José Lins do Rego: um drama das origens
Por Davi Lopes Villaça
Apesar da extensão de sua obra, Zé
Lins do Rego é romancista quase exclusivamente lembrado como o Criador do Ciclo
da cana de açúcar, conjunto das suas cinco primeiras narrativas, que são
aquelas mais diretamente ligadas às memórias de infância no engenho do avô e ao
relato da decadência desse mundo que fora o de seus antepassados. Os romances
que escreveu depois, por outro lado (com a exceção de Fogo morto, que a crítica
tende a incluir no Ciclo), foram muitas vezes considerados apenas à margem dos
primeiros, espécie de leitura complementar àquela que seria a parcela mais
significativa do trabalho do escritor. Essa predileção pelo Ciclo teria se dado
por outros motivos que não apenas uma distinção qualitativa entre esses
romances.
Em primeiro lugar, destaca-se a maior comodidade que a crítica
geralmente encontrou em trabalhar com um ciclo de narrativas, interligadas por
tema e enredo, do que com um conjunto de narrativas isoladas, que é como os
romances posteriores foram mais comumente recebidos pela história literária.
Num período em que certos aspectos do Brasil (em especial certas regiões e
estratos sociais) pela primeira vez se revelavam ao público através da
literatura e estudos de sociologia, os romances do Ciclo adquiriam importância
pelo seu valor documental, à medida que expunham o drama de uma terra e de uma
gente na passagem de um momento histórico para outro, isto é: durante a decadência
dos engenhos de açúcar no nordeste, com a transformação de toda uma cultura e
de toda uma comunidade que se organizavam em torno desse método arcaico de
produção. Para além dessas razões, houve também o descaso que eventualmente se
dispensou aos romances de fora do Ciclo, uma vez tomados como meras tentativas do
autor de se afastar do cenário e da paisagem explorados nos primeiros romances;
de se provar capaz, como criador, de ir além do regionalismo apoiado sobre as
reminiscências das coisas vividas e familiares.
Pelo que esses romances
apresentam, é logico deduzir que neles o autor tenha procurado, quaisquer que
fossem as razões, distanciar-se do universo do Ciclo. Mas, independentemente de
seu alcance nesse aspecto, avaliar esses romances apenas pelo que representam
em termos de ruptura é reduzir seu significado e sufocar o diálogo que eles
mantêm tanto entre si como com as narrativas anteriores. Parece-me o caso de
pôr em evidência, antes de mais nada, a relação de continuidade que a obra do
autor mantém ao longo de todo seu percurso sem implicar, necessariamente, uma
repetição. Refiro-me à continuidade que se observa a partir da ocorrência de um
mesmo drama, que em cada narrativa o autor trabalha e desenvolve sob diferentes
perspectivas e a partir de novas situações; drama que muitas vezes se associou,
de forma generalizada, à questão da decadência, não apenas como fenômeno
econômico ou social, mas sobretudo humano, seja pela forma como os heróis de Zé
Lins percebem a realidade sob uma ótica fatalista, seja como esses personagens
frequentemente percebem e dão a entender a si mesmos como seres física e
moralmente degradados, indivíduos fracos e inaptos para a ação. Em Elegia de
abril, é no Carlos de Melo de Banguê que Mário de Andrade julga encontrar o
primeiro grande exemplo desse tipo de herói que denominou “fracassado”. Não o
herói que sucumbe pelo embate com forças superiores às suas, movido por paixões
e ideais que determinam o caráter trágico de seu movimento, mas o herói desfibrado,
sem coragem para a luta, para quem o fracasso é antes um traço de sua
personalidade do que um marco de sua trajetória. Se nem sempre os heróis dos
romances posteriores representam variações do tipo humano conhecido em Banguê,
no mínimo possuem com ele semelhanças o suficiente para que se observe o paralelo
entre seus dramas particulares.
