O ano da morte de Ricardo Reis, de João Botelho
Por Pedro Fernandes
É muito provável que quando se
anuncia a realização de um filme a partir de uma obra literária de estima, logo
cresça entre os leitores futuros espectadores um interesse por encontrar com o produto
final. Esse impulso, obviamente, não deixa de acomodar no seu interior, ou
talvez derive daí, o embate nunca superado de estabelecer comparativos entre o
livro e a peça de filmografia ― ainda que se repita, uma e outra são
obras distintas. Isso obviamente não poupa a leitura de João Botelho para este
que é um dos romances mais importantes da significativa obra de José Saramago e
não importa que o diretor português tenha no seu currículo recente obras
ousadas como Filme do desassossego e Peregrinação, outros
projetos cuja gênese remetem para outros dois títulos da literatura portuguesa ― o
primeiro, do livro de Bernardo Soares / Fernando Pessoa e o segundo, do livro
de Fernão Mendes Pinto.
Entre um caso e outro existiu
ainda a adaptação de Os Maias, de Eça de Queirós. E antes, A corte do
Norte, de Agustina Bessa-Luís e a própria recriação de Fernando Pessoa há
quatro décadas em Conversa acabada. Mas citamos os filmes de 2010 e de 2017,
respectivamente, porque se mostram como os projetos mais ousados, considerando,
para todos os efeitos a complexidade dos textos literários. O leitor que tiver
passado por um romance de José Saramago e por um romance de corte realista, logo
conseguirá compreender o argumento: este oferece ao criador potenciais elementos
que se mostram favoráveis à interpretação cinematográfica ―
os quadros descritivos são um exemplo; aquele, pelo tratamento concentrado na
voz narrativa, cobra maior imaginação criativa do cineasta. E aqui pode residir
o impasse que leva leitor e espectador a se identificarem com a leitura cinematográfica
ou ignorá-la. Para todos os efeitos, as duas continuam obras distintas porque
são constituídas por linguagens de interesses estéticos próprias.
Os filmes que antecedem contribuíram
potencialmente para que o cineasta encontrasse o tom adequado para este de
agora. João Botelho conviveu com obras de base inconstante, parcelar, de trato
filosófico e como forte apelo verbal; mesmo o elemento visual saltitante em Eça
de Queirós contribuiu para imaginar a Lisboa que se descortina pela consciência
de uma personagem; esta cidade fechada nela mesma e com olhos e ouvidos por
toda parte interessados em saber o que passa na vida individual alheia. Parece que
a decisão de pensar cinematograficamente O ano da morte de Ricardo Reis
foi um passo acertado nesse itinerário do cineasta pelo literário; fora dessa
ordem, ou pela mão de outro criador, muito provavelmente o resultado, supõe-se,
não seria satisfatório. O pressuposto não é gratuito: a obra de José Saramago,
apesar de pouco lida pela sétima arte, acumula já alguns mal-entendidos cinematográficos,
se pensarmos aqui em peças como O homem duplicado (de Denis Villeneuve)
ou A jangada de pedra (de George Sluizer), filmes que pecam pelo
distanciamento e pela leitura cerrada do texto, respectivamente.
O resultado da leitura oferecida
por Botelho é uma narrativa que consegue suavizar a densidade do romance de
José Saramago, mas sem se fechar a ele e sem simplificá-lo, reduzi-lo ao piegas
e ao vulgar, isto é, um filme que consegue encontrar uma equivalência no
interior da sua linguagem para a linguagem romanesca. Nesse ínterim, é de
extrema riqueza o cuidado não apenas com a obra do escritor Prêmio Nobel de
Literatura, acentuando os jogos intertextuais aí estabelecidos e que na narrativa
visual se estabelece com vários discursos ― citáveis: os da literatura (a
obra de Ricardo Reis, de Fernando Pessoa ou de Luís de Camões); os dos jornais,
matéria-prima para o romance e que no contexto atual (também o de recepção
filme) adquire novos sentidos; os da história; os da fotografia, que em muito
remete a reconstrução animada de alguns registros comuns na história portuguesa;
e a metalinguagem, o filme em primeiro plano como brotamento de um filme
ficcionado, ou ainda os estreitamentos com aspectos discursivos e recursos do
cinema, seja a atmosfera noir e a reiteração de outras peças
clássicas da filmografia universal.
Depois de receber um telegrama de
Álvaro de Campos sobre a morte de Fernando Pessoa, que, pelas circunstâncias
bem pode ser lido como uma blague, Ricardo Reis regressa a Portugal; migrara
para o Brasil desde há dezesseis anos desse episódio que desencadeia a narrativa.
