou do que se passava no centro ou na praia. Só podíamos saber dos uniformes,
das normas e das verduras.
Mas domingo era dia de jogo,
quando o meu pai podia, enfim, vestir um short, brincar de luta e narrar
histórias de terror. Fazer-se de esquecido, virar criança. Lembro-me desse pai
de verdade, a trocar comigo tapas e socos de mentira, enquanto rolávamos pelo
chão da sala. Lembro-me do contentamento pleno, quando ele dizia que eu estava
forte, ainda que fosse o caçula. Lembro também do alívio em ser criança e
menino, para não precisar preparar o almoço e um dia ter de ser adulto de
domingo a domingo assim como minha mãe.
Nesse dia era permitido esquecer
que criança que não come bem vira nanica e que quem não se comporta vai direto
pro inferno. Domingo eu podia dar susto no vizinho alemão, sem que os adultos
nem mesmo ensaiassem franzir a testa. Em lugar disso me davam balas, sorvetes,
pirulitos e bombons, assistindo o sol banhar a praia, de dentro de uma barraca.
Domingo era dia entrar na água salgada, com a boca cheia de confeito doce. De
enterrar os pés na areia, vendo os balões se perderem no céu.
A certa altura, como se enjoados
das nossas alegrias, os pais deixavam a casa. As mães, então, nos acolhiam em
seus carinhos e caretas. Dançavam na sala as músicas do último disco comprado, perdiam-se
em suas conversas, risadas e segredos. Estavam sempre bonitas, dedicando ao
domingo as melhores roupas. Atiravam-se no sofá pra esquecerem delas mesmas ao
som do cantar das canções. Esquecidas até de nós, da vida que levavam, do que
julgavam ser. Tornavam-se o que quisessem nas horas finais da tarde lilás.
E quando
chegava a noite era hora de voltar tudo ao lugar. Ao lugar errado de todos os
dias.
E então nos deitávamos cedo, ansiando
acordar já no outro domingo, com o pai criança e a mãe a matar galinhas. Nas
noites em que eu não conseguia dormir, tentava espiar o quarto dos adultos e os
adultos trancafiados em livros. Lá fora, os canarinhos da manhã transfiguravam
em aves negras, a anunciar a eternidade de mais uma semana. Viravam em corvos
que aquele homem tentava espantar, gritando Never more janela afora. Quem seria
aquele sujeito, a protagonizar a cena incerta, minha mais antiga lembrança?
Um dia me contaram que meu pai
foi poeta. Mas isso pode ser, afinal, apenas uma lembrança inventada.
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