Mundo decadente e herói fracassado
são, no entanto, lugares comuns da prosa dos anos 30. Para sermos mais
específicos quanto ao lugar dessas figuras na obra de Zé Lins, convém partir da
conclusão a que Luís Bueno chegou sobre o autor ao tratar de Riacho Doce,
romance cuja ação tem início na Suécia, terra natal da protagonista, para
depois chegar ao Brasil. Diz ele:
“O mais interessante nessa
experiência é notar que ele acaba conseguindo, com essa longa volta, menos
encontrar novos temas do que novas situações, novos contextos, para tratar de
seu único grande tema, o da ligação do homem com sua terra – ou seja, acaba
apenas reafirmando que seu universo ficcional depende menos da região em si de
que se trate, mas do problema do homem com seu lugar de origem.”
Única ressalva a essa observação,
parece-me que o problema a que Bueno se refere diz respeito, nalguns casos, mais
genericamente às origens do que ao lugar ou à terra a que elas possam estar
ligadas. Quem por acaso começa ler a obra de Zé Lins (como eu li) pelos
romances posteriores ao Ciclo, nota ali a ocorrência de um mesmo conflito na trajetória
de seus heróis: a relação angustiada destes com certos estigmas pessoais, de
valor sempre depreciativo, que os fazem ver e sentir a si mesmos como
incompatíveis com a realidade ao redor e com a vida que desejam viver.
Em Pureza,
o herói Lourenço é um rapaz hipocondríaco atormentado pela certeza de trazer no
corpo, apesar de seus médicos o negarem, a “doença da família”, como ele mesmo
chama a tuberculose, de que haviam morrido a mãe e a irmã. Em Pedra Bonita, uma
família de retirantes abandona o filho pequeno, Antônio Bento, aos cuidados do
padre da vila Assu, onde o rapaz cresce hostilizado pelos vizinhos, crentes de
que sua cidade natal era um “ninho de cobras”, terra de gente maldita. No
decorrer da história, conforme o herói se inteira do passado de sua gente, fica
sabendo da lenda de uma maldição ligada à sua família. Em Eurídice, toda as
fraquezas, físicas e morais, que o herói identifica em si mesmo, explicam-se, a
seus próprios olhos, pela fato de ele ser um “filho de velhos”: filho de um
casal já entrado em idade ou, mais significativamente, de uma gente cuja
vitalidade se esgotara, o que o personagem reconhece na degradação econômica e
social da família e, mais ainda, na secura afetiva a que os pais lhe parecem
reduzidos. O que se verifica, em todos esses casos, é que o que remete cada
herói a uma condição de debilidade é precisamente o fato de se sentirem ligados
à história de seus familiares. Tudo o que neles se compreende como fraqueza ou
pusilanimidade está associado ao vínculo que involuntariamente mantêm com o
mundo que deveria ter sido o seu, mas que se encontra, agora, em vias de desaparecer.
Isso faz pensar, claro, nos
romances do Ciclo, mais especificamente em Banguê, em que o drama do herói,
Carlos de Melo, consiste sobretudo em não ser capaz de corresponder à grandeza
do avô (esse senhor de engenho ideal que é o coronel Zé Paulino) e,
consequentemente, de preservar esse que fora, além do mundo de sua infância, o
legado de sua estirpe. Importante notar, como faz Bueno, que na passagem de
poder do avô para o neto ocorre não propriamente uma degradação, e sim uma
ruptura, sem vestígio de conexão entre um personagem e outro. Bueno compara
essa relação com a que Luís da Silva, o herói do romance Angústia de Graciliano
Ramos, mantém com os antepassados: ali, o personagem não é senão o último grau
da degradação que tivera início com o avô e passara ainda pelo pai. Carlos de
Melo, por outro lado, não se vê como o herdeiro da decadência dos antigos,
simplesmente porque estes nunca lhe pareceram decadentes. Ao se deparar com o
retrato do falecido avô na sala da casa grande do engenho, o herói pensa
consigo: “O seu sangue não corria no meu. Era neto de outro”. Nos primeiros
romances de Zé Lins, a decadência é compreendida não como esgotamento do antigo,
mas como incompetência ou interferência do novo: toda a culpa recai sobre o
presente que se transviou, sobre o indivíduo que se desenraizou da tradição e
que não estabelece, portanto, relação de continuidade com o que o precedeu. A
autoacusação que Carlos de Melo promove ao longo de quase todo o romance é,
antes de mais nada, uma forma de preservar a memória do passado no seu aspecto
idílico, pela sua completa emancipação do presente – este, sim, tempo sujeito a
toda crítica.