Previsível ou não, meses depois do bilhete de Campos se cumpre o seu conteúdo:
o poeta da Mensagem morre a 30 de novembro de 1935. Reis chega no início
do mês seguinte e hospeda-se no hotel Bragança. Encantado por redescobrir sua terra, os dias
que se seguem ― os seus últimos ―, são de convívio com o fantasma do seu
criador, umas quantas aventuras amorosas e a tentativa de
restabelecimento de sua vida corriqueira sem que se deixe tocar pelas ásperas arestas
do seu tempo, afinal, estamos diante de um médico, de ideologia monarquista e
formação clássica semi-helenista, cuja filosofia de vida se guia pelo preceito
segundo o qual sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo.
E o mundo para o qual retorna
Ricardo Reis, de fato, é um triste espetáculo. Basta saber que no ano seguinte os
ventos favoráveis ao estabelecimento dos regimes autoritários ganham ampla
projeção em Portugal e no restante da Europa. À medida que seus dias em
Lisboa se multiplicam por entre a solidão meditativa, prova que as coisas não
terão mudado tanto desde sua partida quando estourava no seu país outra revolução
interessada em restaurar em plena república, no Norte, a monarquia ―
ou melhor, talvez tenha entrado no mais convulsivo dos seus tempos; não apenas
o recrudescimento dos instintos sociais, é o aumento do fosso entre classes, da
mentalidade rasa, da expropriação de homens e mulheres num regime de fome, dor,
danação, medo e morte.
O esforço por parecer incólume
nesse contexto complexo e de horrores está em toda parte da narrativa: desde a
própria postura distanciada e contemplativa como se mostra a personagem às
várias circunstâncias presenciadas e não sentidas fisicamente. Por uma razão
que não deixará de notar ser vã, entende que seguir ignorante ao seu entorno é
sobreviver as artimanhas da história e consequentemente às suas próprias
intempéries. O irônico é que, sendo um contemplador da natureza, deixa de
perceber a impossibilidade de sair à chuva sem que se molhe, por mais que se
proteja. E
esta Lisboa do seu retorno está envolta num interminável temporal. O que assistimos
é o homem que se debate com uma filosofia impraticável num tempo em que a vida lhe
provoca uma atitude fora de todo seu esteticismo.
O ano da morte de Ricardo Reis singulariza
uma variedade de impasses: entre ser e estar no mundo, desenvolvendo-se mesmo
para um questionamento acerca dos sentidos da obra de arte em contextos quando estes
estão integralmente aguçados para a exceção; entre o imaginário e a realidade
histórica; entre os valores do amor, ideal e carnal; entre existir e não
existir ―
em vários sentidos: o estágio contemplativo, no contexto vigente de Reis, pode
significar uma anomia do homem, sua entrega definitiva à irrecusável fatalidade
da história; uma vez que o sopro de vida de Reis se determina pelo sopro do seu
criador, estaria nossa personagem limitada pela temporária condição terrena de
Pessoa.
Ou seja, as linhas de força
interpretativa acerca dessa personagem são múltiplas por sua inacabamento. Mas
aqui se nota uma interferência do cineasta que possivelmente é o defeito mais
grave na narrativa fílmica: o testemunho de certa modificação de consciência de
Ricardo Reis acerca dos tempos de escuridão que se formam. Nem este homem, nem
o romance de José Saramago, plenamente atento aos limites da verossimilhança, sabemos,
testemunham isso. Quer dizer, trata-se de oferecer uma alternativa para uma personalidade
que parece feita da / para a indeterminação. Isso é um problema porque finda
por fixar a personagem entre os limites de uma pedagogia do homem; saímos inclinados
a acreditar num desfazimento, pela aprendizagem do mundo, do princípio
distintivo da persona de Reis, o que, obviamente corrompe o seu brilho que é
especificamente o impasse entre o ideal e o mundo material ― é graças
a isso, aliás, que o escritor pôde ficcioná-la e oferecer através de sua
condição um questionamento acerca dessa impossibilidade de não nos afetarmos
pela história. Não é o caso de deixar de existir uma modificação do
homem, mas especificamente de um aferrado aos seus princípios ideológicos e que
não demonstrou alternativa fora deles. Naturalmente que escolhas de leitura
variam e de interesses também, mas a decisão nesse caso é perigosa porque viola
a figura de Reis e a inclinação um tanto pedagógica viola os limites da
literatura saramaguiana.
A questão é mencionada aqui para
trazer à superfície o que acima dissemos sobre o papel dos jornais nesse tempo
recuperado de Ricardo Reis; é de se reparar a onipresença desse suporte na
narrativa fílmica. E não é o caso de que este fosse o tempo em exclusivo dos
jornais. Os rádios já existiam e eles também se mostram em cena, embora, funcionem
só uma única vez. A mídia de papel, por sua vez, está em toda parte: num
encontro entre Reis e Pessoa num restaurante, às vésperas do Carnaval de 1936,
por exemplo, todos estão mergulhados, meditabundos, nas páginas de um jornal.