Nos romances posteriores, contudo,
a relação dos heróis com o mundo das origens assume feições diferentes. Embora
sua história seja também de decadência, nunca o passado surge para eles como um
tempo feliz a que gostariam de retornar – nalguns casos, como o de Pedra Bonita
e Eurídice, não é sequer um tempo que tiveram a oportunidade de conhecer.
Enquanto Carlos de Melo lamenta a impossibilidade de se religar à ordem do meio
que lhe era familiar, esses heróis sofrem por se sentirem presos à tragédia de
um mundo com que já não se identificam.
O que por vezes se aponta na obra do
autor como sentimento da nostalgia se volta, nos romances posteriores, não para
o passado, mas para o próprio presente do qual se sentem excluídos; ou então,
de forma mais abstrata, para uma felicidade nunca de fato por eles conhecida,
tão somente pressentida. Interessante notar, quanto a isso, o papel das
personagens mães na obra de Zé Lins. No começo de tudo, há a mãe de Carlinhos
em Menino de engenho, essa figura angelical (como o narrador dela se recorda)
cuja morte é o ponto de partida para a narrativa, determinando no herói sua
natureza melancólica. Noutros romances, deparamo-nos com a presença forte de
mães ainda vivas, mas física e espiritualmente esgotadas, impossibilitadas de
atuar sobre o curso da história. Em Pedra Bonita, retornando à casa dos pais,
após muitos anos de separação, o herói retoma a convivência com a mãe
envelhecida, sobre a qual o narrador diz: “Bento não sabia por que sentia por
ela um amor como se fosse por uma coisa passada, finda.” Essas figuras são o
retrato de uma ternura e de uma harmonia relegadas para outro tempo; sustentam
essa impressão triste, constante na obra do autor, não apenas de algo que se
perdeu, mas de algo que poderia ter sido e que não fora.
De resto, o passado, isto é, o
mundo das origens é compreendido por cada personagem sobretudo pelo seu caráter
opressor ou pela sua estreiteza de possibilidades: para o herói de Pureza, é a
doença da família, excluindo-lhe do que ele mesmo chama “a grande vida de todos
os outros”; para o de Pedra Bonita, é a maldição da família, fazendo dele um
rejeitado aonde quer que fosse; para o de Eurídice, é a casa dos pais, dominada
pela presença de um fracasso de que ele mesmo se sentia o produto. Esses
romances nos colocam sempre diante de indivíduos jovens, mal entrados na vida,
em contato, porém, com um mundo velho que lhes exige que morram com ele.
Há
sempre uma história – cujo fim, agora, já se antevê – de que tais indivíduos
não propriamente participaram, mas com a qual se sentem em dívida como se nela
tivessem ainda algum papel a desempenhar. Tornam-se, em função disso,
angustiados espectadores, heróis hesitantes, indecisos (quando lhes é dado
escolher) entre uma herança que os sufoca e a liberdade de uma vida em que
temem já não serem capazes de se reconhecer. Seu drama, a tensão em torno da
qual todo o enredo se elabora, aparece sustentado sobre a própria condição de
imobilidade desses personagens, que neles não é senão o reflexo externo de um
conflito interior. Em Pedra Bonita e Eurídice, encontramos protagonistas que se
mantém, na maior parte do tempo, afastados do plano da ação, limitando-se a
observar o movimento dos outros personagens ou, então, deixando-se conduzir por
eles, postergando assim, até o último instante, o momento de uma ação decisiva.
E nos dois romances, o momento em que o herói finalmente se dispõe a fazer
alguma coisa é precisamente aquele em que a narrativa se encerra – o que parece
ainda mais significativo em Pedra Bonita, porque então sequer nos é dado
conhecer quais as consequências do gesto tomado por Antônio Bento.
Seja qual for o valor que o mundo
das origens assume para os heróis de Zé Lins em cada romance, sua relação com
ele é sempre conflituosa. A análise do conjunto dessa obra nos faz atentar aos
vários aspectos de um drama que o autor continuamente persegue, ou que continuamente
o inspira, que não é apenas um drama da decadência, com suas implicações
histórico-sociais, mas um drama da memória, subjacente à ligação de seus heróis
com uma ordem de que se afastaram e por cuja dissolução se sentem responsáveis.
Recordo a definição de um tipo de
História, dada por Nietzsche, que Jeanne Marie Gagnebin resume e emprega em seu
livro Lembrar escrever esquecer. Diz ela:
“A história tradicionalista deseja,
antes de mais nada, conservar. Ela insiste na ancoragem da tradição e nas
raízes do presente; ela ensina veneração e conservação piedosas. Sua justeza
provém da reflexão sobre os vínculos que nos ligam àquilo que nos precede. Mas
ela pode se tornar nociva quando o gesto de conservação se transforma em recusa
de inovação e, portanto, sufoca novamente a força plástica do presente.”
Em José Lins, não apenas os
personagens, no que respeita à sua constituição psicológica, mas a própria
realidade parece imbuída desse gesto de conservação. O mundo em que vivem seus
heróis lhes surge sempre sob influência de um tempo morto a que nunca se
prestaram (e nem poderiam se prestar) as devidas homenagens; ele reincide,
portanto, sobre o presente, paralisando-o para qualquer gesto criativo. Da
relação problemática, nunca bem resolvida, de cada herói com aquilo que os
precede, depreende-se o quanto essa obra se firma sobre uma dificuldade de
elaboração do passado, sobretudo desse passado como perda.
Elaboração essa que atinge novo
nível em Fogo morto, que parte da crítica saudou como feliz retorno do autor à
sua temática inicial. Para além, no entanto, do apuramento estilístico e formal
que no romance se denota, podemos percebê-lo como o mais singular dos romances
José Lins do Rego. Nele já não nos deparamos com heróis, jovens, sequiosos de
vida, oprimidos pela consciência de um mundo de que se desligaram, sempre a se
questionarem sobre o que deveriam ter sido e sobre o que talvez ainda pudessem
ser. É, antes disso, uma história de velhos, para quem o futuro está
terminantemente fechado, nada lhes restando senão a contemplação angustiada de
seu presente estéril; de heróis em duro contato com a própria verdade, tanto
mais verdadeira para eles quanto mais eles se esforçam em negá-la a si mesmos.
O final das outras narrativas (tanto das do Ciclo como das que lhe seguiram) é
frequentemente marcado por uma fuga: Carlos de Melo foge, o herói de Pureza
foge, e mesmo o destino trágico da heroína Edna, ao final de Riacho Doce, não
representa senão uma fuga simbólica da realidade que se lhe tornara
insuportável. Outros heróis, como o moleque Ricardo em Usina e Antônio Bento em
Pedra Bonita, retornam à sua terra, vão se reunir a sua gente, para salvá-la ou
para morrer com ela. Mas em Fogo morto não há pelo que lutar, tampouco para
onde fugir. A tragédia do velho José Amaro não é tanto a de um homem em
conflito com suas origens ou com seu passado: antes, é a história do próprio
passado que definha e morre, consciente de sua inutilidade. Não há no seleiro o
estranhamento que outros personagens do autor demonstram por um mundo que lhes
fora ou deveria ter sido familiar. Ao invés disso, o herói estranha a si mesmo,
ao corpo que lhe causa repulsa, à vida cujo sentido se desfaz.
Referências:
BUENO,
Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo/Campinas. Edusp/Editora Unicamp.
2006;
GAGNEBIN,
Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo. Editora 34. 2006.
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