Ora, sabe-se bem que foram estes
os principais recursos que coabitaram com o estabelecimento da ideologia dominante
em curso; sabe-se também que foram os meios da verdade inquestionável segundo o
notável migrante regressado ― verdade suspeitada por uma cética
Lídia, a empregada da limpeza no Bragança com quem Reis desenvolve um dos seus
romances, o de inclinação carnal. E é este elemento que o cineasta
parece se utilizar para oferecer um elo entre o tempo representado e o tempo
vigente, este em que todos estão mergulhados nas telas dos smartphones e creem
cegamente naquilo que lhe chegam. Embora comparáveis, parece uma excrecência estabelecer
relações diretas para com os tempos nebulosos que atravessamos. Insiste-se
assim em certo fatalismo da história; repisa-se sua questionável circularidade.
Por mais que os traços de um tempo se deixem notar em outro, este possui suas próprias
regras de funcionamento e o nosso erro é tratá-las com os instrumentos do passado;
este é um iluminador, mas, infelizmente, não nos oferece as alternativas para o
presente, as precisamos cavar com nossa própria força. É um tanto simplista
reduzir a história a uma roleta da sorte.
Visualmente, o filme de João
Botelho é bem-cuidado. Chama atenção para a fotografia preto-e-branco, que não
é apenas uma visitação (outra vez a metalinguagem) do cinema às suas expressões
originais, reparadas estas também na maneira como a peça foi estruturada, obedecendo
a organização em quadros. A escolha da fotografia cumpre sentidos de mais
variada ordem: consegue sintetizar a cena para a consciência explorada, a de
Ricardo Reis, ou para o embate dela consigo e com seu outro, Fernando Pessoa; fundamenta
a atmosfera fantasmal dominante ― captura original da leitura de um romance
com narrativa no mesmo estamento; e permite experimentarmos, com o rigoroso
inverno, o universo opressivo ou em fechamento vivido no contexto
evocado, algo que o leitor da obra de José Saramago consegue capturar neste
romance e noutros, como Claraboia. Mesmo nas pequenas aberturas de
claridade, que apontaria qualquer coisa de júbilo ― como na representativa cena que
apresenta Marcenda ante um milagre pela cura da mão paralítica na Cova da Iria ― esta é
dada num excesso ofuscante, reafirmando um estágio de alienação das
consciências, espécie de cegueira branca para pensar noutro importante
romance do escritor português. Marcenda, a jovem de memória prodigiosa, filha
de um notável de Coimbra, é o segundo amor de Reis, o de feição platônica, pela
natureza idealista que o reveste.
João Botelho se utiliza de vários
truques de ângulos com a câmera e com a iluminação que acentuam estados e
impressões psicológicas de suas personagens. Da mesma maneira, explora uma
variedade de recursos, como os usos de espelhos, multiplicações e deformações
de imagem, espectros, manchas no teto (num episódio que muito recorda outra
passagem da literatura saramaguiana, a em que o Sr. José, em Todos os nomes,
dialoga com o teto), enfim, símbolos que remetem ao dilema das identidades ―
pelo conflito do eu para consigo e para com o outro ― e o tratamento gráfico para
justificar uma atmosfera irrealista a que submete os espaços, sejam os internos
e os externos que nos coloca em contraste com uma Lisboa dentro e fora do seu
tempo. Já o aspecto teatral colabora na dinamização das situações integralmente
submetidas ao ponto de vista do protagonista. Nota-se, assim, um teste da
própria criatividade do cineasta, quem faz boas escolhas que colaboram para uma
unidade bem conseguida.
Desses aspectos técnicos, mais que a fotografia ― ou uma nuance dela ― vale observar o complexo jogo de sombras que se estabelece ao longo da narrativa fílmica. É a melhor expressão da relação estabelecida entre as duas personagens centrais. Se formos ao tratamento criativo de origem da heteronímia em Fernando Pessoa, encontraremos que seus múltiplos decorrem do problema da expressão indireta do eu. É do poeta português, aliás, o entendimento de que nós somos sombras de nós. Nesse sentido, João Botelho captura um traço fundamental de uma poética singular. O uso da sombra problematiza esse impasse eu-outro. Ricardo Reis é o efeito de uma luz alheia.
É importante ressaltar que a
sensibilidade e a habilidade de João Botelho colocam este trabalho a altura do
romance, que é, reafirmamos, um dos maiores de José Saramago. Os acertos
superam assim os erros. E este filme, pelas sutilezas simbólicas nos usos da
imagem e pela densidade textual, incluindo o aspecto irônico, filosófico-especulativo
e interrogativo dos diálogos, o fazem uma dessas peças para contínuas visitas e
em cada uma delas sempre sairemos com alguma nova possibilidade de leitura.
Efeito literário? Não. De toda e qualquer obra de arte capaz de ser assim
designada.
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